O livro Fuga do Hospício e Outras Crônicas é uma antologia com alguns textos publicados por Machado de Assis.
Divide-se em três partes, cada uma contendo dez crônicas com temática que se relacionam exatamente com o título de cada parte. São elas:
PARTE I – ALMA HUMANA
A primeira parte da seleção de crônicas ressalta bem as peculiaridades do íntimo humano, o pensamento, a postura e as atitudes do ser humano nas mais variadas circunstâncias, ressaltando a loucura, a ganância, a hipocrisia, o abandono, o canibalismo e muitas outras atitudes de cunho negativo que podem ser produzidas pela alma humana.
Fuga do hospício
Publicada em 31 de maio de 1896. O autor narra uma fuga de loucos que ocorreu num hospício carioca e discorre sobre seu temor em dirigir a palavra às pessoas na rua da tal fuga, afinal, qualquer uma delas pode ser um dos loucos que fugiram do hospício, como nos revela este trecho:
De ora avante, quando alguém vier dizer-me as coisas mais simples do mundo, ainda que me não arranque os botões, fico incerto se é pessoa que se governa, ou se apenas está num daqueles intervalos lúcidos, que permitem ligar as pontas da demência às da razão. Não posso deixar de desconfiar de todos.
Machado defende que todos podem ser loucos, afinal, naqueles dias “o juízo passou a ser uma probabilidade, uma eventualidade, uma hipótese”. Justifica tal afirmativa ao descrever os fatos que ocorreram durante a semana, como se os mesmos fossem fruto da loucura que compõe tais dias:
De resto, toda esta semana foi de sangue, – ou por política, ou por desastre, ou por desforço pessoal. O acaso luta com o homem para fazer sangrar a gente pacata e temente a Deus. No caso de Santa Teresa, o cocheiro evadiu-se e começou o inquérito. Como os feridos não pedem indenização à companhia, tudo irá pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. No caso de Copacabana, deu-se a mesma fuga, com a diferença que o autor do crime não é cocheiro; mas a fuga não é privilégio de oficio, e, demais, o criminoso já está preso. Em Manhuaçu continua a chover sangue, tanto que marchou para lá um batalhão daqui. O comendador ferreira Barbosa, (a esta hora assassinado) em carta que escreveu ao diretor da Gazeta e foi ontem publicada, conta minuciosamente o estado daquelas paragens. Os combates têm sido medonhos. Chegou a haver barricadas (...)
O autor encerra o texto apontando a música como uma solução à demência, à loucura de seus dias:
Enxuguemos a alma. Ouçamos, em vez de gemidos, notas de música. (...) se consideramos (...) a necessidade que há de arrancar a alma ao tumulto vulgar para a região serena e divina (...).
Um pouco de astronomia
Publicada em 23 de dezembro de 1894, versa sobre o ocorrido durante a semana. Num primeiro momento, o autor narra um jantar realizado pelos ministros da Suécia e Noruega junto a oficiais da marinha e os cônsules da Holanda e Dinamarca.
Num segundo momento, através de uma pergunta feita por seu criado, o autor discorre sobre política e encerra seu texto falando sobre a descoberta de um novo planeta entre Marte e Mercúrio, relacionado à descoberta do astro com um terremoto ocorrido na Itália.
(...) um astrônomo diria sobre este novo planeta coisas importantes. Que direi eu? Nada ou algum absurdo. Buscaria achar alguma relação entre os planetas que aparecerem e as cidades que ameaçam desaparecer com terremotos (...)
Andará a terra com dores de parto, e alguma coisa vai sair dela, que ninguém espera nem sonha? Tudo é possível! Quem sabe se o planeta novo não foi o filho que ela deu à luz por ocasião dos terremotos italianos?
Por fim, num teor reflexivo, conjectura se a ganância das grandes nações fará que estas, depois de dominarem o continente africano por completo, não decidirão partir para a conquista dos outros planetas. Mais uma vez, narrando os fatos da semana, constrói uma crítica. Seu alvo agora é a ganância das grandes nações que exploram a África, as quais acabam por digladiar ideológica ou belicamente por necessidade de impor sua economia e ideologia às nações daquele continente.
