Feigel ou Feiga como o nome polonês indica, tem cara de passarinho. O olho redondo pisca e lacrimeja. O nariz adunco, mesmo depois da cirurgia plástica, continua agudo, apesar de arrebitado artificialmente. A boca fina, os dentes pequenos amarelos. Não é feia. Tampouco bonita.
Nunca a vi nua. Quando fazemos amor, não permite que a veja. Apaga as luzes, fecha persianas e cortinas, deita de camisola.
Sinto sua pele suave, os seios são pequenos, o sexo agradável. Nunca sei se gozou ou não. Dá uns gemidos. Poucos e fracos, mais como suspiros. Quando lhe pergunto, diz que sim, mas a voz é fria, quase seca.
Já decidi não voltar, e volto. Quando ao sair dou-lhe um beijo, mais de obrigação que de vontade, seu rosto se afasta.
De seu passado só consigo saber algo quando já está bêbada de vodca-martini, que prepara com esmero. Enquanto tomo um wisky com gelo, vagarosamente, ela já tomou três drinks. Procuro tirar sua roupa, mas só chego até a calcinha e soutien. Sempre pretos.
O que possui de belo, e é a única coisa assim delicada e contrastante com o resto, são as mãos de longos dedos, e unhas pintadas de vermelho, da cor do batom, que retira com cuidado antes de nos deitarmos em sua cama enorme e suntuosa.
Os cabelos antes grossos e crespos, com o tempo, tornaram-se finos e ralos . Às vezes tenho na boca fios que se desprendem de sua cabeça agora grisalha . Por que continuo vindo ? me acostumei. Preguiça de encontrar outra. Não a amo. Cada vez falamos menos. Parecemos dois personagens com os corpos enterrados na areia. Gosto de Becket. Aliás, a única coisa a me sustentar é a leitura. Quando acordo em meu quarto de solteiro, olho a minha volta e vejo livros, fico feliz. Mesmo que não os tenha lido todos, sei que estão á minha espera. Me satisfaz a idéia de possuir o prazer antecipado. De meu, só tenho os livros e a musica que deixo tocando mesmo quando saio. Trabalho como garçom em um café, e estudo teatro à noite. Sou moço, tenho vinte e sete anos. Feiguel cinqüenta. Não vou à sua casa todas as noites, umas duas ou três vezes por semana somente.
Ela já me pediu em casamento. Não sei porque quer casar. É rica, mora em belo apartamento, tem duas empregadas e um motorista. Já passou da idade de ter filhos. Nunca os teve. Viúva, foi o marido quem lhe deixou a fortuna.
Não me queixo da vida. Tenho planos, e neles, Feiguel não está incluída. Qualquer dia desses eu a deixo, com seus potes de creme, xampus, e perfumes, com sua casa sempre arrumada. Os armários repletos de roupas que não usa. Veste sempre uma saia de listas, o casaquinho justo, com o botão de cima desabotoado. Os sapatos, por mais caros que sejam, parecem tortos e usados. Deve ter sido pobre. A pobreza ainda se encontra entranhada, não importa o quanto se passe uma esponja, se lave, se esfregue. Aparece mais quando já desapareceu de verdade. A mancha se vai ao esfregar, mas fica o halo em sua volta.
Eu, que não tenho nada, possuo um ar de elegância inata de quem já possuiu muito. Será minha juventude intocada ? meu ar de limpeza ? A camisa sempre branca, meu único par de jeans colado ao corpo sem uma ruga. Gosto de minha aparência . Olho-me muito nos espelhos onde quer que os haja, e aprecio o olhar das mulheres sobre mim.
Em tudo sou diferente dela. Nunca me entedio. Ela vive preguiçosamente entediada. Apesar da vasta biblioteca fechada, só vê revistas, nunca as lê. Somente os textos sob as fotos.
Tem aulas de ginástica, yoga, visita médicos, e compra remédios que não toma, ou toma e diz que lhe fazem mal. Vê TV durante o dia, e à noite fica bebendo até ir dormir.
