sábado, 27 de abril de 2013

Gislaine Canales (Caderno de Trovas)

A minha vida é uma Trova,
trova de ilusão perdida,
pois a vida é grande prova,
que prova a Trova da vida!

Amor à primeira vista,
foi isso, mar, que eu senti!
Ninguém há que te resista,
quando está diante de ti!

Caminhei pelo infinito,
vaguei por milhões de espaços...
Até lá estava escrito
o meu regresso aos teus braços!

É contrastante a ironia,
nesta verdade contida:
lindo o entardecer do dia,
triste o entardecer da vida!
 
É mais que um deslumbramento
ver o sol nascer no mar,
é mágico esse momento
que vem as águas dourar!

Eu gosto de navegar
nesse mar de azul infindo
formado por teu olhar.
Não existe mar mais lindo!

Não posso viver em vão,
eu preciso um filho ter,
plantar em fecundo chão
e um livro bom, escrever!

Nesta vida tão inquieta,
o meu consolo é pescar.
Sou pescadora – poeta,
que pesca versos no mar!

Numa troca de carinhos,
dois sorrisos se irmanaram,
e os dois, antes, tão sozinhos,
juntos, pra sempre, ficaram !
O brigadiano velhinho
gemia e quase chorava,
quando a velha, de mansinho,
seu cacetete... lustrava!  
 
Olhando o mar, eu diviso,
a areia branca a esperar
um beijo feito sorriso,
que as mansas ondas vêm dar!

Olhava o mar com temor,
numa espera preocupada:
nem peixes...nem pescador!
Tão só o vazio do nada!
O magro e a magra dançando...
Osso com osso batia...
E quem estava escutando
pensava ser bateria...

O magro era tão magrinho,
magrinho de fazer dó...
seu pijama listradinho
era de uma listra só!

O mais bonito sorriso,
que eu ganhei, cheio de afeto,
revelar nem é preciso !
Foi do meu primeiro neto!

O meu viver enfadonho,
só de amarguras composto,
põe as rugas do meu sonho
sobre as rugas do meu rosto!

O trovador que em verdade,
faz da trova uma oração,
coloca com amizade
“A trova no Coração”!

Para mim, não há segredos,
meu mar, de infinito azul,
nós convivemos sem medos,
nas belas praias do Sul!

Quero cantar pelo espaço
e, nas estrelas, rever
todas as trovas que eu faço.
Trova é prece em meu viver!

Sou pescador de ilusões,
e nesse pescar me ponho,
conquistando corações
com os anzóis do meu sonho!

Sou tão triste e tão sozinha,
que o eco do meu lamento,
desta saudade tão minha,
escuto na voz do vento!

Um bombeiro consciente,
alto, loiro, bonitão,
apaga o fogo da gente
mesmo sem água na mão!

Um gemido de dar medo,
eu ouvi... que coisa estranha!
Cravou o espeto no dedo,
em vez de ser na picanha! 

 Um segredo que me assusta:
-Não saber, se após a morte,
há uma vida boa e justa,
que não dependa da sorte!

Vamos a vida encantar
com nossa Trova querida,
e na Trova, então cantar,
um hino de amor à vida!

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 14

CAPÍTULO CV / OS BRAÇOS

No mais, tudo corria bem. Capitu gostava de rir e divertir-se, e, nos primeiros tempos, quando íamos a passeios ou espetáculos, era como um pássaro que saísse da gaiola. Arranjava-se com graça e modéstia. Embora gostasse de jóias, como as outras moças, não queria que eu lhe comprasse muitas nem caras, e um dia afligiu-se tanto que prometi não comprar mais nenhuma; mas foi só por pouco tempo.

A nossa vida era mais ou menos plácida. Quando não estávamos com a família ou com amigos, ou se não íamos a algum espetáculo ou serão particular (e estes eram raros) passávamos as noites à nossa janela da Glória, mirando o mar e o céu, a sombra das montanhas e dos navios, ou a gente que passava na praia. As vezes, eu contava a Capitu a história da cidade, outras dava-lhe notícias de astronomia; notícias de amador que ela escutava atenta e curiosa, nem sempre tanto que não cochilasse um pouco. Não sabendo piano, aprendeu depois de casada, e depressa, e daí a pouco tocava nas casas de amizade. Na Glória era uma das nossas recreações; também cantava, mas pouco e raro, por não ter voz; um dia chegou a entender que era melhor não cantar nada e cumpriu o alvitre. De dançar gostava, e enfeitava-se com amor quando ia a um baile; os braços é que... Os braços merecem um período.

Eram belos, e na primeira noite que os levou nus a um baile, não creio que houvesse iguais na cidade, nem os seus, leitora, que eram então de menina, se eram nascidos, mas provavelmente estariam ainda no mármore, donde vieram, ou nas mãos do divino escultor. Eram os mais belos da noite, a ponto que me encheram de desvane acontecimento. Conversava mal com as outras pessoas, só para vê-los, por mais que eles se entrelaçassem aos das casacas alheias. lá não foi assim no segundo baile; nesse, quando vi que os homens não se fartavam de olhar para eles, de os buscar, quase de os pedir, e que roçavam por eles as mangas pretas, fiquei vexado e aborrecido. Ao terceiro não fui, e aqui tive o apoio de Escobar, a quem confiei candidamente os meus tédios, concordou logo comigo.

--Sanchinha também não vai, ou irá de mangas compridas; o contrário parece-me indecente.

--Não é? Mas não diga o motivo; hão de chamar-nos seminaristas. Capitu já me chamou assim.

Nem por isso deixei de contar a Capitu a aprovação de Escobar.

Ela sorriu e respondeu que os braços de Sanchinha eram mal feitos, mas cedeu depressa, e não foi ao baile; a outros foi, mas levou-os meio vestidos de escumilha ou não sei que, que nem cobria nem descobria inteiramente, como o cendal de Camões.

CAPÍTULO CVI / DEZ LIBRAS ESTERLINAS

Eu já disse que era poupada, ou fica dito agora, e não só de dinheiro mas também de cousas usadas, dessas que se guardam por tradição, por lembrança ou por saudade. Uns sapatos, por exemplo, uns sapatinhos rasos de fitas pretas que se cruzavam no peito do pé e princípio da perna, os últimos que usou antes de calçar botinas, trouxe-os para casa, e tirava-os de longe em longe da gaveta da cômoda, com outras velharias, dizendo-me que eram pedaços de criança. Minha mãe, que tinha o mesmo gênio, gostava de ouvir falar e fazer assim. Quanto às puras economias de dinheiro, direi um caso, e basta.

Foi justamente por ocasião de uma lição de astronomia, à Praia da Glória. Sabes que alguma vez a fiz cochilar um pouco. Uma noite perdeu-se em fitar o mar, com tal força e concentração, que me deu ciúmes.

--Você não me ouve, Capitu.

--Eu? Ouço perfeitamente.

--O que é que eu dizia?

--Você...você falava de Sírius.

--Qual Sírius, Capitu. Há vinte minutos que eu falei de Sírius.

--Falava de... falava de Marte, emendou ela apressada.

Realmente, era de Marte, mas é claro que só apanhara o som da palavra, não o sentido. Fiquei sério, e o ímpeto que me deu foi deixar a sala, Capitu, ao percebê-lo, fez-se a mais mimosa das criaturas, começou-me na mão, confessou-me que estivera contando, isto é, somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava. Tratava-se de uma conversão de papel em ouro. A princípio supus que era um recurso para desenfadar-me, mas daí a pouco estava eu mesmo calculando também, já então com papel e lápis, sobre o joelho, e dava a diferença que ela buscava.

-- Mas que libras são essas? perguntei-lhe no fim.

Capitu fitou-me rindo, e replicou que a culpa de romper o segredo era minha. Ergueu-se, foi ao quarto e voltou com dez libras esterlinas, na mão; eram as sobras do dinheiro que eu lhe dava mensalmente para as despesas.

-- Tudo isto?

--Não é muito, dez libras só; é o que a avarenta de sua mulher pôde arranjar, em alguns meses, concluiu fazendo tinir o ouro na mão.

-- Quem foi o corretor?

-- O seu amigo Escobar.

--Como é que ele não me disse nada?

--Foi hoje mesmo.

-- Ele esteve cá?

--Pouco antes de você chegar; eu não disse para que você não desconfiasse.

Tive vontade de gastar o dobro do ouro em algum presente comemorativo, mas Capitu deteve-me. Ao contrário, consultou-me sobre o que havíamos de fazer daquelas libras.

--São suas, respondi.

--São nossas, emendou.

--Pois você guarde-as.

No dia seguinte, fui ter com Escobar ao armazém, e ri-me do segredo de ambos. Escobar sorriu e disse-me que estava para ir ao meu escritório contar-me tudo. A cunhadinha (continuava a dar este nome a Capitu) tinha-lhe falado naquilo por ocasião da nossa última visita a Andaraí, e disse-lhe a razão do segredo.

--Quando contei isto a Sanchinha, concluiu ele, ficou espantada:

"Como é que Capitu pode economizar, agora que tudo está tão caro?"--"Não sei, filha; sei que arranjou dez libras."

--Vê se ela aprende também.

--Não creio; Sanchinha não é gastadeira, mas também não poupada; o que lhe dou chega, mas só chega.

Eu, depois de alguns instantes de reflexão:

--Capitu é um anjo!

Escobar concordou de cabeça, mas sem entusiasmo, como quem sentia não poder dizer o mesmo da mulher. Assim pensarias m também, tão certo é que as virtudes das pessoas próximas nos dão te ou qual vaidade, orgulho ou consolação.

CAPÍTULO CVII / CIÚMES DO MAR

Se não fosse a astronomia, não descobriria eu tão cedo as dez libras de Capitu; mas não é por isso que torno a ela, é para que não cuides que a vaidade de professor é que me fez padecer com a desatenção de Capitu e ter ciúmes do mar. Não, meu amigo. Venho explicar-te que tive tais ciúmes pelo que podia estar na cabeça de minha mulher, não fora ou acima dela. É sabido que as distrações de uma pessoa podem ser culpadas, metade culpadas, um terço, um quinto, um décimo de culpadas, pois que em matéria de culpa a graduação é infinita. A recordação de uns simples olhos basta para fixar outros que os recordem e se deleitem com a imaginação deles. Não é mister pecado efetivo e mortal, nem papel trocado, simples palavra, aceno, suspiro ou sinal ainda mais miúdo e leve. Um anônimo ou anônima que passe na esquina da rua faz com que metamos Sírius dentro de Marte, e tu sabes, leitor, a diferença que há de um a outro na distancia e no tamanho, mas a astronomia tem dessas confusões. Foi isto que me fez empalidecer, calar e querer fugir da sala para voltar, Deus sabe quando; provavelmente, dez minutos depois. Dez minutos depois, estaria eu outra vez na sala, ao piano ou à janela, continuando a lição interrompida:

--Marte está a distancia de...

Tão pouco tempo? Sim, tão pouco tempo, dez minutos. Os meus ciúmes eram intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco ou menos reconstruiria o céu, a terra e as estrelas.

A verdade é que fiquei mais amigo de Capitu, se era possível, ela ainda mais meiga, o ar mais brando, as noites mais claras, e Deus mais Deus. E não foram propriamente as dez libras esterlinas que fizeram isto, nem o sentimento de economia que revelavam e que eu conhecia, mas as cautelas que Capitu empregou para o fim de descobrir-me um dia o cuidado de todos os dias. Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais íntimas.

CAPÍTULO CVIII / UM FILHO

Pois nem tudo isso me matava a sede de um filho, um triste menino que fosse, amarelo e magro, mas um filho, um filho próprio da minha pessoa. Quando íamos a Andaraí e víamos a filha de Escobar e Sancha, familiarmente Capituzinha, por diferençá-la de minha mulher, visto que lhe deram o mesmo nome à pia, ficávamos cheios de invejas. A pequena era graciosa e gorducha, faladeira e curiosa. Os pais, como os outros pais, contavam as travessuras e agudezas da menina, e nós, quando voltávamos à noite para a Glória, vínhamos suspirando as nossas invejas, e pedindo mentalmente ao céu que no-las matasse...