Abolição e liberdade
Publicada em 19 de maio de 1888, um homem reúne seus amigos para um jantar e anuncia que, mesmo sem a escravidão ser abolida, dar alforria ao seu escravo Pancrácio. Tamanho ato de humanidade é elogiado por todos os seus companheiros. O homem permite que o negro continue morando em sua casa e trabalhando em troca de um salário. No entanto, mesmo alforriado, o negro apanha constantemente do patrão, o qual almeja um cargo na política:
Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um direito que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe chamo filho do diabo; coisas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.
O autor busca, através deste irônico caso em particular, demonstrar sua opinião acerca da escravidão e, sobretudo, criticar a postura hipócrita daqueles que buscam, através de demonstrações públicas de um falso caráter, angariar a simpatia e admiração da sociedade, quando, em seus íntimos, continuam a ser pessoas mesquinhas e pobres de espírito.
Bondes elétricos
Publicada em 16 de outubro de 1892, num bonde, o narrador nota que, enquanto o cocheiro e o condutor cochilam, os dois burros que puxam o veículo conversam. Ambos falam um ao outro sobre a tristeza e a amargura de serem burros e o destino que lhes é reservado, afinal, quando não servirem mais para puxar bondes serão enviados para puxar carroças. Depois quando não servirem mais para tal serviço, serão abandonados nas ruas, onde morrerão e serão levados por uma carroça, puxada por outro burro, o qual possuirá o mesmo destino. O diálogo entre os dois animais e o assunto sobre o qual falam é uma espécie de metáfora sobre velhice, esquecimento e abandono e, por fim, a morte. O autor busca traçar uma crítica à modernidade que suplanta os antigos moldes de trabalho, pois os bondes elétricos começavam a surgir pelas ruas do Rio de Janeiro, substituindo os burros que antes faziam tal tarefa.
Carnívoros e vegetarianos
Publicada em de março de 1893, uma greve de açougueiros corta o abastecimento de carne para a cidade. O autor, vegetariano por escolha própria, revela as vantagens da dieta composta apenas por vegetais. Aponta as diferenças entre a carne repleta de vícios) e os vegetais (repletos de virtude). Mudando um pouco de assunto, encerra o texto criticando o pensamento de que a instrução pública de sua época devesse ensinar a língua italiana para as crianças e jovens, tendo em
vista o grande número de imigrantes italianos no Brasil. O objetivo central do texto é, partindo de assunto da greve dos açougueiros (assunto em alta na semana em questão), criticar as propostas entabuladas nas discussões entre os senhores Capelli e Maia Lacerda sobre lecionar, na instrução pública brasileira, o idioma italiano. O autor usa de seu sutil sarcasmo ao construir o texto, concluindo em tom de sugestão:
Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente, e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não ensinar italiano a povo, antes ensinar nossa língua aos italianos. Mas, posto que isso não tenha nada a ver com o vegetarianismo, desde que faz com que o povo possa ouvir as óperas sem libreto na mão, é um progresso.
Poder relativo
Publicada em 20 de abril de 1885, nela o autor justifica seu posicionamento acerca de ter seu nome citado nas listas de sugestão para o Ministério e defende sua vontade em ingressar na política. Mesmo falando sobre si mesmo, machado ironiza:
Creia o leitor só a presença do nome na lista me faria muito bem. Faz-se sempre bom juízo de um homem lembrado, em papéis públicos, para ocupar um lugar nos conselhos da coroa, e a influência da gente cresce.
Crônica que deixa de lado o ato de narra ou comentar os acontecimentos da semana, o autor concentra-se apenas em falar sobre seus desejos de ingressar na vida política.
Antropofagia
Publicada em 1 de setembro de 1895, a crônica discorre sobre as notícias de enforcamento de um professor de inglês que devorou algumas crianças em Guiné. Como de costume, o autor utiliza-se da ironia ao cogitar que talvez, o professor, ao devorar as crianças, estivesse apenas tentando explicar de modo prático o que era a antropofagia. A seguir, faz apontamentos sobre casos semelhantes de canibalismo ocorridos no Brasil. A crônica parte de tal fato para, num tom sutil criticar o academicismo e a intelectualidade, como vemos no trecho:
Demais, pode ser que o professor quisesse explicar aos ouvintes o que era canibalismo, cientificamente falando. Pegou um pequeno e comeu-o. os ouvintes, sem saber onde ficava a diferença entre canibalismo científico e o vulgar, pediram explicações; o professor comeu outro pequeno. Não sendo provável que os espíritos da Guiné tenham a compreensão fácil de um Aristóteles, continuaram a não entender, e o professor continuou a devorar meninos. É o que em pedagogia se chama ‘lição das coisas’.
