terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - VII – Melhor que o pó


Dona Benta recolheu-se muito cedo aquela noite, depois de tomar um calmante, aconselhado pelo barão. Já os meninos deitaram-se tarde. Ficaram a ver troféus de caça e a ouvir da própria boca do barão aventuras espantosas que nenhum dos seus livros conta. No pedaço mais interessante, porém, foram interrompidos pela chegada dum mensageiro vindo da Alemanha no galope, com carta do imperador. O barão leu-a e disse, muito aborrecido:

— Que maçada! Tenho de partir incontinenti para meu país, que acaba de declarar guerra aos turcos. O imperador está aflito pela minha volta.

— E nós? — perguntou Pedrinho.

— Vocês podem ficar no castelo quanto tempo quiserem. Darei ordem aos criados para que os tratem como donos.

Disse e foi arrumar as malas. Minutos depois reapareceu para despedir-se.

— Até a volta, meninada! Quando a senhora dona Benta acordar, digam-lhe que senti muito não me despedir dela, mas que estarei sempre às suas ordens, na Alemanha ou na Turquia.

— Adeus, senhor barão! Volte logo...

— Traga um turco para mim! — gritou Emília.

No dia seguinte, quando dona Benta acordou e soube da inesperada partida do barão, sentiu de novo a pontada no peito.

Voltou a lamentar-se.

— Que será de mim agora, neste castelo sem dono, entre criados estranhos e com um vizinho feroz como o pássaro Roca? Ah, meu Deus, por que me deixei levar pela cabeça duma criança como Pedrinho? Estou recebendo o merecido castigo...

Os meninos ficaram inquietos. Naquele andar dona Benta acabaria doida. Era melhor levarem-na imediatamente para casa, apesar de tanta coisa que poderiam fazer naquele maravilhoso castelo do barão.

— Maçada! — exclamou Pedrinho aborrecido. — Andar com velha é isto. Nunca mais me meto em outra.

E voltando-se para dona Benta, de mau humor:

— Pare com a lamentação, vovó! Assim como eu a trouxe cá, levo-a para o sítio outra vez. Pare de torcer as mãos, que já me está deixando nervoso...

Tirou do canudo uma pitada de pó de pirlimpimpim e, sempre com maus modos, deu-lha a cheirar. Dona Benta cheirou o pó avidamente, como se cheirasse o pó da salvação. Com espanto geral, porém, o pó não fez efeito. Outra dose, e nada. Pirlimpimpim perdera a força... Molhara-se na água do mar quando Pedrinho entrou por ele adentro para acudir o burro. Pirlimpimpim agüenta tudo, menos sal.

E agora? O burro ninguém sabia dele, ficara na praia transformado em esfinge. A caleça tinha seguido com o barão para a Alemanha. Como voltar para casa? Estava Pedrinho coçando a cabeça, atrapalhado com o terrível problema, quando um rumor de asas se fez ouvir lá fora. Correu à janela e empalideceu. O pássaro Roca vinha vindo, veloz como um avião!...

— Lá vem a peste!... — exclamou o menino, mais pálido ainda.

— Socorro! — berrou dona Benta, feito uma louca. — Acudam!...

O momento era dos mais terríveis. Ninguém sabia o que fazer.

Todos corriam dum lado para outro, completamente desorientados. E aquilo acabaria muito mal se Emília não viesse como uma das suas grandes idéias.

— Fechem os olhos com toda a força! — berrou ela dando o exemplo.

Instintivamente todos obdeceram. Fecharam os olhos, com toda a força, como a gente faz nos sonhos quando vai caindo num precipício. Ficaram um minuto assim, Quando de novo abriram os olhos... estavam no sítio outra vez, perto da porteira! Dona Benta respirou aliviada e assoprou várias vezes, como quem está ressuscitando, depois disse aos meninos:

— Não contem nada a tia Nastácia para que ela não pense que estou caducando. Vamos fingir que estivemos na casa do compadre Teodorico.

Todos fizeram cara de quem vinha chegando da casa do compadre Teodorico, abriram a porteira e entraram. Mas deram logo com a preta de mãos na cintura, plantada na varanda, sacudindo a cabeça com ar de quem está ciente de tudo.

— Sim, senhora! — disse Nastácia, assim que dona Benta começou a subir a escadinha. — Já sei que encontrou o coronel Teodorico muito bem obrigado, não é?

Dona Benta armou a boca para pregar uma mentirinha, com um ar muito desconchavado, porque a pobre nunca havia mentido em toda a sua vida. A diaba da negra, porém, impediu-a disso.

— Não diga, sinhá — resmungou. — Já sei tudo. O burro veio na frente e me contou a história inteirinha, tintim por tintim...

A pobre dona Benta, muito passada, baixou os olhos e seguiu para o seu quarto sem dizer coisa nenhuma...

No dia seguinte chegou da cidade uma carta de dona Antonica chamando Pedrinho.

— Que maçada, vovó! — exclamou ele aborrecidíssimo.

— Justamente agora que temos o burro falante e tenho de ir embora!...

Mas que remédio? Quem o governava era dona Antonica, e portanto teve de arrumar a bagagem para seguir no dia seguinte.

No dia seguinte o cavalo pangaré foi arreado e bem cedo. Às seis horas Pedrinho tomou o seu café com mistura e montou.

— Adeus vovó! — exclamou antes de dar no cavale a primeira lambada. — Adeus, Narizinho! Adeus, tia Nastácia! Adeus, Emília. Adeus, Faz-de-conta...

— Adeus! adeus! — exclamaram todos, com os olhos úmidos.

Lept!... Uma lambada só — de leve, e o cavalinho partiu...

Antes, porém, que chegasse à porteira, Emília gritou-lhe que parasse.

— Você esqueceu de despedir-se do Visconde, Pedrinho! Ele também é gente... O menino sofreou as rédeas.

— Que idéia! Pois o Visconde não morreu, Emília?

— Morreu mas não acabou ainda! — replicou a boneca, correndo na direção dele com o resto do Visconde mão. Despeça se deste toco, que é bem capaz de virar gente outra vez.

Pedrinho riu-se e, para não descontentar a boneca tornou-lhe das mãos o toco de sabugo e fingiu que lhe dava um beijo. Em seguida deu outra lambada no cavalinho — desta vez com bastante força, e partiu no galope. Não queria que a boneca visse duas lágrimas que já iam pingando dos seus olhos...

FIM

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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