Antes de adormecer, olha para mim e diz: — Não agüento mais —. Eu não respondo. Ela continua — Eu não agüento mais —. E adormece.
Como raramente sai de casa, os domingos que passamos juntos, são silenciosos. Gosto disso. Sento-me à janela, vejo ao longe uma paisagem que de aparência imutável transforma-se a cada instante em que muda a luz. Posso ficar horas olhando as mínimas transformações que vão ocorrendo, ouvindo Mozart no toca discos esplêndido que Feiga deixa ligado em alto som.
Não gostando de cozinhar, sou eu quem prepara o almoço. Uma salada de salmão, pepinos e kani. Acompanhada de um saquê gelado que sirvo em pequenas caixas pretas laqueadas com seu interior vermelho. O saquê tomamos vagarosamente. Ela não fala. Nem eu sei se ouve a musica ou não. Deitada no sofá fuma. Coisa que odeio. Não o ato de fumar, mas o cheiro que atrapalha o prazer que sinto ao olhar para fora , ouvindo Mozart.
Nesses dias não fazemos amor. Não tenho vontade. Ela não mostra interesse. Nem as revistas folheia.
Às vezes lixa as unhas, e retoca o esmalte vermelho.
Adormeço no sofá ao lado da janela, e os sons, os minúsculos ruídos de uma mosca que passa, o perfume que vem de fora misturado ao de cigarro e esmalte, tudo isso me transporta para uma região que desconheço, e que no sono encontro sempre. Uma planície. Ao fundo montanhas cobertas de neve, e uma fogueira que arde. Como gosto de cinema, um dia encontrei a paisagem do sonho em um filme .
Ao anoitecer, despeço-me com um leve beijo em seu rosto. Não desejo sua boca. Ela se afasta, e em vez de me dizer adeus, diz : — Não agüento mais.
Entro em meu carro, e suas palavras não ressoam. São sempre as mesmas, já me acostumei.
Era a noite de Ano Novo, fui a um bar onde fiquei tomando um wisky, da maneira que gosto, vagarosamente, duas pedras de gelo e um pouco de club soda.
Não ouço o ruído em minha volta, mas gosto de pensar na imagem recorrente de meu sonho, que traz consigo a paz de que necessito.
À meia noite, com o vozerio das pessoas já embriagadas não só pela bebida , mas pela falsa alegria da passagem de um ano a outro, que não muda, ou se muda não o percebem, pensei em Feiguel e resolvi ligar para ela. Depois de longo tempo, o telefone tocando, ela atendeu com voz sonolenta
— Como está você ? Ligo para te desejar um feliz Ano Novo.
— O que? Ano Novo?
— Sim. Fiquei assim calado sem saber o que dizer.
—Nada, nem um ruído, fora o do bar em minha volta.
— Por que você está me ligando? Estou dormindo.
— Nada. Só porque quero te desejar um feliz Ano Novo.
— Não seja idiota
— O que ?
— Sim, não seja idiota.
— Está bem. Boa noite.
Desliguei o telefone e pela primeira vez, tive pena dela. Pedi mais uma bebida, e fui para meu quarto, já tonto, onde dormi até o dia seguinte, chuvoso e triste.
–––––––––––
Giselda Leirner (1928) nasceu em São Paulo (SP) de uma família de artistas. Irmã do artista plástico Nelson Leirner e do médico e fotógrafo Adolfo Leirner, tem duas filhas:Sheila Leirner e Laurence Klinger. É bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo, com pós-graduação em Filosofia da Religião. Publicou "A Filha de Kafka"(contos, Massao Ono, 1999 e Gallimard, 2005), "Nas Águas do Mesmo Rio" (romance, Ateliê, 2005) e "O nono mês" (romance, Perspectiva).
Artista plástica, foi aluna de grandes nomes das artes como Emiliano Di Cavalcanti, Poty Lazarotto e Yolanda Mohalyi, assim como no Art Students League e na Parson School of Design, em Nova York. Participou das Bienais de São Paulo de 1953 e 1955, além da grande mostra Tradição e Ruptura em 1984. Apresentou trabalhos em várias mostras individuais e coletivas, no Brasil e no exterior.