Se fosse assim, deveríamos antes lastimar o sacrifício que fez tal homem, comendo o semelhante, para o fim de ensinar e civilizar gentes incultas.
Uma fábula persa
Publicada em 11 de agosto de 1878. O autor traça uma comparação entre o partido republicano e uma lenda persa, em que um jovem decide plantar limas para vender. Como as mesmas não se desenvolvem, ele passa a culpar o sol ao invés do solo, do adubo ou de sua própria inexperiência como lavrador. O sol foi assim escolhido por ser a razão mais visível, que lhe servil ao desabafo e que pudesse gritar e esbravejar seu ódio mesmo que não fosse culpado. O jovem arranca as ervas do solo e fica sem ofício. O autor conclui, numa relação mais do que direta ao Partido Republicano, afirmando que o mesmo deve conhecer toda a política social antes de entrar na vida política do país, para que num problema causado por sua própria incapacidade, um inocente não seja acusado injustamente.
Devaneio de um rei
Publicada em 11 de março de 1894. Partindo da história da colonização da ilha de Trindade, o autor defende que, se fosse rei, o preferiria ser sem súditos. Viver em uma ilha apenas com sua rainha e seu cozinheiro. O texto é uma crítica aos bajuladores dos poderosos, afinal, se ele desejava ser rei sem súditos era apenas para livrar-se tanto de petições e burocracia quanto de bajuladores, como fica evidenciado nas palavras do autor. Tratar-se, portanto, de uma forte crítica à conduta humana, sobretudo, quando levamos em conta o assédio bajulatório característico de pessoas que buscam um reconhecimento social através de “amizades” com homens públicos, para obterem respaldo e, quem sabe, posição pública favorável:
Quando nascesse uma espinha na cara, não haveria uma corte inteira para me dizer que era uma flor, uma açucena, que todas as pessoas bem constituídas usavam por enfeite; (...) Se eu perdesse um pé, não teria o prazer de ver coxear os meus vassalos.
A forma irônica e picante com que o narrador se pronuncia nessa passagem demonstra sua habilidade em detectar e expor as falhas e os interesses humanos, que se apresentam como seres fracos e venais, não escolhendo postura ética ou moral para que possam ascender-se a alcançarem reconhecimento perante a sociedade.
Sobre a morte e o morrer
Publicada em 6 de setembro de 1896. Influenciado pela lembrança das mortes dos amigos Alfredo e Artur Gonçalves, o autor faz considerações sobre o envelhecer e o morrer. Versa sobre o número cada vez mais crescente de mortes que permeiam sua época:
Não me acuseis de teimar neste chão melancólico. O livro da semana foi o obituário, e não terás lido outra coisa, fora daqui, senão mortes e mais mortes.
Prossegue falando sobre os homens que matam uns aos outros e encerra discorrendo não sobre a morte impingida de um homem a outro, e sim à morte causada pela própria natureza:
E ainda não como aquele gênero de morte que nas mãos dos homens, nem dentro deles, o que a natureza reserva no seio da terra para distribuí-la por atacado. Lá se foi mais uma cidade do Japão, comida por um terremoto, com a gente que tinha.
Aqui podemos observar uma forte tendência do escritor: o questionamento existencial e a reflexão acerca do sentido da vida. Não podemos deixar de referir-nos ao fato de que o autor vivenciou as contradições do fim do século, deixando-se, portanto, impregnar-se de angústia e desilusão em relação à euforia materialista que tomou conta do mundo desde a segunda metade do século XIX. Não é de se estranhar que em várias narrativas do autor aparecem personagens que passam pela angústia do viver e que buscam no tempo, na solidão e na própria escrita literária uma forma de exorcização de suas certezas metafísicas.