...As invejas morreram, as esperanças nasceram, e não tardou que viesse ao mundo o fruto delas. Não era escasso nem feio, como eu já pedia, mas um rapagão robusto e lindo.

A minha alegria quando ele nasceu, não sei dizê-la; nunca a tive igual, nem creio que a possa haver idêntica, ou que de longe ou de perto se pareça com ela. Foi uma vertigem e uma loucura. Não cantava na rua por natural vergonha, nem em casa para não afligir Capitu convalescente. Também não caía, porque há um deus para os pais novos. Fora, vivia com o espírito no menino; em casa, com os olhos a observá-lo, a mirá-lo, a perguntar-lhe donde vinha, e por que é que eu estava tão inteiramente nele, e várias outras tolices sem palavras, mas pensadas ou deliradas a cada instante. Talvez perdi algumas causas no toro por descuido.

Capitu não era menos terna para ele e para mim. Dávamos as mãos um ao outro, e, quando não olhávamos para o nosso filho, conversávamos de nós, do nosso passado e do nosso futuro. As horas de maior encanto e mistério eram as de amamentação. Quando eu via o meu filho chupando o leite da mãe, e toda aquela união da natureza para a nutrição e vida de um ser que não fora nada, mas que o nosso destino afirmou que seria, e a nossa constância e o nosso amor fizeram que chegasse a ser. ficava que não sei dizer nem digo; positivamente não me lembra, e receio que o que dissesse me saísse escuro. Escusai minúcias. Assim que, não é preciso contar a dedicação da minha mãe e de Sancha, que também foi passar com Capitu os primeiros dias e noites. Quis rejeitar o obséquio de Sancha; respondeu me que eu não tinha nada com isso; também Capitu, em solteira, fora tratá-la à Rua dos Inválidos.

--Não se lembra que o senhor foi lá vê-la?

--Lembra-me; mas Escobar...

--Eu virei jantar com vocês, e às noites sigo para Andaraí; oito dias, e está tudo passado. Bem se vê que você é pai de primeira viagem.

--Também você- onde está a segunda?

Usávamos então estas graças em família. Hoje, que me recolhi à minha casmurrice, não sei se ainda há tal linguagem, mas deve haver. Escobar cumpriu o que disse; jantava conosco, e ia-se à noite. Sobre tarde descíamos à praia ou íamos ao Passeio Público, fazendo ele os seus cálculos, eu os meus sonhos. Eu via o meu filho médico, advogado, negociante, meti-o em várias universidades e bancos, e até aceitei a hipótese de ser poeta. A possibilidade de político foi consultada, e cri que me saísse orador, e grande orador.

--Pode ser, redargüia Escobar; ninguém diria o que veio a se Demóstenes.

Escobar acompanhava muita vez as minhas criancices; também interrogava o futuro. Chegou a falar da hipótese de casar o pequeno com a filha. A amizade existe; esteve toda nas mãos com que apertei as de Escobar, ao ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com que ali assinei o pacto, estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com grande força. Aceitei a lembrança, e propus que os encaminhássemos a este fim, pela educação igual e comum, pela infância unida e correta.

Era minha idéia que Escobar fosse padrinho do pequeno; a madrinha devia ser e seria minha mãe. Mas a primeira parte se trocou por intervenção do tio Cosme, que, ao ver a criança, disse-lhe entre outros carinhos:

--Anda, toma a bênção a teu padrinho, velhaco.

E, voltando-se para mim:

--Não desisto do favor; e há de ser depressa o batizado, antes que a minha doença me leve de vez.

Contei discretamente a anedota a Escobar, para que ele me compreendesse e desculpasse; riu-se e não se magoou. Fez mais, quis que o almoço do batizado fosse na chácara dele, e foi. Eu ainda tentei espaçar a cerimônia a ver se tio Cosme sucumbia primeiro à doença, mas parece que esta era mais de aborrecer que de matar. Não houve remédio senão levar o menino à pia, onde se lhe deu o nome de Ezequiel; era o de Escobar, e eu quis suprir deste modo a falta de compadrio.

CAPÍTULO CIX / UM FILHO ÚNICO

Ezequiel, quando começou o capítulo anterior, não era ainda gerado; quando acabou era cristão e católico. Este outro é destinado a fazer chegar o meu Ezequiel aos cinco anos, um rapagão bonito, com os seus olhos claros, já inquietos, como se quisessem namorar todas as moças da vizinhança, ou quase todas.

Agora, se considerares que ele foi único, que nenhum outro veio, certo nem incerto, morto nem vivo, um só e único, imaginarás os cuidados que nos deu, os sonos que nos tirou, e que sustos nos meteram as crises dos dentes e outras, a menor febrícula, toda a existência comum das crianças. A tudo acudíamos, segundo cumpria e urgia, cousa que não era necessário dizer, mas há leitores tão obtusos, que nada entendem, se lhes não relata tudo e o resto. Vamos ao resto.

CAPÍTULO CX / RASGOS DA INFÂNCIA

O resto come-me ainda muitos capítulos; há vidas que os têm menos, e fazem-se ainda assim completas e acabadas.

Aos cinco e seis anos, Ezequiel não parecia desmentir os meus sonhos da Praia da Glória- ao contrário, adivinhavam-se nele todas as vocações possíveis, desde vadio até apóstolo. Vadio é aqui posto no bom sentido, no sentido de homem que pensa e cala; metia-se às vezes consigo, e nisto fazia lembrar a mãe, desde pequena. Assim também, agitava-se todo e instava por ir persuadir às vizinhas que os doces que eu lhe trazia eram doces deveras; não o fazia antes de farto deles, mas também os apóstolos não levam a boa doutrina senão depois de a terem toda no coração. Escobar, bom negociante, opinava que a causa principal desta outra inclinação, talvez fosse convidar implicitamente as vizinhas a igual apostolado, quando os pais lhe trouxessem doces; e ria-se da própria graça, e anunciava-me que o faria seu sócio.

Gostava de música, não menos que de doce, e eu disse a Capitu que lhe tirasse ao piano o pregão do preto das cocadas de Matacavalos...

--Não me lembra.

--Não diga isso; você não se lembra daquele preto que vendia doce, às tardes...

--Lembra-me de um preto que vendia doce, mas não sei mais da toada.

-- Nem das palavras?

--Nem das palavras.

A leitora, que ainda se lembrará das palavras, dado que me tenha lido com atenção, ficará espantada de tamanho esquecimento, tanto mais que lhe lembrarão ainda as vozes da sua infância e adolescência haverá olvidado algumas, mas nem tudo fica na cabeça. Assim me replicou Capitu, e não achei tréplica. Fiz, porém, o que ela não esperava; corri aos meus papéis velhos. Em S. Paulo, quando estudante, pedi a um professor de música que me transcrevesse a toada do pregão; ele o fez com prazer (bastou-me repetir-lho de memória), e eu guardei o papelinho; fui procurá-lo. Daí a pouco interrompi um romance que ela tocava, com o pedacinho de papel na mão. Expliquei-lho- ela teclou as dezesseis notas.

Capitu achou à toada um sabor particular, quase delicioso- contou ao filho a história do pregão, e assim o cantava e teclava. Ezequiel aproveitou a música para pedir-me que desmentisse o texto dando-lhe algum dinheiro.

Fazia de médico de militar, de ator e bailarino. Nunca lhe dei oratórios; mas cavalos de pau e espada à cinta eram com ele. Já não falo dos batalhões que passavam na rua, e que ele corria a ver; todas as crianças o fazem. O que nem todas fazem é ter os olhos que esta tinha. Em nenhuma vi as ansias de gosto com que assistia à passagem da tropa e ouvia tocar a marcha dos tambores.

-- Olha, papai! olha!

--Estou vendo, meu filho!

-- Olha o comandante! Olha o cavalo do comandante! Olha os soldados!

Um dia amanheceu tocando corneta com a mão- dei-lhe uma cornetinha de metal. Comprei-lhe soldadinhos de chumbo, gravuras de batalhas que ele mirava por muito tempo, querendo que lhe explicasse uma peça de artilharia, um soldado caído, outro de espada alçada, e todos os seus amores iam para o de espada alçada. Um dia (ingênua idade!), perguntou-me impaciente:

-- Mas, papai, por que é que ele não deixa cair a espada de uma vez?

-- Meu filho, é porque é pintado.

-- Mas então por que é que ele se pintou?

Ri-me do engano e expliquei-lhe que não era o soldado que se tinha pintado no papel, mas o gravador, e tive de explicar também o que era gravador e o que era gravura: as curiosidades de Capitu, em suma.

Tais são os principais rasgos da infância: mais um e acabo o capítulo Um dia. na chácara de Escobar, deu com um gato que tinha um rato atravessado na boca. O gato nem deixava a presa, nem via por onde fugisse. Ezequiel não disse nada, deteve-se, acocorou-se, e ficou olhando. Ao vê-lo assim atento, perguntamos-lhe de longe o que era; fez-nos sinal que nos calássemos. Escobar concluiu:

--Vão ver que é o gato que apanhou algum rato. Os ratos continuam a infestar-me a casa, que é o diabo. Vamos ver Capitu quis também ver o filho; acompanhei-os. Efetivamente, era um gato e um rato, lance banal, sem interesse nem graça. A única circunstancia particular era estar o rato vivo, esperneando, e o meu pequeno enlevado. De resto, o instante foi curto. O gato, logo que sentiu mais gente, dispôs-se a correr; o menino, sem tirar-lhe os olhos de cima, fez-nos outro sinal de silêncio; e o silêncio não podia ser maior. Ia dizer religioso, risquei a palavra, mas aqui a ponho outra vez, não só por significar a totalidade do silêncio, mas também porque havia naquela ação do gato e do rato alguma cousa que prendia com ritual. O único rumor eram os últimos guinchos do rato, aliás frouxíssimos- as pernas mal se lhe moviam e desordenadamente. Um tanto aborrecido, bati palmas para que o gato fugisse, e o gato fugiu. 0s outros nem tiveram tempo de atalhar-me, Ezequiel ficou abatido.

--Ora, papai!

--Que foi? A esta hora o rato está comido.

--Pois sim, mas eu queria ver.

Os dous riram-se; eu mesmo achei-lhe graça.
–––––––––––
continua…

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Elisabeth Souza Cruz (Caderno de Trovas)

A minha luz se consagre
nos momentos de tristeza...
Não peço a Deus um milagre...
peço apenas... fortaleza!

Bebo lembranças em tragos,
ao ponto da embriaguez,
para curar os estragos
que a tua ausência me fez!

Cabelo é um negócio louco...
Há divergências fatais:
- Na cabeça, um fio é pouco;
mas... na sopa... ele é demais!!!

Declarar-me não me atrevo,
com palavras mais ousadas...
E assim os versos que escrevo
são propostas camufladas!...

Deixo a roça na estação,
trouxe os sonhos na bagagem,
mas a cidade é a impressão
de que eu perdi a viagem!

Do nosso amor resta o embate
neste deserto onde eu morro,
pois teu regresso é o resgate
que não chega em meu socorro!

Essa renúncia inimiga
que diz não, se eu quero sim,
é uma voz fazendo intriga
quando responde por mim!

É surpresa repetida,
surpresa mesmo... e bendigo
cada instante em minha vida
me repetindo contigo!

Eu não me prendo à verdade
e à razão sempre me imponho,
porque toda a realidade
antes de tudo foi sonho!

Eu não temo o breu da estrada
 se a tristeza não transponho,
 porque há sempre uma alvorada
 na alegria do meu sonho!

Feito internauta voraz,
tu clicas minha paixão,
e eu não sou sequer capaz
de deletar a intenção!

Lá na praça do Suspiro,
o vovô, todo em genérico:
-Eu tento, assanho e transpiro,
mas quem sobe é o Teleférico!

Na angústia que me consome
neste amor de insanidade,
a minha pressa tem nome
e ela se chama...saudade!

Não quero fama nem glória,
dispenso os bens de valor,
para ter na minha história
o prêmio do teu amor!

Nem mesmo a ilusão remenda,
com seus fios de saudade,
os velhos sonhos de renda
que eu teci na mocidade!

No desfile à fantasia,
de um carnaval de ilusão,
a saudade é a alegoria
que enfeita meu coração!