Fonte:
http://www.releituras.com/gleirner_menu.asp
Nunca a vi nua. Quando fazemos amor, não permite que a veja. Apaga as luzes, fecha persianas e cortinas, deita de camisola.
Sinto sua pele suave, os seios são pequenos, o sexo agradável. Nunca sei se gozou ou não. Dá uns gemidos. Poucos e fracos, mais como suspiros. Quando lhe pergunto, diz que sim, mas a voz é fria, quase seca.
Já decidi não voltar, e volto. Quando ao sair dou-lhe um beijo, mais de obrigação que de vontade, seu rosto se afasta.
De seu passado só consigo saber algo quando já está bêbada de vodca-martini, que prepara com esmero. Enquanto tomo um wisky com gelo, vagarosamente, ela já tomou três drinks. Procuro tirar sua roupa, mas só chego até a calcinha e soutien. Sempre pretos.
O que possui de belo, e é a única coisa assim delicada e contrastante com o resto, são as mãos de longos dedos, e unhas pintadas de vermelho, da cor do batom, que retira com cuidado antes de nos deitarmos em sua cama enorme e suntuosa.
Os cabelos antes grossos e crespos, com o tempo, tornaram-se finos e ralos . Às vezes tenho na boca fios que se desprendem de sua cabeça agora grisalha . Por que continuo vindo ? me acostumei. Preguiça de encontrar outra. Não a amo. Cada vez falamos menos. Parecemos dois personagens com os corpos enterrados na areia. Gosto de Becket. Aliás, a única coisa a me sustentar é a leitura. Quando acordo em meu quarto de solteiro, olho a minha volta e vejo livros, fico feliz. Mesmo que não os tenha lido todos, sei que estão á minha espera. Me satisfaz a idéia de possuir o prazer antecipado. De meu, só tenho os livros e a musica que deixo tocando mesmo quando saio. Trabalho como garçom em um café, e estudo teatro à noite. Sou moço, tenho vinte e sete anos. Feiguel cinqüenta. Não vou à sua casa todas as noites, umas duas ou três vezes por semana somente.
Ela já me pediu em casamento. Não sei porque quer casar. É rica, mora em belo apartamento, tem duas empregadas e um motorista. Já passou da idade de ter filhos. Nunca os teve. Viúva, foi o marido quem lhe deixou a fortuna.
Não me queixo da vida. Tenho planos, e neles, Feiguel não está incluída. Qualquer dia desses eu a deixo, com seus potes de creme, xampus, e perfumes, com sua casa sempre arrumada. Os armários repletos de roupas que não usa. Veste sempre uma saia de listas, o casaquinho justo, com o botão de cima desabotoado. Os sapatos, por mais caros que sejam, parecem tortos e usados. Deve ter sido pobre. A pobreza ainda se encontra entranhada, não importa o quanto se passe uma esponja, se lave, se esfregue. Aparece mais quando já desapareceu de verdade. A mancha se vai ao esfregar, mas fica o halo em sua volta.
Eu, que não tenho nada, possuo um ar de elegância inata de quem já possuiu muito. Será minha juventude intocada ? meu ar de limpeza ? A camisa sempre branca, meu único par de jeans colado ao corpo sem uma ruga. Gosto de minha aparência . Olho-me muito nos espelhos onde quer que os haja, e aprecio o olhar das mulheres sobre mim.
Em tudo sou diferente dela. Nunca me entedio. Ela vive preguiçosamente entediada. Apesar da vasta biblioteca fechada, só vê revistas, nunca as lê. Somente os textos sob as fotos.
Tem aulas de ginástica, yoga, visita médicos, e compra remédios que não toma, ou toma e diz que lhe fazem mal. Vê TV durante o dia, e à noite fica bebendo até ir dormir.
Antes de adormecer, olha para mim e diz: — Não agüento mais —. Eu não respondo. Ela continua — Eu não agüento mais —. E adormece.