PARTE II – MUNDO MODERNO
Nesta parte, encontram-se aquelas que versam sobre os aspectos da época e da sociedade em que o autor viveu: o transporte através dos bondes, a visita de personalidades importantes em sua época e fatos marcantes que ocorreram em tais dias, como um famoso caso de bigamia, um homem que deu à luz e outros ocorridos relevantes em seu tempo. O autor não deixa de se preocupar, como bom cronista, com a nova realidade por que passava o país. A urbanização, o cosmopolitismo gerado pelo capitalismo, o processo de desenvolvimento social e científico, tudo vai ser captado com a perspicácia e visão crítica desse escritor carioca, considerado pela crítica como “o implacável crítico da consciência humana” e o grande observador da sociedade de sua época.
Como comportar-se no bonde
Publicada em 4 de julho de 1883. O autor, de modo lúdico, constrói um conjunto de regras para todos que queiram usar os bondes como meio de locomoção. O texto se baseia em 10 artigos que definem como deve se portar desde os passageiros com resfriado, até aqueles que queiram ler jornal durante a viagem. Critica a sociedade e suas atitudes cotidianas. Partindo de algo simples como usar um bonde, o autor ironiza a própria sociedade e sua falta de respeito, educação e cortesia ao tratar a se mesma. É, como sabemos, a função do cronista, ou seja, captar um flagrante social e expor de forma analítica e crítica. É o escritor do dia-a-dia.
Visita de um anarquista
Publicada em 20 de outubro de 1895. Narra a viagem da anarquista Luísa Michel ao Brasil. Conta um incidente ocorrido entre ela e um grupo de locatários. Os capitalistas vão até a anarquista e pedem-lhe ajuda, expondo as amarguras financeiras que lhes são impostas por seus inquilinos. Ao ouvir tal relato, a anarquista vibra de emoção, julgando o anarquismo já consumado no Brasil. O texto ironiza a ignorância dos locatários ao demonstrarem sequer saber o que é anarquismo e, mesmo assim, o temerem. Critica também o fato de que, aos olhos da anarquista, o anarquismo já se consumou no país. Com tal postura, o autor nada mais quis do que atacar a falta de ordem que dominava a sociedade, o que, aos olhos de uma estrangeira era algo nunca antes visto. Ele relacionou a doutrina política com o significado pejorativo que o termo “anarquismo” adquiriu com o passar dos anos. O autor versa sobre a realidade política brasileira e a (des)organização pública de nosso país.
Um acontecimento inusitado
Publicada em 7 de julho de 1878. Crônica que analisa o caso de um quadragenário da cidade de Caravelas, na Bahia, que dera à luz a uma criança:
(...) sentiu uma dor agudíssima na região precordial, movimentos desordenados do coração, dispnéia, forte edemacia em todo o lado esquerdo. Entrou em uso de remédios, até que, com geral surpresa, trouxe a este vale de lágrimas uma criança, que não era exatamente uma criança, porque eram as tíbias, as omoplatas, as costelas, os fêmures, trechos soltos da criatura, que não chegou a viver.
Depois, de um modo bem humorado, mas com teores de ponderação, o autor concluiu:
E porque não suponho que ocaso de Caravelas deve ser o único, acontece que não posso ver agora nenhum amigo, opresso e pálido, sem supor que vai me cair nos braços e bradar (...) “sou mãe”. Esta palavra retine-me os ouvidos, e gela-me a alma... imaginem o que será de nós, se tivermos de dar à luz (...)
Aqui se percebe um caráter profético, bem pouco cultivado por autores da época. Não esqueçamos que o autor foi um dos maiores críticos da ciência, do positivismo, sobretudo.
Progresso
Publicada em 15 de março de 1877. Narra a inauguração do sistema de bondes em Santa Teresa, fazendo uma referência à modernidade e, a seguir, de modo bastante descontraído, afirma que os bondes farão bem a santa Teresa, que agora “vai ficar à moda”. Percebe-se que, por trás do aparecer ar de felicidade, existe uma forte crítica do narrador.