Nosso amor chegou no estágio
 de pouca briga e... eu pressinto
 que esse marasmo é presságio
 de amor... que está quase extinto!

Num recanto bem singelo,
 sem luxo ou bens de valor,
 meu rancho vira um castelo
 quando reina o teu amor!

Orgulho bobo... vaidade,
capricho do amor sobejo...
Eu morrendo de saudade,
fingir que não te desejo!

O trânsito interrompido,
muitas frutas pelo chão...
E o bebum, ao ser punido:
-“Foi batida de limão!”

Por mais que eu seja refém
da pressa do teu abraço,
meu sonho não vai além
da pequenez do meu passo!

Pouco importa que tu venhas
apressado, em teu fulgor,
pois trazes contigo as senhas
para os feitiços do amor!

Qualquer que seja o motivo
que a razão nos tente impor,
não se passa o corretivo
quando um erro é por amor!

Quando o orgulho é o timoneiro
 das viagens da paixão,
 qualquer que seja o roteiro,
 não encontra a direção!

Saudade, velho retrós,
 guarda os fios, dia a dia...
 Quando quer soltar a voz,
 desenrola a nostalgia!

Sendo a voz de toda gente,
a Imprensa firme não cala
e quanto mais coerente
bem mais forte é a sua fala!

Se o teu amor foi miragem
no deserto da paixão,
que importa... me deu passagem
para o oásis da ilusão.

Tu me propões cessar fogo
e eu te proponho atiçar,
porque o nosso amor é um jogo
que é fogo de se apagar!

Vivo em constante conflito
entre o delírio e a razão:
- Meu sonho alcança o infinito,
meus pés... tropeçam no chão!

Fontes:
José Feldman (org.). Rio de Janeiro Trovadoresco. Coleção Memória Viva.
Resultados de Concursos.

Anônimo (Contos do Tio Emmett: Cinderbella)

Era mais um dia de chuva na casa dos Cullen. Eu estava feliz, é claro.

O motivo?

Simples!

Meu irmão havia voltado a confiar em mim. Então éramos só eu e minha pequena sobrinha, Renesmee.

A coisa fofa do titio estava fissurada por livros. Culpa de Bella. Essas crianças de hoje em dia e essa mania por livros… Se eu tivesse um filho (e que Rosalie não leia isto), eu daria um videogame. Boa época do Super Nintendo. Eu ficava horas jogando com a Rose. Quer dizer… Ela gostava de Mortal Kombat, Street Fighter. Eu gostava mesmo é de Super Mario. Nossa, eu amava aquele dinossaurozinho, o Yoshi. Eu sempre quis um, mas eles não existem.

Aí Carlisle me deu umas tartaruguinhas pra compensar. Como ele não me deixou pintar os cascos de vermelho, azul, verde e amarelo, eu fiz umas roupinhas legais e dei nome a elas: Donatello, Rafael, Leonardo e Emmett. Edward me perguntou por que eu não coloquei o nome de Michelangelo no último… É que certa vez eu e Rose fomos pro Vaticano, eu vi a tal Capela Sistina e achei aquilo uma ofensa… Eu pinto melhor que aquele cara!

Ahhh, o Vaticano… Foi bem legal. Até certo ponto. Eu estava entediado, e resolvi fazer umas configurações no local… Resolvi apontar várias obras de arte interligadas. A última foi uma pomba apontada pra uma Igreja cheia de anjos… Gostos de anjos, me lembram a Rose… Mas, enfim. Depois de alguns anos um cara aí, Brown… Brown… Carlinhos Brown, creio eu, escreveu uma história sobre a minha obra de arte e disse que um tal de Illumi sei lá o quê que fez um caminho pra a Igreja de não sei das quantas … Eu deveria ter escrito, afinal… Eu sou o melhor contador de histórias…

E falando em contar histórias… Bom, Renesmee estava entediada. Desde a nossa última visita a Disney, a tia louca dela (também conhecida por Alice) resolveu encher a menina dessas coleções princesas. Acho tudo sem sentido… Nenhuma é mais bonita que a Rose.

Ai, a Rose… Ela é tão linda… Tão loira, tão alta, tão esguia, tão bruta… Nem parece com aquela Amélia da Cinderella. Renesmee devia estar pensando a mesma coisa. Estava lendo o livro quando deu um grande suspiro e disse:

- Tio Emmett, mas que coisa sem graça, não é? Acho que podemos fazer melhor…

- Também acho. – eu respondi. – Quer ouvir a história da Cinderbella?

- É pra isso que eu estou aqui, não é? – ela sorriu.

- Então, vamos lá. “Era uma vez uma menininha muito desastrada chamada Cinderbella. Após sua mãe ter partido…”

- A mãe dela morreu, tio Emmett? – Renesmee me interrompeu.

- Não… Ela foi embora pra casar com um rapaz mais novo, forte e atlético. Mas, por favor, não interrompa o titio, está bem? – eu pedi. Ela balançou a cabeça, concordando. – Então, tudo bem… “Após ter o coração partido, o pai da Cinderbella casou com uma mulher de pele vermelha chamada Sue. Sue possuía duas filhas chatas: Leah e Setheah…”

- Seth é um menino, tio Emmett. – Renesmee disse.

- É um mero detalhe… Queria que eu colocasse quem no lugar, Pocahontas, Paraguaçu, Iracema? Além do mais, Seth ficaria mais bonitinho vestido de mulher do que seu tio Jazz. – eu disse na segurança de que meu irmão não estaria em casa para ouvir e ficar depressivo novamente. Da última vez Edward ficou meia hora falando “você é uma mulher bonita, forte e poderosa” para ele se acalmar. Antes que vocês pensem “Jasper virou gay?”. Não… Ele não virou. Mas acho Jasper tem problema de auto-estima, aí precisamos incentivá-lo.

- E o Jake? Vai entrar na história? – Nessie me perguntou.

- Talvez quando eu ler os três porquinhos… – eu disse, sabendo que no final o lobo acabava com o traseiro queimado pela chaminé do último porquinho… Não sei se na história verdadeira é assim, mas a minha com certeza é mais divertida. – Agora, por favor, não interrompa o titio, está bem? Onde eu estava? Bem… “Como o seu pai passava o dia trabalhando e os finais de semana em um reino não tão distante, mas menos legal chamado La Push, Cinderbella passava o dia inteiro lavando, passando, cozinhando, e lendo livros antigos e empoeirados a mando da sua madrasta.”

- Ah, tio, a Sue é legal.

- Meu anjo, eu sei que a Sue verdade é legal… Assim como a Rose de verdade é um amor de pessoa… Mas você não quer que a história renda? Eu sei que há Quileutes piores do que ela…

- Como quem? – ela perguntou, cruzando os bracinhos e me olhando feio.

- Prefiro não comentar… Posso continuar? – eu disse, olhando um tanto quanto nervoso para ela. Ela fez que sim. – “Cinderbella tinha duas irmãs, como eu já disse, antes que a minha sobrinha me interrompa para dizer ‘você já falou isso antes, tio Emmett’.” – eu disse, enquanto ela abria a boquinha para interromper. Eu não precisava ser Alice ou Edward. Nessie era tão previsível… – “Leah, a mais velha, era a criatura mais mal amada do reino. Nada agradava a menina… Tudo era feio, amargo, cinza… Já a pequena Setheah, bem, esta era uma pirralha chata e curiosa, mas tinha um bom coração e tinha um objetivo na vida… Ser a melhor amiga do príncipe Edward.”

- Gostei bastante desse nome. Príncipe Edward. – Nessie falou. Claro… Nós assistimos Encantada juntos. Ai Ai, o Pip era um esquilinho muito fofinho…

-É… É…dá pro gasto. “Então, Cinderbella, por causa da fumaça da lareira, ficou intoxicada e começou a ter alucinações. Acreditava que falava com os animaizinhos da casa e a eles deu os nomes de Rose, uma ratinha branca e rabugenta; Emmett, um rato castanho e bem forte e Jasper, um rato amarelo claro que não interagia e ficava no seu canto, com medo dos humanos… Certo dia veio um decreto do rei Carlisle e da Rainha Esme. O príncipe Edward convidaria todas as moças do reino para o baile.

‘Vou conhecer o príncipe Edward! Vou virar a melhor amiga dele e poderemos brincar juntos, caçar, pescar, nos divertir, conversar até a hora de dormir…’ …”

- A Setheah parece com tia Alice falando… – Renesmee riu. Uma ótima colocação… Ambos eram extremamente empolgados. Isso me assustava.

- Sua colocação foi pertinente, Renesmee… – eu disse, um tanto pomposo.

- Aprendeu essa palavra quando titio? – ela me perguntou.

- Ontem, quando Carlisle disse que não era pertinente eu construir um túnel que fosse daqui até a casa de Mike Newton…

- E porque você quer ir até a casa dos Newton? – ela me perguntou.

- Nessie, porque você acha que Mike Newton tem tanto medo da nossa família? Eu passei dois anos indo todos os domingos até a casa dele enquanto ele dormia. Mas não para olhar ele dormir, como seu pai fazia com sua mãe… Eu ia até o quarto dele e dizia: Os Cullen vão te pegar…

- Ai que maldade, titio… – ela disse, me lançando um olhar desaprovador. Maldade, nada… Engraçado foi quando eu disse que Bella gostaria dele se ele fosse sem pentear os cabelos pra escola. Todos achavam que ele estava imitando Edward… Patético. Uma pena Edward e Alice terem barrado a outra etapa do meu plano: fazer Mike Newton se vestir como Rosalie…

- Pois bem, você quer que eu continue a história ou não? “Leah também decidiu ir para acompanhar a sua irmã e sua mãe, na intenção de estragar a festa alheia.

‘Você não vai ao baile, Cinderbella’ A Madrasta disse.

‘Mas eu nem pedi pra ir… Eu tenho que ir a Seattle e…’ Cinderbella começou a dizer.

‘ Não insista, você ficará em casa, ouvindo seus ratinhos que não falam igual ao Pip, o esquilo da casa da vizinha’.

‘Mas… Mas…’ – ela tentou contestar. ‘Ai, esquece, vou visitar o Jasper. Talvez ele me influencie a chorar a desgraça do mundo. ’ Cinderbella seguiu até o sótão e se pôs a falar com os ratinhos. ‘Eu nem queria ir a essa festa, sabe? Eu nem gosto de bailes… Mas eu queria conhecer o príncipe Edward… Dizem que ele tem um topete bronze tão bonito, uma cara de tédio tão misteriosa e um nariz tortinho bastante charmoso.’

‘Sua idiota, fuja de casa, vá e não me amole’ Cinderbella imaginou que a ratinha Rose disse. De repente, surgiu uma coisa maravilhosamente brilhante no ar.”

- A fada madrinha? – Os olhinhos de Nessie brilharam…

- Nessie, qual foi a única pessoa da família que não apareceu na história? – Tia Alice? – ela perguntou, adivinhando.

- Sim. Sua tia Alice tem porte físico pra ser a fada Madrinha? Claro que não. Quem apareceu foi a Aliceninho, a fada do Peter Pan.

- Ah… E o Peter Pan?

- Calma… “Então a Aliceninho apareceu, juntamente com Peter Pan.

‘Não chore, minha criança.’ Aliceninho disse. ‘Estamos aqui pra te ajudar. Eu, a fada minúscula e Peter Pan, o menino que nunca irá envelhecer…’

‘Ele nunca vai envelhecer?’ Cinderbella perguntou, ao ver a cara de alegria do garoto vestido de verde em sua frente.

‘Não!’ ele respondeu empolgado.

‘MISERÁVEL!!!!!!’ Cinderbella disse, pegando um taco de baseball e correndo atrás do menino voador.

‘Ela é sempre agressiva assim?’ a fada perguntou ao rato Emmett.

‘Só quando ela conversa com a Rose. Ou quando falam de seres que não vão envelhecer’ o charmoso rato Emmett disse.

‘Ah’. A fada suspirou.

Quando finalmente conseguiu tacar o bastão na cabeça do Peter Pan, Cinderbella concordou que a fada a arrumasse para o baile.

‘Vai usar sua varinha de condão? Seu pó de pirlimpimpim?’ Cinderbella perguntou.

