segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Guerra Junqueiro (A Rapariguinha e os Fósforos)


Que frio! a neve caía, e a noite aproximava-se; era o último de Dezembro, véspera de Ano-Bom. No meio deste frio e desta escuridão passou na rua uma desgraçada pequerrucha, com a cabeça descoberta e os pés descalços. É verdade que trazia sapatos ao sair de casa, mas tinham-lhe servido pouco tempo: eram uns grandes sapatos, que sua mãe usara já, tão grandes, que a pequenita perdeu-os ao atravessar a rua a correr, entre duas carruagens. Um dos sapatos perdeu-o realmente; o outro fugiu-lhe com ele um garotito, com a intenção de o transformar num berço para o seu primeiro filho.

A pequenita marchava com os pezinhos nus, arroxeados do frio; tinha no seu velho avental uma grande quantidade de fósforos e levava na mão um maço deles.

Não lhe correra o dia bem; não houvera compradores, e por isso não apurara cinco réis.

Pobre pequerrucha! que frio e que fome! Os flocos de neve caíam-lhe nos longos cabelos loiros, adoravelmente anelados em volta do pescoço; mas pensava ela porventura nos seus cabelos anelados?

As luzes brilhavam nas janelas, e sentia-se na rua o cheiro dos manjares; era a véspera do dia de Ano-Bom: eis no que ela pensava.

Deixou-se cair a um canto, entre dois muros. O frio enregelava-a cada vez mais; não se atrevia, porém, a regressar a casa: o pai bater-lhe-ia por não vender os seus fósforos. Além disso, em casa fazia tanto frio como na rua. Moravam debaixo de um telheiro que o vento atravessava, apesar de o terem calafetado com palha e farrapos. As mãozinhas, já quase que as não sentia. Ai! como um fosforozinho aceso lhe faria bem! Se tirasse do maço apenas um, um único, e acendendo-o aquecesse os dedos enregelados! Tirou um: «ritche»! como estourou! como ardeu! Uma chama tépida e clara, como uma pequena lamparina. Que linda luz! Parecia-lhe estar sentada diante de um enorme fogão, cujo lume ardia magnífico, que era um regalo!

A pequena ia já a estender os pezitos para se aquecer também, quando a chama se apagou repentinamente; ficou-lhe na mão uma pontinha de fósforo consumido.

Acendeu outro fósforo, que ardeu, que brilhou, e o muro onde bateu a sua chama tornou-se transparente como vidro. Olhando através desse muro, a pequerrucha viu uma sala com uma mesa coberta com uma toalha alvíssima, deslumbrante de finas porcelanas, e sobre a qual uma galinha assada, com recheio de ameixas e de batatas, fumegava, exalando um perfume delicioso. Oh surpresa! oh felicidade! De repente a galinha saltou do prato, e caiu no chão ao pé da pequerrucha, com o garfo e a faca espetada no lombo. Nisto apagou-se o fósforo, e viu apenas diante de si a parede fria e tenebrosa.

Acendeu terceiro fósforo, e achou-se logo sentada debaixo de uma árvore do Natal maravilhosa; era ainda mais rica e maior do que outra que vira o ano passado através dos cristais de um armazém suntuoso.

Nos ramos verdes brilhavam centenas de balões acesos, e as estampas coloridas, como as que há às portas das lojas, pareciam sorrir-lhe. Quando ia agarrá-las com as duas mãos, apagou-se o fósforo; todos os balões da árvore do Natal começaram a subir, a subir, e viu então que se enganara, porque eram estrelas. Caiu uma delas deixando no céu um longo rasto de fogo.

– É alguém que está a morrer, disse a pequerrucha; porque a sua avó, que lhe queria tanto, mas que já morrera, dissera-lhe muitas vezes: «Quando cai uma estrela, sobe para Deus uma alma».

Acendeu ainda outro fósforo; deitou uma grande luz, no meio da qual lhe apareceu a avó, de pé, com um ar radioso e suavíssimo.

– Minha avó, exclamou a pequenita, leva-me contigo. Eu sei que te vais embora quando se apagar o fósforo. Desaparecerás como a panela de ferro, a galinha assada, e a bela árvore do Natal.

Acendeu o resto do maço, porque não queria que sua avó lhe fugisse, e os fósforos espalharam um clarão mais vivo que a luz do dia. Nunca sua avó tinha sido tão formosa. Pôs ao colo a pequerruchinha, e ambas alegres, no meio deste deslumbramento, voaram tão alto, tão alto, que ela já não tinha nem frio, nem fome, nem agonias; haviam chegado ao Paraíso.

Mas quando rompeu a fria madrugada, encontraram a pequerrucha, entre os dois muros, ao canto, com as faces incendiadas, o sorriso nos lábios.., morta, morta de frio, na última noite do ano. O dia de Ano-Bom veio alumiar o pequenino cadáver, sentado ali com os seus fósforos, a que faltava um maço, que tinha ardido quase inteiramente. – Quis aquecer-se, disse um homem que passou. E ninguém soube nunca as lindas coisas que ela tinha visto, e no meio de que esplendor tinha entrado com a sua velha

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

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