Espiritismo
Publicada em 5 de outubro de 1885. O autor narra uma incursão ida a um encontro espírita de um modo bastante inusitado: sua alma desprende-se de seu corpo e vai à reunião, mas, ao retornar, encontra seu corpo possuído pelo diabo o qual, depois de fazer insinuações sobre a doutrina espírita, devolve o corpo ao espírito.
O texto versa sobre o espiritismo, comparando-o a um medicamento novo, que promete curar as doenças de modo eficaz que todas as medicações antigas. A crônica pode ser vista, também, como uma crítica a todos aqueles que, ao manterem um primeiro contato com uma nova religião, aceitam – sem questionar – todas as suas doutrinas e ensinamentos, suplantando, com eles, suas antigas crenças. Não se pode deixar de observar, por outro lado, a obsessão e o interesse do autor pela metafísica. Afinal, em várias de suas narrativas esse tema salta aos olhos. Podemos citar narrativas como A cartomante, A igreja do Diabo, O enfermeiro, por exemplo.
Verbas públicas
Publicada em 1 de setembro de 1878. Crônica que fala sobre a atitude da Câmara Municipal de negar o fornecimento de jantar para o júri quando as sessões se prolongassem até tarde. O autor se mostra a favor do fato, complementando que isso desordenaria a mente dos jurados e encerra seu texto afirmando:
O que me admira é que só agora reclame o júri um bocado de pão. Pois nunca pediu o júri uma verbazinha para os seus pastéis? Só agora há processos longos e juízes famintos?
Tanto pior; se esperam tantos anos, podem esperam alguns mais.
O texto também pode ser visto como uma crítica ao comodismo da sociedade e sua necessidade de sempre receber algo em troca do serviço que esteja prestando, não importa qual seja ele.
Direitos dos burros
Publicada em 10 de junho de 1894. Ao sair em seu jardim, o autor encontra um burro. O animal dirige-lhe a palavra e pede que ele, como homem da imprensa, interceda por sua espécie tão injustiçada. A crônica critica a disparidade existente na aplicação de penas existente entre ricos e pobres. Os primeiros, não importa o que façam, safam-se da justiça mediante seus recursos financeiros, os outros, por mais insignificantes que sejam seus crimes, cumprem penas exageradas. Em outro momento, Machado de Assis aproveita para criticar as propostas de ensinar o inglês nas escolas públicas, afinal, para alguns professores de seu tempo, tal idioma possuía mais importância que o português.
O boi
Publicada em 1 de outubro de 1876. Fragmento de crônica que critica a opinião pública para representar. O autor usa a figura do boi para representar a pecuária criticada pela opinião pública, partindo de tal analogia, ele ressalta o papel do boi em tal embate, afirmando que ele nada tem a ver com tal debate, afinal, seu interesse nunca importa, sempre estando subordinado aos interesses do produtor, do intermediário e do consumidor.
Caso de bigamia
Publicada em 23 de setembro de 1894. Partindo de um suposto caso de bigamia que não pode ser comprovado perante a lei (já que existe um atestado de óbito para a primeira esposa do homem), o autor defende que o único meio de se chegar até a verdade é através do espiritismo. O texto critica o fato de que apenas levamos a sério, ignorando-as. Veja, por exemplo, o que acontece com o personagem “Camilo”, de A cartomante.
História de bichos
Publicada em 1 de julho de 1894. O texto narra outro dilúvio. O autor reuniu sete casais de cada animal e, pondo-os em uma arca, tentou conter as diferenças entre eles, no final, soltou uma pomba pela janela e ela não voltou, soube assim que o dilúvio havia acabado e liberou os animais que saíram juntos, alguns enroscados amigavelmente em outros e outros, por sua vez, oscilando entre vôos e saltos de felicidade. A crônica trata das diferenças entre aqueles que, à primeira vista, são semelhantes, dos desentendimentos surgidos pela superlotação e, sobretudo, da alegria daqueles que sobrevivem a acidentes e desastres, uma alegria que derruba todas as barreiras.
PARTE III - PALAVRAS E PENSAMENTOS
Nesta terceira e última parte do livro, encontram-se as crônicas de Machado de Assis que versam sobre o poder das palavras, do discurso, da escrita e, sobretudo, suas influências na sociedade. Existem também em algumas crônicas certas incursões metalingüísticas feitas pelo autor acerca do ofício do cronista e todos os fatores que compõem esse gênero textual.