‘Melhor. Vou usar meus contatos com etilistas famosos e um cartão de crédito ilimitado. ’ A fada disse, enquanto discava em seu celular dourado. ‘Alô, Donatella? Oi meu bem, aqui é a fada Aliceninho… Preciso de um vestido pra agora. As referências? Alta, magra, branca e desengonçada. Preciso de um salto fino, urgente…’

‘Prefiro um All Star…’ a Cinderbella resmungou.

‘Então separa um All Star de Cristal, por gentileza. Estou indo buscar agora. Beijos. – ela disse, desligando o telefone. – Você pode ficar bem, por cinco minutos.’

‘Sem problemas, vou conversar com meus amigos ratinhos…’

‘Leve-me com você, pelo amor de Deus’. O rato Jasper implorou a fada, mas esta já havia ido. Ao se deparar na presença de uma humana, Jasper entrou em pânico e correu para sua toca, permanecendo até o fim da noite.

Passados cinco minutos, a fada Aliceninho chegou, trazendo um vestido vermelho rendado com preto e um All Star de cristal cano longo.

‘Hum… Está bem. ’ Aliceninho disse. ‘Mas tem que voltar para casa a meia noite’.

‘Meia noite por quê?’ Cinderbella quis saber.

‘Tome vergonha, o que uma moça de família quer no castelo dos outros mais de meia noite? Você volte pra cá esse horário e pronto.E não beba. Você já é desorientada sem álcool, imagine bebendo’. A rata Rosalie resmungou.

‘Meia noite, então’. Cinderbella concordou. ‘Então… Quer uma abóbora ou algo assim para transformar em carruagem, ou precisa dos ratinhos para transformar em cavalos?’

‘Veja lá quem você chama de égua, eu sou uma rata de nível’ a rata Rose se ofendeu. ‘Vamos embora daqui, Emmett’. Ela disse, chamando o grande rato bonito com ela.

‘Então, vamos de quê?’ Cinderbella quis saber.

‘De porsche, lógico.’ A fada Aliceninho disse. “E leve esse pozinho aí com você’ ela disse, atirando o pó de pirlipimpim.

Então, as duas entraram no Porsche e foram até o castelo.

Ao chegar ao castelo, uma garota de cabelos vermelhos estava dançando com o príncipe.

‘Lá em Andalásia, é tudo maravilhosamente lindo. Nós cantamos, dançamos, fazemos lindos duetos de canções para aquecer o coração dos aflitos. Mas não há tristeza em Andalásia, oh não! Só há alegria, música e cores’

‘Socorro’ O príncipe Edward sibilou.

‘Pra trás, ô ruiva’ Cinderbella disse, empurrando a coitada. Uma ruiva se manifestou no fundo do salão. ‘Você não, Victoria, fica na sua.’

‘Você não sabe quanto tempo esperei por você’ o príncipe Edward disse.”

- Tia Rose está certa, isso já é tão clichê. – Renesmee interrompeu.

- Puxa vida, Nessie, você estava se saindo tão bem… – eu disse, ao ser interrompido por minha sobrinha. – E você devia ter visto, foi tão bonito quando seu pai disse isso a sua mãe.

- E você estava lá?

- Bem… – Eu comecei a dizer…

- Estava, não estava?

- Sim, mas em minha defesa, estava preocupado com o bem estar de sua mãe. – … Aposto que você filmou. – ela concluiu.

- Então, e a história? Onde eu parei? – eu disse, mudando de assunto. “Cinderbella ficou encantada com a beleza do príncipe Edward e logo se apaixonou por ele. O príncipe Edward ficou encantado com o som que o coração de Cinderbella fazia, mas na realidade, era o ruído que o All Star de cristal fazia ao entrar em contato com o chão. Eles ficaram tão deslumbrados um com o outro que o príncipe esqueceu de perguntar o nome da Cinderbella… Ao soar meia noite, Cinderbella disse que precisava ir embora.

‘ Por favor, não vá ainda. Fique aqui comigo para sempre!’

‘Tudo bem!’ ela respondeu, feliz. Mas aí, seu celular acusou uma mensagem de texto. ‘Um torpedo, a essa hora? De quem será?’

‘Está pensando que aqui é a Casa da mãe Joana, que você entra a hora que quiser? Venha agora, se não eu tranco a casa e você dormirá na rua. Emmett pediu para trazer docinhos da festa. Você levou uma bolsa… Se vire! Rose’. A mensagem dizia.

‘Tenho que ir…’ ela disse, descendo as escadas e tomando uma queda, rolando escadaria abaixo, atravessando uma janela e caindo sentada no Porsche de sua fada.

‘Recebi uma mensagem da Rose.’ Cinderbella disse.

‘É, eu sei… Vamos?’ a fada disse, arrancando o carro.

Príncipe Edward desceu as escadas atrás da Cinderbella, mas não encontrou nada além do All Star de Cristal. Ele cheirou e percebeu que o chulé da Cinderbella cheirava a flores.

‘Façam uma busca no reino… Vamos encontrar a dona do sapatinho.’

Então eles correram todos os cantos do reino… Subiram montanhas, desceram para a praia, foram ao deserto, mas nada de encontrar a casa da Cinderbella.

‘E agora, o que eu faço? Onde encontro a menina que deixou o tênis de aroma floral na minha escada?’

‘Ela está na casa atrás de você, idiota’. A vozinha miúda da ratinha branca disse.

‘Ahm… Obrigado criaturinha da floresta’. O príncipe agradeceu.

‘Da floresta? Eu sou uma rata elitizada, por favor… Esses humanos, eu não sei não’.

‘ Não sou humano, sou vampiro’. Ele disse.

Um longo minuto de silêncio se fez, enquanto a ratinha o encarava.

‘Problema dela…’ a ratinha disse, saindo.

O príncipe Edward bateu na casa da Cinderbella. Ao atender, Setheah disse:

‘Meu Deus, meu Deus, é o príncipe Edward. Eu sabia, eu sabia que você vinha aqui. Eu deixei um scrap ontem pra você, pedindo para você vir e tomar chá com bolachas comigo.’

‘Espera, espera, criatura pequena e empolgada que não se chama Alice, … Não tenho Orkut?’

‘Msn? Facebook? Twitter?’

‘Não…’

‘Malditos fakes’. Ela disse, correndo para o computador para apagar os convites para o príncipe e as fotos que havia mandado.

‘Cara senhora… Bom dia’. O príncipe se dirigiu à madrasta. ‘Venho procurar a dona desse tênis de cristal. Poderia testar nas suas filhas?

‘Eu primeiro’ a pequena Setheah disse.

‘Melhor não.’ O príncipe barrou.

Leah se sentou e calçou, mas seu pé era extremamente grande para caber no sapato.

‘Que seja, não queria morar naquela droga de castelo mesmo, seu fedorento’. Ela disse.

‘Há uma outra moça aqui nessa casa’.

‘Tem a Cinderbella… A Cinderbella, mamãe, chama ela, ela é uma moça e mora nessa casa. A Cinderbella está lá em cima, não quer que eu a chame? Ela vem num instantinho…’ Setheah

‘Não tem outra moça aqui.’ A madrasta disse, ignorando a filha.

‘Então, muito obrigado’. O príncipe disse, saindo.

‘Espera, príncipe Edward. Eu posso calçar o sapato?’ ouviu-se uma voz no alto da escada.

‘Eu não falei que tinha outra moça?’ Setheah disse, tomando um cascudo da mãe.

‘Fica quieta, guria.’ O príncipe disse. ‘Sim, você pode descer até aqui e calçar esse tê-ê-êee…’ ele disse, quando Leah pegou o sapato e atirou no chão, quebando-o. ‘Por que você fez isso?’

‘Estragar a felicidade alheia faz meu dia mais feliz.’ Ela disse, secamente.

‘Não tem problema, eu tenho outro…’ Cinderbella disse, descendo a escada com o sapato na mão. Mas, por uma força maior chamada gravidade, ela caiu uma a uma jaca madura, rolando até chegar ao chão, em cima do sapato, quebrando-o. ‘E agora? O que fazer?’

‘Deixa eu cheirar seu pé?’ o príncipe pediu.

‘Ihhh, podolatria aqui não’ A rata gritou de sua toca.

Ignorando os comentários da ratinha, ele cheirou o pé da menina.

‘É você!’ Ele disse, sorrindo.

‘Sim… Agora poderemos ficar juntos para sempre’.

‘Na verdade, não. Sou um vampiro… Não vou envelhecer…’

‘Você… não…não… não…. não… vai envelhecer?’

‘Bem…não’

‘Peter Pan, seu infeliz, venha aqui’

‘Por favor, não me bate, não me bate’ O Peter Pan chegou, voando de maneira fraca, como se fosse um pássaro com a asa quebrada.

‘Não quero envelhecer… Como faz?’

‘Bom…há três opções.

1) Pensamentos felizes…’
‘Esse é com a vizinha aí do lado, a tal da Giselle de Andalásia…Próximo’

‘2) O príncipe pode te morder…’

‘Sem chances’ o príncipe resmungou.

‘E tem o pó que você roubou ontem de mim…’

Sem pensar duas vezes, a menina jogou metade do saco em cima de sua cabeça.

‘Pó parar com o pó, minha filha… Vai acabar… Acha que é fácil arranjar pirlimpimpim?’ Peter Pan disse, tomando o saquinho e saindo de cena.

A pele da Cinderbella começou a ficar mais branca, fazendo sumir os hematomas da última noite. O príncipe não teve outra opção a não ser levá-la ao castelo, já que uma vez vampira, a família não aceitaria a menina de volta por causa do cheiro. Então eles foram e viveram felizes para sempre. ’”

Olhei a figurinha adormecida no sofá. Não é a toa que a menina não interrompeu. Dormiu a história toda…

Como tinha a madrugada inteira pra fazer, resolvi fazer algo de legal.

Abri a janela de casa e entoei uma linda melodia.

- Ahhhh, ahhhhh, ahhhhhhhhhh.

Vários animaizinhos da floresta vieram até a nossa casa… Mas quando me viram foram embora… Não sei por que animais não gostam dos Cullen…

Então resolvi assistir o filme que fiz de quando Bella e Edward trocaram suas primeiras juras de amor.

- Divertido isso, né? – A voz de Edward surgiu atrás de mim.

- Oh… oh…

Bom, o que Edward disse, eu vou privá-los disso. Edward pela primeira vez não foi nada cavalheiro. Acho que tem andado muito com Rose… Aprendendo palavras feias. Ainda bem que Nessie estava dormindo, imagine só. Ela é uma criança, acordar ouvindo isso… Não quero nem pensar.

Meu castigo?

- Já que você gosta tanto de escrever, vai escrever por seis dias. – disse Edward.

Então, comecei a escrever “A vida íntima de Bella e Edward não me interessa”. Mas o castigo ficou pior… Ele descobriu que eu joguei o vídeo na internet…

- EMMETT! – Edward gritou.

Então, estou eu agora, vestido de Giselle, sentado no meio da floresta, escrevendo “A vida íntima de Bella e Edward não me interessa e também a mais ninguém”… Toda vez que uma buzina toca, eu tenho que cantar Happy Working Song. Melhor começar a esconder a coleção “Bella humana”. Vai que Edward ache o filme da Ilha Esme?

Bem, Monstrinhos e Monstrinhas. A buzina vai tocar em alguns instantes, então, eu me despeço.

Com muito amor, músculos e lindos pensamentos musicais (essa roupa não está me fazendo bem)

Tio Emmett, de Andalásia.

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 13

CAPÍTULO XCVI / UM SUBSTITUTO
Expus a Capitu a idéia de José Dias. Ouviu-me atentamente. e acabou triste.

--Você indo, disse ela, esquece-me inteiramente.

--Nunca!

--Esquece. A Europa dizem que é tão bonita, e a Itália principalmente. Não é de lá que vêm as cantoras? Você esquece-me, Bentinho. E não haverá outro meio? D. Glória está morta para que você saia do seminário.

--Sim, mas julga-se presa pela promessa.

Capitu não achava outra idéia, nem acabava de adotar esta. De caminho, pediu-me que, se acaso fosse a Roma, jurasse que no fim de seis meses estaria de volta.

--Juro.

--Por Deus?

--Por Deus, por tudo. Juro que no fim de seis meses estarei de volta.