Como raramente sai de casa, os domingos que passamos juntos, são silenciosos. Gosto disso. Sento-me à janela, vejo ao longe uma paisagem que de aparência imutável transforma-se a cada instante em que muda a luz. Posso ficar horas olhando as mínimas transformações que vão ocorrendo, ouvindo Mozart no toca discos esplêndido que Feiga deixa ligado em alto som.
Não gostando de cozinhar, sou eu quem prepara o almoço. Uma salada de salmão, pepinos e kani. Acompanhada de um saquê gelado que sirvo em pequenas caixas pretas laqueadas com seu interior vermelho. O saquê tomamos vagarosamente. Ela não fala. Nem eu sei se ouve a musica ou não. Deitada no sofá fuma. Coisa que odeio. Não o ato de fumar, mas o cheiro que atrapalha o prazer que sinto ao olhar para fora , ouvindo Mozart.
Nesses dias não fazemos amor. Não tenho vontade. Ela não mostra interesse. Nem as revistas folheia.
Às vezes lixa as unhas, e retoca o esmalte vermelho.
Adormeço no sofá ao lado da janela, e os sons, os minúsculos ruídos de uma mosca que passa, o perfume que vem de fora misturado ao de cigarro e esmalte, tudo isso me transporta para uma região que desconheço, e que no sono encontro sempre. Uma planície. Ao fundo montanhas cobertas de neve, e uma fogueira que arde. Como gosto de cinema, um dia encontrei a paisagem do sonho em um filme .
Ao anoitecer, despeço-me com um leve beijo em seu rosto. Não desejo sua boca. Ela se afasta, e em vez de me dizer adeus, diz : — Não agüento mais.
Entro em meu carro, e suas palavras não ressoam. São sempre as mesmas, já me acostumei.
Era a noite de Ano Novo, fui a um bar onde fiquei tomando um wisky, da maneira que gosto, vagarosamente, duas pedras de gelo e um pouco de club soda.
Não ouço o ruído em minha volta, mas gosto de pensar na imagem recorrente de meu sonho, que traz consigo a paz de que necessito.
À meia noite, com o vozerio das pessoas já embriagadas não só pela bebida , mas pela falsa alegria da passagem de um ano a outro, que não muda, ou se muda não o percebem, pensei em Feiguel e resolvi ligar para ela. Depois de longo tempo, o telefone tocando, ela atendeu com voz sonolenta
— Como está você ? Ligo para te desejar um feliz Ano Novo.
— O que? Ano Novo?
— Sim. Fiquei assim calado sem saber o que dizer.
—Nada, nem um ruído, fora o do bar em minha volta.
— Por que você está me ligando? Estou dormindo.
— Nada. Só porque quero te desejar um feliz Ano Novo.
— Não seja idiota
— O que ?
— Sim, não seja idiota.
— Está bem. Boa noite.
Desliguei o telefone e pela primeira vez, tive pena dela. Pedi mais uma bebida, e fui para meu quarto, já tonto, onde dormi até o dia seguinte, chuvoso e triste.
–––––––––––
Giselda Leirner (1928) nasceu em São Paulo (SP) de uma família de artistas. Irmã do artista plástico Nelson Leirner e do médico e fotógrafo Adolfo Leirner, tem duas filhas:Sheila Leirner e Laurence Klinger. É bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo, com pós-graduação em Filosofia da Religião. Publicou "A Filha de Kafka"(contos, Massao Ono, 1999 e Gallimard, 2005), "Nas Águas do Mesmo Rio" (romance, Ateliê, 2005) e "O nono mês" (romance, Perspectiva).
Artista plástica, foi aluna de grandes nomes das artes como Emiliano Di Cavalcanti, Poty Lazarotto e Yolanda Mohalyi, assim como no Art Students League e na Parson School of Design, em Nova York. Participou das Bienais de São Paulo de 1953 e 1955, além da grande mostra Tradição e Ruptura em 1984. Apresentou trabalhos em várias mostras individuais e coletivas, no Brasil e no exterior.
Fonte:
http://www.releituras.com/gleirner_menu.asp
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