Pergunta e resposta
Publicada em 5 de novembro de 1883. Sempre que sai na rua, algum curioso se acerca do autor e lhe indaga: “o que há de novo?”. Cansado de responder a tais perguntas, decide pôr um plano em prática; sempre que alguém lhe perguntar as novidades, ele conta um fato passado, como o terremoto de Lisboa e a morte de Gonçalves Dias. Os curiosos, como queriam saber de fatos novos e não passados, param de fazer tais perguntas ao autor. O texto é uma crítica explícita aos curiosos e mexeriqueiros da sociedade daquela época, pessoas curiosas que viam no autor – por ser um homem da imprensa – a oportunidade de se inteirarem nas últimas novidades e acontecimentos de seus dias. É também uma crítica ao descaso para com o passado, como se o que um dia aconteceu pouco valor tivesse hoje quando comparado com os mexericos da corte. Não se pode ignorar também o destaque que o autor dar às palavras, à influência que exercem no comportamento das pessoas.
Impostos
Publicada em 16 de maio de 1885. O autor encontra-se com os impostos inconstitucionais de Pernambuco. Os impostos estavam no Rio de Janeiro há quatro ou cinco meses e, tristes por terem sido expulsos da Câmara de Deputados, o autor os consola dizendo que o que os define como anticonstitucionais é apenas um adjetivo e se ele fosse escolhido o líder da nação aboliria o uso dos adjetivos e eles seriam apenas “impostos”. O poder das palavras é explorado pelo autor, afinal, sem adjetivos para qualificar as coisas, a linha que define se são boas ou más é apagada. Ele usa o caso dos impostos inconstitucionais para metaforicamente provar que, caso seja da vontade dos donos do poder, algo negativo pode ser visto com bons olhos por todos, através apenas, do uso de uma palavra adequada, que não pejorative o objeto.
O cronista e a semana
Publicada em 16 de setembro de 1894. O autor é visitado por uma semana pobre e esta vem lhe dizer que, enquanto ela durou, seu único ocorrido foi o escorregão de um homem numa casca de banana. O autor põe-se a lembrar da visita que teve anteriormente de uma semana rica. Ela (a semana rica), sempre ruidosa e enfeitada, contou que enquanto ela durou, ocorreram tragédias da pior espécie. Depois ela se despede e sai de seu escritório, o autor pede ao seu criado que, se a semana rica voltar, diga-lhe que ele não se encontra. No começo do texto o autor afirma preferir as semanas pobres às ricas, afinal, o que marca o caráter de pobreza da primeira é exatamente a ausência de assuntos trágicos,quando na segunda,o que a torna rica é exatamente a ocorrência de tais fatos. Há, na abordagem de tal temática em uma crônica,um velado exercício de metalinguagem, já que o cronista necessita de fatos para construir seus textos, e geralmente os melhores fatos dessa espécie ocorrem nas “semanas ricas”. A posição de Machado é uma auto-ironia, pois, mesmo preferindo as semanas pobres, elas pouco material lhes dão para suas crônicas.
O nascimento da crônica
Publicada em 1 de novembro de 1877. O autor fala sobre a crônica e conjectura suas origens, depois narra sua ida ao cemitério num dia quente.Participa de um sepultamento e,entrando em seu carro e indo para casa,repara em alguns coveiros que cavam uma sepultura sob um sol a pino e indaga-se:
Se o sol nos fazia mal, que não fazia àqueles pobres diabos,durante todas as horas quentes do dia?
Há, como no texto anterior, outro exercício metalingüístico, afinal,ele começa seu texto discorrendo sobre como fazer uma crônica,o que dizer a princípio e que a direção seguir e,por fim,infere onde surgiu a crônica. No decorrer do texto fala sobre se queixar da situação em que se vive e afirma que, por mais que seja penoso afirmar, sempre existirão pessoas em situação pior que a nossa, como comprova ao narrar sua ida ao cemitério.