Mas se o papa não tiver ainda soltado a você? Mando dizer isso mesmo.

E se você mentir?

Esta palavra doeu-me muito, e não achei logo que lhe replicasse Capitu meteu o negócio à bulha, rindo e chamando-me disfarçado Depois, declarou crer que eu cumpriria o juramento, mas ainda assim não consentiu logo; ia ver se não haveria outra cousa. e eu que visse também por meu lado.

Quando voltei ao seminário, contei tudo ao meu amigo Escobar que me ouviu com igual atenção e acabou com a mesma tristeza da outra. Os olhos, de costume fugidios, quase me comeram de contemplação. De repente, vi-lhe no rosto um clarão, um reflexo de idéia e ouvi-lhe dizer com volubilidade:

--Não, Bentinho, não é preciso isso. Há melhor, --não dizia melhor, porque o Santo Padre vale sempre mais que tudo,--mas ha cousa que produz o mesmo efeito.

-- Que é?

--Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote não é? Pois bem, dê-lhe um sacerdote, que não seja você. Ela pode muito bem tomar a si algum mocinho órfão, fazê-lo ordenar à sua custa, está dado um padre ao altar, sem que você...

--Entendo, entendo, é isso mesmo.

--Não acha? continuou ele. Consulte sobre isto o protonotário: ele lhe dirá se não é a mesma cousa, ou eu mesmo consulto, se quer e se ele hesitar, fala-se ao Sr. bispo.

Eu, refletindo:

--Sim, parece que é isso; realmente, a promessa cumpre-se, não se perdendo o padre.

Escobar observou que, pelo lado econômico, a questão era fácil minha mãe gastaria o mesmo que comigo, e um órfão não precisaria grandes comodidades. Citou a soma dos aluguéis das casas, ... 1.070$000, além dos escravos...

--Não há outra cousa, disse eu.

--E saímos juntos.

--Você também?

--Também eu. Vou melhorar o meu latim e saio; nem dou teologia. O próprio latim não é preciso; para que no comércio?

--In hoc signo vinces, disse eu rindo.

Sentia-me pilhérico. Oh! como a esperança alegra tudo. Escobar sorriu, parecendo gostar da resposta. Depois ficamos a cuidar de nós mesmos, cada um com os seus olhos perdidos, provavelmente. Os dele estavam assim. quando tornei de longe, e agradeci de novo o plano lembrado; não podia havê-lo melhor. Escobar ouviu-me contentíssimo.

-- Ainda uma vez, disse ele gravemente, a religião c a liberdade fazem boa companhia.

CAPÍTULO XCVII / A SAÍDA

Tudo se fez por esse teor. Minha mãe hesitou um pouco, mas acabou cedendo, depois que o Padre Cabral, tendo consultado o bispo. voltou a dizer-lhe que sim, que podia ser. Saí do seminário no fim to ano.

Tinha então pouco mais de dezessete... Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase ao fim do papel, com o melhor da narração por dizer. Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pousa emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegaremos ao fim. Um dos sacrifícios que faço a esta dura necessidade é a análise das minhas emoções dos dezessete anos. Não sei se alguma vez tiveste dezessete anos. Se sim, deves saber que é a idade em que a metade do homem e a metade do menino formam um só curioso. Eu era um curiosíssimo, diria o meu agregado José Dias, e não diria mal. O que essa qualidade superlativa me rendeu não poderia nunca dizê-lo aqui, sem cair no erro que acabo de condenar; a análise das minhas emoções daquele tempo é que entrava no meu plano. Posto que filho do seminário e de minha mãe, sentia já, debaixo do recolhimento casto, uns assomos de petulância e de atrevimento; eram do sangue, mas eram também das moças que na rua ou da janela não me deixavam viver sossegado. Achavam-me lindo, e diziam-mo; algumas queriam mirar de mais perto a minha beleza, e a vaidade é um princípio de corrupção.

CAPÍTULO XCVIII / CINCO ANOS

Venceu a razão; fui-me aos estudos.

Passei os dezoito anos, os dezenove, os vinte, os vinte e um; aos vinte e dous era bacharel em Direito.

Tudo mudara em volta de mim. Minha mãe resolvera-se a envelhecer; ainda assim os cabelos brancos vinham de má vontade, aos poucos e espalhadamente; a touca, os vestidos, os sapatos rasos e surdos eram os mesmos de outrora. Já não andaria tanto de um lado para outro. Tio Cosme padecia do coração e ia descansar. A prima Justina apenas estava mais idosa. José Dias também, não tanto que me não fizesse a fineza de ir assistir à minha graduação, e descer comigo a serra, lépido e viçoso, como se o bacharel fosse ele. A mãe de Capitu falecera, o pai aposentara-se no mesmo cargo em que quis dar demissão da vida.

Escobar começava a negociar em café depois de haver trabalhado quatro anos em uma das primeiras casas do Rio de Janeiro. Era opinião de prima Justina que ele afagara a idéia de convidar minha mãe a segundas núpcias; mas, se tal idéia houve, cumpre não esquecer a grande diferença de idade. Talvez ele não pensasse em mais que associá-la aos seus primeiros tentamens comerciais, e de fato, a pedido meu, minha mãe adiantou-lhe alguns dinheiros, que ele lhe restituiu, logo que pôde, não sem este remoque: "D. Glória é medrosa e não tem ambição."

A separação não nos esfriou. Ele foi o terceiro na troca das cartas entre mim e Capitu. Desde que a viu animou-me muito no nosso amor. As relações que travou com o pai de Sancha estreitaram as que já trazia com Capitu, e fê-lo servir a ambos nós, como amigo. A princípio, custou-lhe a ela aceitá-lo, preferia José Dias, mas José Dias repugnava-me por um resto de respeito de criança. Venceu Escobar posto que vexada, Capitu entregou-lhe a primeira carta, que foi mãe e avó das outras. Nem depois de casado suspendeu ele o obséquio... Que ele casou,--adivinha com quem,--casou com a boa Sancha a amiga de Capitu, quase irmã dela, tanto que alguma vez, escrevendo-me, chamava a esta a "sua cunhadinha." Assim se formam as afeições e os parentescos, as aventuras e os livros.

CAPÍTULO XCIX / O FILHO É A CARA DO PAI

Minha mãe, quando eu regressei bacharel quase estalou de felicidade Ainda ouço a voz de José Dias, lembrando o evangelho de São João, e dizendo ao ver-nos abraçados:

-- Mulher, eis aí o teu filho! Filho, eis aí a tua mãe!

Minha mãe, entre lágrimas:

-- Mano Cosme, é a cara do pai, não é?

--Sim, tem alguma cousa, os olhos, a disposição do rosto. É o pai, um pouco mais moderno, concluiu por chalaça. E diga-me agora mana Glória, não foi melhor que ele não teimasse em ser padres Veja se este peralta daria um padre capaz.

--Como vai o meu substituto?

--Vai indo, ordena-se para o ano, respondeu tio Cosme. Hás de ir ver a ordenação; eu também, se o meu senhor coração consentir. É bom que te sintas na alma do outro, como se recebesses em ti mesmo a sagração.

--Justamente! exclamou minha mãe. Mas veja bem, mano Cosme, veja se não é a figura do meu defunto. Olha, Bentinho, olha bem para mim. Sempre achei que te parecias com ele, agora é muito mais. O bigode é que desfaz um pouco...

--Sim, mana Glória, o bigode realmente... mas é muito parecido.

E minha mãe beijava-me com uma ternura que não sei escrever Tio Cosme, para alegrá-la, chamava-me doutor, José Dias também, e todos em casa, a prima, os escravos, as visitas, Pádua, a filha, e ela mesma repetiam-me o título.

CAPÍTULO C / "TU SERÁS FELIZ, BENTINHO"

No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel de dentro da lata, ia pensando na felicidade e na glória. Via o casamento e a carreira ilustre, enquanto José Dias me ajudava calado e zeloso. Uma fada invisível desceu ali, e me disse em voz igualmente macia e cálida: "Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz."

--E por que não seria feliz? perguntou José Dias, endireitando o tronco e fitando-me.

--Você ouviu? perguntei eu erguendo-me também. espanta

--Ouviu o quê?

--Ouviu uma voz que dizia que eu serei feliz?

--É boa! Você mesmo é que está dizendo...

Ainda agora sou capaz de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas, expulsas dos contos e dos versos, meteram-se no coração da gente e falam de dentro para fora. Esta, por exemplo, muita vez a ouvi clara e distinta. Há de ser prima das feiticeiras da Escócia: "Tu serás rei, Macbeth!" -- "Tu serás feliz, Bentinho!" Ao cabo, é a mesma predição, pela mesma toada universal e eterna. Quando voltei do meu espanto, ouvi o resto do discurso de José Dias:

-- Há de ser feliz, como merece, assim como mereceu esse diploma que ali está, que não é favor de ninguém. A distinção que tirou em todas as matérias é prova disso; já lhe contei que ouvi da boca dos lentes, em particular, os maiores elogios. Demais, a felicidade não é só a glória, é também outra cousa... Ah! você não confiou tudo ao velho José Dias! O pobre José Dias está aí para um canto, é caju chupado, não vale nada; agora são os novos, os Escobares... Não lhe nego que é moço muito distinto, e trabalhador, e marido de truz; mas, enfim, velho também sabe amar...

--Mas que é?

--Que há de ser? Quem é que não sabe tudo?... Aquela intimidade de vizinhos tinha de acabar nisto, que é verdadeiramente uma bênção do céu, porque ela é um anjo, é um anjíssimo... Perdoe a cincada, Bentinho, foi um modo de acentuar a perfeição daquela moça. Cuidei o contrário, outrora; confundi os modos de criança com expressões de caráter, e não vi que essa menina travessa e já de olhos pensativos era a flor caprichosa de um fruto sadio e doce... Por que é que não me contou também o que outros sabem, e cá em casa está mais que adivinhado e aprovado?

--Mamãe aprova deveras?

--Pois então? Temos falado sobre isso, e ela fez-me o favor de pedir a minha opinião. Pergunte-lhe o que é que eu lhe disse em termos claros e positivos; pergunte-lhe. Disse-lhe que não podia desejar melhor nora para si, boa, discreta, prendada, amiga da gente... e uma dona de casa, que não lhe digo nada. Depois da morte da mãe, tomou conta de tudo. Pádua, agora que se aposentou, não faz mais que receber o ordenado e entregá-lo à filha. A filha é que distribui o dinheiro, paga as contas, faz o rol das despesas, cuida de tudo, mantimento, roupa, luz; você já a viu o ano passado. E quanto à formosura você sabe melhor que ninguém...

--Mas, deveras, mamãe consultou o senhor sobre o nosso casamento?

--Positivamente, não; fez-me o favor de perguntar se Capitu não daria uma boa esposa; eu é que, na resposta, falei em nora. D. Glória não negou e até deu um ar de riso.

--Mamãe sempre que me escrevia, falava de Capitu.

--Você sabe que elas se dão muito, e por isso é que sua prima anda cada vez mais amuada. Talvez agora case mais depressa.

--Prima Justina?

--Não sabe? São contos, naturalmente; mas enfim, o Doutor João da Costa enviuvou há poucos meses, e dizem (não sei, o protonotário é que me contou) dizem que os dous andam meio inclinados a acabar com a viuvez, entre si, casando-se. Há de ver que não ha nada, mas não é fora de propósito, contanto ela sempre achasse que o doutor era um feixe de ossos... Só se ela é um cemitério, comentou rindo; e logo sério: Digo isto por gracejo...

Não ouvi o resto. Ouvia só a voz da minha fada interior, que me repetia mas já então sem palavras: "Tu serás feliz, Bentinho!" E a voz de Capitu me disse a mesma cousa, com termos diversos, e assim também a de Escobar, os quais ambos me confirmaram a notícia de José Dias pela sua própria impressão. Enfim, minha mãe, algumas semanas depois, quando lhe fui pedir licença para casar, além do consentimento, deu-me igual profecia, salva a redação própria de mãe: "Tu serás feliz, meu filho!

CAPÍTULO CII/ NO CÉU

Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos. Foi em 1865, uma tarde de março, por sinal que chovia. Quando chegamos ao alto da Tijuca, onde era o nosso ninho de noivos, o céu recolheu a chuva e acendeu as estrelas, não só as já conhecidas, mas ainda as que só serão descobertas daqui a muitos séculos. Foi grande fineza e não foi única. S. Pedro, que tem as chaves do céu, abriu-nos as portas dele, fez-nos entrar, e depois de tocar-nos com o báculo, recitou alguns versículos da sua primeira epístola: "As mulheres sejam sujeitas a seus maridos... Não seja o adorno delas o enfeite dos cabelos riçados ou as rendas de ouro, mas o homem que está escondido no coração... Do mesmo modo, vós, maridos, coabitai com elas, tratando-as com honra, como a vasos mais fracos, e herdeiras convosco da graça da vida..." Em seguida, fez sinal aos anjos, e eles entoaram um trecho do cântico, tão concertadamente, que desmentiriam a hipótese do tenor italiano, se a execução fosse na terra; mas era no céu. A música ia com o texto, como se houvessem nascido juntos, à maneira de uma ópera de Wagner. Depois, visitamos uma parte daquele lugar infinito. Descansa que não farei descrição alguma, nem a língua humana possui formas idôneas para tanto.

Ao cabo, pode ser que tudo fosse um sonho, nada mais natural a um ex-seminarista que ouvir por toda a parte latim e Escritura. A verdade que Capitu, que não sabia Escritura nem latim, decorou algumas palavras, como estas, por exemplo: "Sentei-me à sombra daquele que tanto havia desejado." Quanto às de S. Pedro, disse-me no dia seguinte que estava por tudo, que eu era a única renda e o único enfeite que jamais poria em si. Ao que eu repliquei que a minha esposa teria sempre as mais finas rendas deste mundo.

CAPÍTULO CII / DE CASADA

Imagina um relógio que só tivesse pêndulo, sem mostrador, de maneira que não se vissem as horas escritas. O pêndulo iria de um lado para outro mas nenhum sinal externo mostraria a marcha do tempo. Tal foi aquela semana da Tijuca.

De quando em quando, tornávamos ao passado e divertíamo-nos em relembrar as nossas tristezas e calamidades, mas isso mesmo era um modo de não sairmos de nós. Assim vivemos novamente a nossa longa espera de namorados, os anos da adolescência, a denúncia que está nos primeiros capítulos, e ríamos de José Dias que conspirou a nossa desunião, e acabou festejando o nosso consórcio. Uma ou outra vez, falávamos em descer, mas as manhãs marcadas eram sempre de chuva ou de sol, e nós esperávamos um dia encoberto, que teimava em não vir.

Não obstante, achei que Capitu estava um tanto impaciente por descer. Concordava em ficar, mas ia falando do pai e de minha mãe, da falta de notícias nossas, disto e daquilo, a ponto que nos arrufamos um pouco. Perguntei-lhe se já estava aborrecida de mim.

--Eu?

--Parece.

--Você há de ser sempre criança, disse ela fechando-me a cara entre as mãos e chegando muito os olhos aos meus. Então eu esperei tantos anos para aborrecer-me em sete dias? Não, Bentinho; digo isto porque é realmente assim, creio que eles podem estar desejosos de, ver-nos e imaginar alguma doença, e, confesso, pela minha parte, que queria ver papai.

--Pois vamos amanhã.

--Não; há de ser com tempo encoberto, redargüiu rindo.

Peguei-lhe no riso e na palavra, mas a impaciência continuou, e descemos com sol.

A alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que a causa da impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado. Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também. E quando eu me vi embaixo, pisando as ruas com ela, parando, olhando, falando, senti a mesma cousa. Inventava passeios para que me vissem, me confirmassem e me invejassem. Na rua, muitos voltavam a cabeça curiosos, outros paravam, alguns perguntavam: "Quem são?" e um sabido explicava: "Este é o Doutor Santiago, que casou há dias com aquela moça, D. Capitolina, depois de uma longa paixão de crianças; moram na Glória, as famílias residem em Mata-cavalos." E ambos os dous: "A uma mocetona!"

CAPÍTULO CIII / A FELICIDADE TEM BOA ALMA

Mocetona é vulgar; José Dias achou melhor. Foi a única pessoa cá de baixo que nos visitou na Tijuca, levando abraços dos nossos e palavras suas, mas palavras que eram músicas verdadeiras; não as ponho aqui para ir poupando papel, mas foram deliciosas. Um dia. comparou-nos a aves criadas em dous vãos de telhados contíguos. Imagina o resto, as aves emplumando as asas e subindo ao céu, e o céu agora mais largo para poder contê-las também. Nenhum de nós riu, ambos escutávamos comovidos e convencidos, esquecendo tudo, desde a tarde de 1858... A felicidade tem boa alça.

CAPÍTULO CIV / AS PIRÂMIDES

José Dias dividia-se agora entre mim e minha mãe, alternando os jantares da Glória com os almoços de Mata-cavalos. Tudo corria bem.

Ao fim de dous anos de casado, salvo o desgosto grande de não ter um filho, tudo corria bem. Perdera meu sogro, é verdade, e o tio Cosme estava por pouco, mas a saúde de minha mãe era boa; a nossa excelente.

Eu era advogado de algumas casas ricas, e os processos vinham chegando. Escobar contribuíra muito para as minhas estréias no foro. Interveio com um advogado célebre para que me admitisse à sua banca, e arranjou-me algumas procurações, tudo espontaneamente.

Demais, as nossas relações de família estavam previamente feitas; Sancha e Capitu continuavam depois de casadas a amizade da escola, Escobar e eu a do seminário. Eles moravam em Andaraí, aonde que riam que fôssemos muitas vezes, e, não podendo ser tantas como desejávamos, íamos lá jantar alguns domingos, ou eles vinham fazê-lo conosco. Jantar é pouco, íamos sempre muito cedo, logo depois do almoço, para gozarmos o dia compridamente, e só nos separávamos às nove, dez e onze horas, quando não podia ser mais. Agora que penso naqueles dias de Andaraí e da Glória, sinto que a vida e o resto não sejam tão rijos como as Pirâmides.

Escobar e a mulher viviam felizes, tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de uma aventura do marido, negócio de teatro, não sei que atriz ou bailarina, mas se foi certo, não deu escândalo. Sancha era modesta, o marido trabalhador. Como eu um dia dissesse a Escobar que lastimava não ter um filho, replicou-me:

--Homem, deixa lá. Deus os dará quando quiser, e se não der nenhum é que os quer para si, e melhor será que fiquem no céu.

--Uma criança, um filho é o complemento natural da vida.

--Virá, se for necessário.

Não vinha. Capitu pedia-o em suas orações, eu mais de uma vez dava por mim a rezar e a pedi-lo. Já não era como em criança; agora pagava antecipadamente, como os aluguéis da casa.
–––––––––––––––
continua…

9º Concurso de Poesias Expresso das Letras (Resultado Final)

VENCEDORES

1o. Lugar
AMOR EM ESTADO BRUTO – Renata Cristina Alves
 
2o. Lugar
PERPLEXIDADE DO AMOR – Rosalva Rocha
 
3o. Lugar
AMOR DE MENINO – Itajari Azevedo Da Rosa

MENÇÕES  HONROSAS

RESPOSTA DA VIDA – Alda Borges

IMPAR – Evanilda Padilha

POESIA SEM TÍTULO – Fernanda Lisbôa De Siqueira

RETORNO DO AUDAZ NAVEGANTE – Lívia Petry Jahn

AMAR – Zilah Gonçalves Fernandes

O AMOR PRECISA SER LIVRE – Fernanda Resende Ramos

POESIA SEM TÍTULO – Luiza Paes De Souza Lima

AMOR – Marcelina Padilha

OCASO – Karin Kreismann Carteri

SOU TUA MADRUGADA – Katia Chiappini

DO AMOR- Marina De Lima Mohallem

O MISTÉRIO DO AMOR – Merari Dos Santos Tavares

Fonte:
http://encontrodeescritores.com.br/wp/9-concurso-literario-expresso-das-letras-resultado-oficial/#ixzz2R0l0CmZF

quinta-feira, 25 de abril de 2013

José de Arimatéa Filho (Caderno de Trovas)

Ao aplicar a injeção,
surge ligeiro embaraço:
- diz o doente - "Aí não!
só tomo se for no braço!...

A Rosa mente, doutor,
não passa de uma farsante,
pois onde já se viu flor
que usasse desodorante?...

Às seis da tarde, meu Deus,
quando o sino exorta à prece,
quanta tristeza no adeus
do sol que desaparece.

Branco lençol que me aquece
a noite do desencanto:
- tens o calor de uma prece
rezada em tom de acalanto.

Com a profissão de cego,
enxerga longe Zé França...
- Põe o ouro todo no "prego"
e o produto na poupança.

Com rica e bela mulher,
como anda triste o Gouveia!
- Se tem tudo "de colher",
será que ela nega... ceia?

Da vida, no verde espaço,
onde, de ouro, o sonho medra,
quem não se fez de palhaço,
atire a primeira pedra...

Léo se queixa da inflação,
pelo próprio desmazelo,
pois nem mesmo à prestação
pode cortar o cabelo...
 
Louvo a Deus pelo papel
branco e simples em que ponho,
com tintas da alma, o painel
maravilhoso do sonho!...

Lúcia chega-se ao gerente,
pede empréstimo... afinal,
a "garantia", presente,
nem precisou de outro aval...

Machucado o "para-lama",
rebentados os "faróis",
Topa-Tudo está de cama,
envolvido em maus lençóis!

No inverno há milagres, filho,
como nas eras antigas:
- Um só punhado e milho
se abre em milhares de espigas!

O Chicão só vive às turras,
sempre arrotando vantagem...
- No corpo a marca das surras,
ele diz que é tatuagem...

Porte-se o amor, bem contido,
sob impulso controlado,
pois quanto mais "colorido",
tanto mais preto é o pecado...

Pra manter em forma a plástica,
rebolando-se, a mulata,
de tanto fazer "ginástica",
nasceu-lhe um filho acrobata.

Quando falta gasolina,
o velho chofer de praça,
com uma sede canina,
enche o "tanque" de cachaça.

Queixa-se a Dalva (que artista!)
de choques no coração...
- Vem o noivo, eletricista,
e conserta a "instalação".

Sambista, lépida, incrível,
campeã, sagra-se, Aurora,
sem gasto de combustível,
se exibindo a "sem por hora"!…

Sempre que se erguem teus braços,
em prece, unidos aos meus,
a fé revigora os laços
do amor que nos prende a Deus.

Sinto, junto ao mar, sereia,
quanto me prendes ainda,
no branco lençol de areia
de minha saudade infinda!...

Fonte:
José Feldman (org). Ceará Trovadoresco. Coleção Memória Viva.

Machado de Assis (Dom Casmurro) Parte 12

CAPÍTULO LXXXVII / A SEGE

Chegara ao último degrau, e uma idéia me entrou no cérebro, como se estivesse a esperar por mim, entre as grades da cancela. Ouvi de memória as palavras do pai de Manduca pedindo-me que fosse ao enterro no dia seguinte. Parei no degrau. Refleti um instante; sim, podia ir ao enterro, pediria a minha mãe que me alugasse um carro...

Não cuides que era o desejo de andar de carro, por mais que tivesse o gosto da condução. Em pequeno, lembra-me que ia assim muita vez com minha mãe às visitas de amizade ou de cerimônia e à missa, se chovia. Era uma velha sege de meu pai, que ela conservou o mais que pôde. O cocheiro, que era nosso escravo, tão velho como a sege, quando me via à porta, vestido, esperando minha mãe, dizia-me rindo:

--Pai João vai levar nhonhô!

E era raro que eu não lhe recomendasse:

--João, demora muito as bestas; vai devagar.

--Nhã Glória não gosta.

--Mas demora!

Fica entendido que era para saborear a sege, não pela vaidade, porque ela não permitia ver as pessoas que iam dentro. Era uma velha sege obsoleta, de duas rodas, estreita e curta, com duas cortinas de couro na frente, que corriam para os lados quando era preciso entrar ou sair. Cada cortina tinha um óculo de vidro, por onde eu gostava de espiar para fora.

--Senta, Bentinho!

--Deixa espiar, mamãe!