Conto-do-Vigário
Publicada em 31 de março de 1895. O autor fala sobre um homem que passa a perna em outro e cogita onde terá surgido o famoso conto-do-vigário. Faz uma relação entre o conto literário e o conto-do-vigário e afirma que não é o tamanho do segundo que faz a sua obra,e sim de que maneira ele é feito. Uma vez mais
o autor explora o poder das palavras,poder que faz esse um homem arrancar dinheiro de outro sem que esse perceba.
Reflexões de um burro
Publicada em 8 de abril de 1894. O autor vê um burro à beira da morte, deitado sobre os trilhos dos bondes, ao seu lado foi colocada água e capim, mas o animal ignora isso, pondo-se a pensar em sua condição de burro, sua vida, suas tristezas e alegrias e falar sobre sua vida, sobre tudo aquilo que fez ou sobre o que deixou de fazer. A contragosto – tamanha era a sabedoria daquele animal – o autor se afasta, indo trabalhar. No outro dia, ao passar pelo mesmo lugar, encontra o animal morto e já estado de decomposição. O enfoque principal de tal crônica é ressaltar o poder das palavras, da oralidade, do discurso e a beleza que se encerra na comunicação oral, quando o orador domina a palavra a tal ponto que chega a enternecer seu público. Ao mesmo tempo, o autor volta ao mesmo tema de comparar veladamente o animal (neste caso, o burro) ao ser humano, suplantado pelo poder do tempo, da vida que transcorre e o faz envelhecer, definhar e morrer.
Touradas
Publicada em 15 de março de 1877. Machado ironiza a decisão de se fazer uma tourada em caridade aos necessitados, afinal, para prestar uma boa ação ao povo, fazem uma má ação aos animais. Desse modo, critica uma vez mais aqueles que, através de causas nobres (neste caso ajuda aos pobres) buscam angariar a simpatia do povo e galgar, assim, os degraus da vida política. Mais uma vez o autor exercita a metalinguagem ao definir o cronista, ou seja, como “um historiador da quinzena”, alguém que vive de contar – sob o prisma que seja – os eventos ocorridos que marcaram a sociedade neste intervalo de tempo.
Analfabetismo
Publicada em 15 de agosto de 1876. O autor trata das diferenças existentes entre as palavras e os números, afirmando que enquanto as primeiras são mais maleáveis, suscetíveis à interpretações diferentes e a mal-entendidos, os segundos são mais práticos, diretos, impossíveis de ser interpretados de outra maneira que não seja a da lógica e do bom-senso.
Grito do Ipiranga
Publicada em 15 de setembro de 1876. Um amigo do autor lhe fala que o grito do Ipiranga, que marcou a independência do Brasil, como conhecemos não ocorreu do mesmo modo que se disse, foi, na verdade, um apanhado de fatos dispersos que o povo achou melhor resumir miticamente no famoso “grito”. O autor posiciona-se justificando ironicamente:
Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autentica. A lenda todo o fato da in dependência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima.
Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.
Mais uma vez, o cronista fala sobre as palavras e seu poder, no entanto, partindo agora sobre um enfoque entre a escrita e a oralidade, entre história transcrita em todas as suas minúcias para o papel e a versão oral que resume e, de modo generalizador, dá seus tons épicos ao ocorrido.
Neologismos
Publicada em 7 de março de 1889. Critica a tentativa do senhor Castro Lopes, famoso latinista brasileiro de sua época, em criar uma série de neologismos para substituir as palavras e as frases oriundas do idioma francês – tão comuns no vocabulário dos brasileiros letrados da época. Ironiza o uso de determinadas palavras e, por fim, encerra seu texto defendendo sarcasticamente que, por mais que não se queira aceitar, muitos destes termos e expressões francesas já foram assimilados pelo nosso vocabulário, como é o caso de palavras como “reclame” ou “croquete”.
A última crônica versa sobre o poder universalizante de algumas palavras, que rompem as fronteiras de sua nação de origem e adentram em outras nações, as quais possuem seu próprio idioma. Uma das críticas mais presentes em todo o texto é o fato de que o senhor Castro Lopes repudiava o uso apenas das expressões francesas, fazendo pouco caso sobre o uso de palavras como “xale”, de origem persa.
Fonte:
Prof. Édson Carlos (UFRN). Disponível em Passeiweb
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