E em pé, quando era mais pequeno, metia a cara no vidro, e via o cocheiro com as suas grandes botas, escanchado na mula da esquerda, e segurando a rédea da outra; na mão levava o chicote grosso e comprido. Tudo incômodo, as botas, o chicote e as mulas, mas ele gostava e eu também. Dos lados via passar as casas, lojas ou não, abertas ou fechadas, com gente ou sem ela, e na rua as pessoas que iam e vinham, ou atravessavam diante da sege, com grandes pernadas ou passos miúdos. Quando havia impedimento de gente ou de animais, a sege parava, e então o espetáculo era particularmente interessante; as pessoas paradas na calçada ou à porta das casas, olhavam para a sege e falavam entre si, naturalmente sobre quem iria dentro. Quando fui crescendo em idade imaginei que adivinhavam e diziam: "É aquela senhora da Rua de Mata-cavalos, que tem um filho, Bentinho..."

A sege ia tanto com a vida recôndita de minha mãe, que quando já não havia nenhuma outra, continuamos a andar nela, e era conhecida na rua e no bairro pela "sege antiga." Afinal minha mãe consentiu em deixá-la, sem a vender logo; só abriu mão dela porque as despesas de cocheira a obrigaram a isso. A razão de a guardar inútil foi exclusivamente sentimental; era a lembrança do marido. Tudo o que vinha de meu pai era conservado como um pedaço dele, um resto da pessoa, a mesma alma integral e pura. Mas o uso, esse era filho também do carrancismo que ela confessava aos amigos. Minha mãe exprimia bem a fidelidade aos velhos hábitos, velhas maneiras, velhas idéias, velhas modas. Tinha o seu museu de relíquias, pentes desusados, um trecho de mantilha; umas moedas de cobre datadas de 1824 e 1825, e, para que tudo fosse antigo, a si mesma se queria fazer velha; mas já deixei dito que, neste ponto, não alcançava tudo o que queria.

CAPÍTULO LXXXVIII / UM PRETEXTO HONESTO

Não, a idéia de ir ao enterro não vinha da lembrança do carro e suas doçuras. A origem era outra: era porque, acompanhando o enterro no dia seguinte, não iria ao seminário, e podia fazer outra visita a Capitu, um tanto mais demorada. Bis aí o que era. A lembrança do carro podia vir acessoriamente depois, mas a principal e imediata foi aquela. Voltaria à Rua dos Inválidos, a pretexto de saber de sinhazinha Gurgel. Contava que tudo me saísse como naquele dia. Gurgel aflito, Capitu comigo no canapé, as mãos presas, o penteado...

--Vou pedir a mamãe.

Abri a cancela. Antes de transpô-la, assim como ouvira da memória a palavra do pai do morto, ouvi agora a da mãe, e repeti a meia voz:

--Coitado de Manduca!

Minha Mãe ficou perplexa quando lhe pedi para ir ao enterro.

--Perder um dia de seminário

Fiz-lhe notar a amizade que o Manduca me tinha, e depois era gente pobre... Tudo o que me lembrou dizer, disse. Prima Justina opinou pela negativa.

--Você acha que não deve ir? perguntou-lhe minha mãe.

--Acho que não. Que amizade é essa que eu nunca vi?

Prima Justina venceu. Quando referi o caso ao agregado, este sol riu, e disse-me que o motivo escondido da prima era provavelmente não dar ao enterro "o lustre da minha pessoa". Fosse o que fosse, fiquei amuado; no dia seguinte, pensando no motivo, não me desagradou; mais tarde achei-lhe um sabor particular.

CAPÍTULO XC / A POLÊMICA


No dia seguinte, passei pela casa do defunto, sem entrar nem parar --ou, se parei, foi só um instante, ainda mais breve que este em que vo-lo digo. Se me não engano, andei até mais depressa, receando que me chamassem como na véspera. Uma vez que não ia ao enterro antes longe que próximo. Fui andando e pensando no pobre-diabo.

Não éramos amigos, nem nos conhecíamos de muito. Intimidade que intimidade podia haver entre a doença dele e a minha saúde? Tivemos relações breves e distantes. Fui pensando nelas, recordando algumas. Reduziam-se todas a uma polêmica, entre nós, dous anos antes, a propósito... Mal podeis crer a que propósito foi. Foi a guerra da Criméia.

Manduca vivia no interior da casa, deitado na cama, lendo por desfastio. Ao domingo, sobre a tarde, o pai enfiava-lhe uma camisola escura, e trazia-o para o fundo da loja, donde ele espiava um palmo da rua e a gente que passava. Era todo o seu recreio. Foi ali que o vi uma vez, e não fiquei pouco espantado; a doença ia-lhe comendo parte das carnes, os dedos queriam apertar-se; o aspecto não atraía decerto. Tinha eu de treze para quatorze anos. Da segunda vez que o vi ali, como falássemos da guerra da Criméia, que então ardia e andava nos jornais, Manduca disse que os aliados haviam de vencer, e eu respondi que não.

--Pois veremos, tornou ele. Só se a justiça não vencer neste mundo, o que é impossível, e a justiça está com os aliados.

--Não, senhor, a razão é dos russos.

Naturalmente, íamos com o que nos diziam os jornais da cidade transcrevendo os de fora, mas pode ser também que cada um de nós tivesse a opinião do seu temperamento. Fui sempre um tanto moscovita nas minhas idéias. Defendi o direito da Rússia, Manduca fez o mesmo ao dos aliados, e o terceiro domingo em que entrei na loja tocamos outra vez no assunto. Então Manduca propôs que trocássemos a argumentação por escrito, e na terça ou quarta-feira recebi duas folhas de papel contendo a exposição e defesa do direito dos aliados, e da integridade da Turquia, concluindo por esta frase profética:

"Os russos não hão de entrar em Constantinopla!"

Li-a e meti-me a refutá-la. Não me recorda um só dos argumentos que empreguei, nem talvez interesse conhecê-los, agora que o século está a expirar; mas a idéia que me ficou deles é que eram irrespondíveis. Fui eu mesmo levar-lhe o meu papel. Fizeram-me entrar na alcova, onde ele jazia estirado na cama, mal coberto por uma colcha de retalhos. Ou gosto da polêmica ou qualquer outra causa que não alcanço, não me deixou sentir toda a repugnância que saía da cama e do doente, e o prazer com que lhe dei o papel foi sincero. Manduca, pela sua parte, por mais nojosa que tivesse então a cara, o sorriso que a acendeu dissimulou o mal físico. A convicção com que me recebeu o papel e disse que ia ler e responderia é que não tem palavras nossas nem alheias que a digam de todo e com verdade; não era exaltada, não era ruidosa, não tinha gestos, nem a moléstia os permitiria, era simples, grande, profunda, um gozo infinito de vitória, antes de saber os meus argumentos. Tinha já papel, pena e tinta ao pé da cama. Dias depois recebi a réplica; não me lembra se trazia cousas novas ou não; o calor é que crescia, e o final era o mesmo:

"Os russos não hão de entrar em Constantinopla!"

Trepliquei, e daí continuou por algum tempo uma polêmica ardente, em que nenhum de nós cedia, defendendo cada um os seus clientes com força e brio. Manduca era mais longo e pronto que eu. Naturalmente a mim sobravam mil cousas que distraíam, o estudo, os recreios, a família, e a própria saúde, que me chamava a outros exercícios. Manduca, salvo o palmo de rua ao domingo de tarde, tinha só esta guerra, assunto da cidade e do mundo, mas que ninguém ia tratar com ele. O acaso dera-lhe em mim um adversário; ele, que tinha gosto à escrita, deitou-se ao debate, como a um remédio novo e radical. As horas tristes e compridas eram agora breves e alegres; os olhos desaprenderam de chorar, se porventura choravam antes. Senti esta mudança dele nas próprias maneiras do pai e da mãe.

--Não imagina como ele anda agora, depois que o senhor lhe escreve aqueles papéis, dizia-me o dono da loja, uma vez, à porta da rua. Fala e ri muito. Logo que eu mando o caixeiro levar-lhe os papéis dele, entra a indagar da resposta, e se demorará muito, e que pergunte ao moleque, quando passar. Enquanto espera, relê jornais e toma notas. Mas também, apenas recebe os seus papéis, atira-se a lê-los, e começa logo a escrever a resposta. Há ocasiões em que não come ou come mal; tanto que eu queria pedir-lhe uma cousa, é que não os mande à hora do almoço ou de jantar...

Fui eu que cansei primeiro. Comecei a demorar as respostas, até que não dei mais nenhuma- ele ainda teimou duas ou três vezes depois do meu silêncio, mas não recebendo contestação alguma, por fadiga também ou por não aborrecer, acabou de todo com as suas apologias. A última como a primeira, como todas, afirmava a mesma predição eterna:

"Os russos não hão de entrar em Constantinopla!"

Não entraram, efetivamente, nem então, nem depois, nem até agora. Mas a predição será eterna? Não chegarão a entrar algum dia? Problema difícil. O próprio Manduca, para entrar na sepultura, gastou três anos de dissolução, tão certo é que a natureza, como a história, não se faz brincando. A vida dele resistiu como a Turquia se afinal cedeu foi porque lhe faltou uma aliança como a anglo-francesa, não se podendo considerar tal o simples acordo da medicina e da farmácia. Morreu afinal, como os Estados morrem; r nosso caso particular, a questão é saber, não se a Turquia morre porque a morte não poupa a ninguém, mas se os russos entrara algum dia em Constantinopla; essa era a questão para o meu vizinho leproso, debaixo da triste, rota e infecta colcha de retalhos...

CAPÍTULO XCI / ACHADO QUE CONSOLA

É claro que as reflexões que aí deixo não foram feitas então, a caminho do seminário, mas agora no gabinete do Engenho Novo Então não fiz propriamente nenhuma, a não ser esta: que servi de alívio um dia ao meu vizinho Manduca. Hoje pensando melhor, acho que não só servi de alívio, mas até lhe dei felicidade. E o achado consola-me; já agora não esquecerei mais que dei dous ou três meses de felicidade a um pobre-diabo, fazendo-lhe esquecer o mal e o resto. É alguma cousa na liquidação da minha vida. Se há no outro mundo tal ou qual prêmio para as virtudes sem intenção, esta pagará um ou dous dos meus muitos pecados. Quanto ao Manduca, não creio que fosse pecado opinar contra a Rússia, mas, se era, ele estará purgando há quarenta anos a felicidade que alcançou em dous ou três meses,--donde concluirá (já tarde) que era ainda melhor haver gemido somente, sem opinar cousa nenhuma.

CAPÍTULO XCII / O DIABO NÃO É TÃO FEIO COMO SE PINTA


Manduca enterrou-se sem mim. A muitos outros aconteceu a mesma cousa, sem que eu sentisse nada, mas este caso afligiu-me particular mente pela razão já dita. Também senti não sei que melancolia ao recordar a primeira polêmica da vida, o gosto com que ele recebia os meus papéis e se propunha a refutá-los, não contando o gosto do carro... Mas o tempo apagou depressa todas essas saudades e ressurreições. Nem foi só ele; duas pessoas vieram ajudá-lo, Capitu, cuja imagem dormiu comigo na mesma noite, e outra que direi no Capítulo que vem. O resto deste Capítulo é só para pedir que, se alguém tiver de ler o meu livro com alguma atenção mais da que lhe exigir o preço do exemplar, não deixe de concluir que o Diabo não é tão feio como se pinta. Quero dizer...

Quero dizer que o meu vizinho de Mata-cavalos, temperando o mal com a opinião anti-russa, dava à podridão das suas carnes um reflexo espiritual que as consolava. Há consolação maiores, decerto e uma das mais excelentes é não padecer esse nem outro mal algumas a natureza é tão divina que se diverte com tais contrastes, e aos mais nojentos ou mais aflitos acena com uma flor. E talvez saia assim a flor mais bela, o meu jardineiro afirma que as violetas, para terem um cheiro superior, hão mister de estrume de porco. Não examinei, mas deve ser verdade.

CAPÍTULO XCIII / UM AMIGO POR UM DEFUNTO

Quanto à outra pessoa que teve a força obliterativa, foi o meu colega Escobar que no domingo, antes do meio-dia, veio ter a Mata-cavalos. Um amigo supria assim um defunto, e tal amigo que durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se me não visse desde longos meses.

--Você janta comigo, Escobar?

--Vim para isto mesmo.

Minha mãe agradeceu-lhe a amizade que me tinha, e ele respondeu com muita polidez, ainda que um tanto atado, como se carecesse de palavra pronta. Já viste que não era assim, a palavra obedecia-lhe, mas o homem não é sempre o mesmo em todos os instantes. O que ele disse, em resumo, foi que me estimava pelas minhas boas qualidades e aprimorada educação; no seminário todos me queriam bem, nem podia deixar de ser assim, acrescentou. Insistia na educação, nos bons exemplos, "na doce e rara mãe" que o céu me deu... Tudo isso com a voz engasgada e trêmula.

Todos ficaram gostando dele. Eu estava tão contente como se Escobar fosse invenção minha. José Dias desfechou-lhe dous superlativos, tio Cosme dous capotes, e prima Justina não achou tacha que lhe pôr; depois, sim, no segundo ou terceiro domingo, veio ela confessar-nos que o meu amigo Escobar era um tanto metediço e tinha uns olhos policiais a que não escapava nada.

--São os olhos dele, expliquei.

--Nem eu digo que sejam de outro.

--São olhos refletidos, opinou tio Cosme.

--Seguramente, acudiu José Dias; entretanto, pode ser que a senhora D. Justina tenha alguma razão. A verdade é que uma cousa não impede outra, e a reflexão casa-se muito bem à curiosidade natura. Parece curioso, isso parece, mas...

--A mim parece-me um mocinho muito sério, disse minha mãe.

--Justamente! confirmou José Dias, para não discordar dela.

Quando eu referi a Escobar aquela opinião de minha mãe (sem lhe contar as outras naturalmente) vi que o prazer dele foi extraordinário. Agradeceu, dizendo que eram bondades, e elogiou também minha mãe, senhora grave, distinta e moça, muito moça... Que idade teria?

--Já fez quarenta, respondi eu vagamente por vaidade.

--Não é possível! exclamou Escobar. Quarenta anos! Nem parece trinta- está muito moça e bonita. Também a alguém há de você sair, com esses olhos que Deus lhe deu; são exatamente os dela. Enviuvou há muitos anos?

Contei-lhe o que sabia da vida dela e de meu pai. Escobar escutava atento, perguntando mais, pedindo explicação das passagens omissas ou só escuras. Quando eu lhe disse que não me lembrava nada da roça, tão pequenino viera, contou-me duas ou três reminiscências dos seus três anos de idade, ainda agora frescas. E não contávamos voltar

--Não, agora não voltamos mais. Olhe, aquele preto que ali vai passando, é de lá. Tomás!

--Nhonhô!

Estávamos na horta da minha casa, e o preto andava em serviço; chegou-se a nós e esperou.

--É casado, disse eu para Escobar. Maria onde está?

-- Está socando milho, sim, senhor.

--Você ainda se lembra da roça, Tomás?

--Alembra, sim, senhor.

-- Bem, vá-se embora.

Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquele José, aquele outro Damião...

--Todas as letras do alfabeto, interrompeu Escobar.

Com efeito, eram diferentes letras, e só então reparei nisto; apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos nomes, distinguindo-se por um apelido, ou da pessoa, como João Fulo, Maria Gorda ou de nação como Pedro Benguela, Antônio Moçambique...

-- E estão todos aqui em casa? perguntou ele.

--Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados Não era possível ter todos em casa. Nem são todos os da rosa: a maior parte ficou lá.

-- O que me admira é que D. Glória se acostumasse logo a viver, em casa da cidade, onde tudo é apertado; a de lá é naturalmente grande.

--Não sei, mas parece. Mamãe tem outras casas maiores que esta; diz porém que há de morrer aqui. As outras estão alugadas. Algumas são bem grandes, como a da Rua da Quitanda...

--Conheço essa, é bonita.

--Tem também no Rio Comprido, na Cidade-Nova, uma no Catete...

--Não lhe hão de faltar tectos, concluiu ele sorrindo com simpatia.

Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio; depois continuamos. Quais foram as reflexões não me lembra agora; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste mundo. Escobar confessou esse acordo do interno com o externo, por palavras tão finas e altas que me comoveram; depois, a propósito da beleza moral que se ajusta à física, tornou a falar de minha mãe, "um anjo dobrado", disse ele.

CAPÍTULO XCIV / IDÉIAS ARITMÉTICAS

Não digo o mais, que foi muito. Nem ele sabia só elogiar é pensar, sabia também calcular depressa e bem. Era das cabeças aritméticas de Holmes (2 + 2 = 4). Não se imagina a facilidade com que ele somava ou multiplicava de cor. A divisão que foi sempre uma das operações difíceis para mim, era para ele como nada: cerrava um pouco os olhos, voltados para cima, e sussurrava as denominações dos algarismos: estava pronto. Isto com sete, treze, vinte algarismos. A vocação era tal que o fazia amar os próprios sinais das somas, e tinha esta opinião que os algarismos, sendo poucos, eram muito mais conceituosos que as vinte e cinco letras do alfabeto.

--Há letras inúteis e letras dispensáveis, dizia ele. Que serviço diverso prestam o d e o t? Têm quase o mesmo som. O mesmo digo do b e do p, o mesmo do s, do c e do z, o mesmo do k e do g, etc. São trapalhices caligráficas. Veja os algarismos: não há dous que façam o mesmo ofício; 4 é 4, e 7 é 7. E admire a beleza com que um 4 e um 7 formam esta cousa que se exprime por 11. Agora dobre 11 e terá 22; multiplique por igual número, dá 484, e assim por diante. Mas onde a perfeição é maior é no emprego do zero. O valor do zero é, em si mesmo, nada; mas o ofício deste sinal negativo é justamente aumentar. Um 5 sozinho é um 5; ponha-lhe dous 00, é 500. Assim, o que não vale nada faz valer muito, cousa que não fazem as letras dobradas, pois eu tanto aprovo com um p como com dous pp.

Criado na ortografia de meus pais, custava-me a ouvir tais blasfêmias, mas não ousava refutá-lo. Contudo, um dia. proferi algumas palavras de defesa, ao que ele respondeu que era um preconceito, e acrescentou que as idéias aritméticas podiam ir ao infinito, com a vantagem que eram mais fáceis de menear. Assim que, eu não era capaz de resolver de momento um problema filosófico ou lingüístico, ao passo que ele podia somar. em três minutos, quaisquer quantias.

--Por exemplo... dê-me um caso, dê-me uma porção de números que eu não saiba nem possa saber antes... olhe, dê-me o número das casas de sua mãe e os aluguéis de cada uma, e se eu não disser a soma total em dous, em um minuto, enforque-me!

Aceitei a aposta, e na semana seguinte levei-lhe escritos em um papel os algarismos das casas e dos aluguéis. Escobar pegou o papel, passou-os pelos olhos a fim de os decorar. e enquanto eu fitava o relógio, ele erguia as pupilas, cerrava as pálpebras, e sussurrava... Oh! o vento não é mais rápido! Foi dito e feito; em meio minuto bradava-me:

--Dá tudo 1:070$000 mensais.

Fiquei pasmado. Considera que eram não menos de nove casas, e que os aluguéis variavam de uma para outra, indo de 70$000 a 180$000. Pois tudo isto em que eu gastaria três ou quatro minutos, --e havia de ser no papel,--fê-lo Escobar de cor, brincando. Olhava-me triunfalmente, e perguntava se não era exato. Eu, só por lhe mostrar que sim, tirei do bolso o papelinho que levava com a soma total, e mostrei-lho; era aquilo mesmo, nem um erro: 1:070$000.

--Isto prova que as idéias aritméticas são mais simples, e portanto mais naturais. A natureza é simples. A arte é atrapalhada.

Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão; um padre que estava com eles não gostou.

--A modéstia, disse-nos, não consente esses gestos excessivos podem estimar-se com moderação.

Escobar observou-me que os outros e o padre falavam de inveja e propôs-me viver separados. Interrompi-o dizendo que não inveja, tanto pior para eles.

--Quebremos-lhe a castanha na boca!

-- Mas...

-- Fiquemos ainda mais amigos que até aqui.

Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos. É ilusão, decerto, se não é efeito das longas horas que tenho estado a escrever sem parar. Suspendamos a pena por alguns instantes...

CAPÍTULO XCV / O PAPA

A amizade de Escobar fez-se grande e fecunda; a de José Dias não lhe quis ficar atrás. Na primeira semana disse-me este em casa:

--Agora é certo que você vai sair já do seminário.

--Como?

--Espere até amanhã. Vou jogar com eles que me chamaram, amanhã, lá no quarto, no quintal, ou na rua, indo à missa, conto-lhe o que há. A idéia é tão santa que não está mal no santuário. Amanha, Bentinho.

-- Mas é cousa certa?

--Certíssima!

No dia seguinte revelou-me o mistério. Ao primeiro aspecto confesso que fiquei deslumbrado. Trazia uma nota de grandeza e de espiritualidade que falava aos meus olhos de seminarista. Era não menos que isto. Minha mãe, ao parecer dele, estava arrependida do que fizera, e desejaria ver-me cá fora, mas entendia que o vínculo moral da promessa a prendia indissoluvelmente. Cumpria rompê-lo, e para tanto valia a Escritura, com o poder de desligar dado aos apóstolos. Assim que, ele e eu iríamos a Roma pedir a absolvição do papa... Que me parecia?

-- Parece-me bem, respondi depois de alguns segundos de reflexão. Pode ser um bom remédio.

--É o único, Bentinho, é o único! Vou já hoje conversar com D. Glória, expondo-lhe tudo, e podemos partir daqui a dous meses, ou antes...

-- Melhor é falar domingo que vem; deixe-me pensar primeiro...

-- Oh! Bentinho! interrompeu o agregado. Pensar em quê? Você o que quer... Digo? Não se amofina com o seu velho? Você o que quer é consultar a uma pessoa.

Rigorosamente, eram duas pessoas, Capitu e Escobar, mas eu neguei a pés juntos que quisesse consultar ninguém. E que pessoa, o reitor? Não era natural que lhe confiasse tal assunto. Não, nem reitor, nem professor, nem ninguém; era só o tempo de refletir, uma semana, no domingo daria a resposta, e desde já lhe dizia que a idéia não me parecia má.

-- Não?

--Pois resolvamos hoje mesmo.

--Não se vai a Roma brincando.

--Quem tem boca vai a Roma, e boca no nosso caso é a moeda. Ora, você pode muito bem gastar consigo... Comigo, não; um par de calças, três camisas e o pão diário, não preciso mais. Serei como S. Paulo, que vivia do ofício enquanto ia pregando a palavra divina. Pois eu vou, não pregá-la, mas buscá-la. Levaremos cartas do internúncio e do bispo, cartas para o nosso ministro, cartas de capuchinhos... Bem sei a objeção que se pode opor a esta idéia; dirão que é dado pedir a dispensa cá de longe; mas, além do mais que não digo, basta refletir que é muito mais solene e bonito ver entrar no Vaticano, e prostrar-se aos pés do papa o próprio objeto do favor, o levita prometido, que vai pedir para sua mãe terníssima e dulcíssima a dispensa de Deus. Considere o quadro, você beijando o pé ao príncipe dos apóstolos; Sua Santidade, com o sorriso evangélico, inclina-se, interroga, ouve, absolve e abençoa. Os anjos o contemplam, a Virgem recomenda ao santíssimo filho que todos os seus desejos, Bentinho, sejam satisfeitos, e que o que você amar na terra seja igualmente amado no céu...

Não digo mais, porque é preciso acabar o capítulo, e ele não acabou o discurso. Falou a todos os meus sentimentos de católico e de namorado. Vi a alma aliviada de minha mãe, vi a alma feliz de Capitu, ambas em casa, e eu com elas, e ele conosco, tudo mediante uma pequena viagem a Roma, que eu só geograficamente sabia onde ficava; espiritualmente, também, mas a distancia que estaria da vontade de Capitu é que não. Eis o ponto essencial. Se Capitu achasse longe, não iria- mas era preciso ouvi-la, e assim também a Escobar, que me daria um bom conselho.
––––––-
continua…