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pois é difícil enxergar a verdade! Não gosto de ficar sozinha...
E não tenho tempo para joguinhos!
Patrícia Raphael
Para Andersom Luis ‘’Jamaica’’ da Silva
– O que tu vai fazer, hoje de noite, Cris meu anjo? – A pergunta era um misto de pura inocência e total perdição. E Cris não soube, naquela hora, o que era pior: A pergunta moleca, o sorriso inocente ou os olhos verdes e arregalados e cheios de má intenção da moça. O cabelo cheio, vermelho claro, encaracolado e jogado para frente, as mãos pequenas postadas no joelho, as unhas pintadas de verde-musgo, os dedos finos e desnudos, no pescoço uma fina gargantilha de prata e um pingente incrustado de semi-joias, onde podias se ler a inscrição: Carolina, em fonte manuscrita e em itálico, a blusa branco celeste transparente com estampa floral, que revelava mais do que deveria revelar, o shorts jeans desbotado, os pés pequenos e delicados estavam descalços, pois, o sapato de salto alto quinze neon verde fluorescente, se encontrava no chão, a pele amendoada e delicada completavam o quadro que tirou Cris do ar, estava em êxtase.
– Cris... Cris meu anjo, acorda meu doce! – A voz aguda e irritante de Carolina explodiu nos ouvidos de Cris com toda a força do mundo.
– O que foi Diaba? Fala! – A voz de Cris era pura irritação.
– Não me chama assim, quanta mal criação meu Deus do céu. Não vai vestir as luvas? Não sei por onde, essas tuas mãos talentosas andaram voando! Hei... faz o favor de tirar as luvas do estojo na minha frente. A agulha também, nada de re-aproveitar essas coisas descartáveis, em nome da economia, Cris meu bem. O meu corpo é santo e é sagrado, Cris meu doce de gente. – A voz estridente e teatral de Carolina soou com um pesadelo ao vivo e a cores, nos ouvidos de Cris. A imaginação de Cris voou longe e transportou, aquela beldade, para um palco de teatro ou tablado qualquer, cheio de luzes, aplausos e gente gritando.
De volta para a realidade, Cris se deu conta, que o seu profissionalismo naquela altura, estava um pouco negligenciado. E uma olhada rápida, na sua mais nova cliente, sentada em cima da maca, com o contorno do dragão, em forma de serpente, tatuado na perna já pronto, que esperava o retoque final. Cris vestiu as luvas cirúrgicas, os óculos de proteção individual, também uma mascara cirúrgica e por fim tirou a agulha descartável do invólucro e anexou na máquina, tudo preparado com todo o excesso de zelo, para clientes da estirpe de Carolina.
Cris bem queria acabar com o trabalho, o mais rápido possível e da forma mais profissional possível. E de fato, a máquina de aço deu as cores no dragão, em forma de serpente, tatuado na panturrilha esquerda de Carolina. O barulho do aparelho, só era interrompido quando Cris limpava a agulha com um lenço de papel toalha não reciclado, e mergulhava a agulha, nas pequenas tinas rasas de porcelana chinesa, que continham tintas importadas do extremo oriente. Elas eram quatro e, estavam perfiladas em simetria, em uma pequena bancada de vidro ao lado da maca, as tinas tinham inscrições em uma língua oriental. Carolina pensou, na possibilidade, que fossem os nomes das cores das tintas, nas pequenas tinas rasas e na remota possibilidade de Cris poder dominar aquele idioma oriental, Carolina não estava em toda enganada. A máquina de aço, parecia leve e, ter vida própria, Cris estava em êxtase naquela altura, ao contrário de Carolina, que parecia não se importar com mais nada, além da existência de Cris, ali na sua frente e, literalmente, aos seus pés.
– Então? Tira essa mascara horrorosa da cara, esses óculos fora de moda, quero ver esse teu rostinho lindo e me responde logo. Responde de uma vez! – Cris parou o trabalho, olhou para a cliente por uns instantes, deu uma longa suspirada e voltou para finalizar o trabalho. Nessa altura, a única coisa que importava para Cris, era terminar o trabalho e mandar a criatura perturbadora e diafona embora de uma vez. Era assim que Cris pensava, naquela hora derradeira.
– Cris, tu vai para onde nessa tediosa e enfadonha noite de outono? Nãoooo! Não vai me dizer, que és uma pessoa solitária e sozinha. Se és, eu posso resolver ‘’esse’’ teu probleminha, de uma vez por todas! – Cris pareceu não se importar, com o falatório da moça, que mais parecia um texto extraído de uma peça teatral burlesca. Cris passa o lenço de papel sobre uma parte da tatuagem, para tirar o excesso de tinta, e dá o trabalho por encerrado. Sem ao menos saber, como o trabalho ficou pronto, tão rápido e como sua mais nova ‘’cliente’’, apesar da aparência delicada e frágil, ela não esboçou uma única queixa de dor, nem uma única suspiro leve sequer, como era usual, quando essas criaturas delicadas resolvem fazer uma tatuagem. Mas, o trabalho estava terminado e Carolina estava mais que pronta para se despachada para longe da vida de Cris de uma vez por todas. Cris tirou a mascara, os óculos e por fim, contemplou o trabalho finalizado, por vários ângulos. Cris, em um arrebatamento não usual e não profissional, parecia querer entender o trabalho que acabara de finalizar. Para Cris um trabalho, era sempre mais um trabalho e nada para além de um trabalho. Ou para ser mais exato, um caminhar natural para a perfeição de que um profissional, em qualquer área, naturalmente busca em seu ofício diário.
– As cores vão se definir daqui há alguns dias, e não tire este plástico, que ‘’estou’’ colocando na tua perna. Não tira até amanhã cedo, pelo menos... se bem que... te pego amanhã, as oito-e-meia, sua Diaba! Hoje não dá! Não dá mesmo. Tenho uns assuntos, não acabados para resolver hoje, que não podem ficar para depois. Se queres diversão, vou te dar uma boa ‘’dose’’ de fortes emoções, amanhã quando à noite cair, sua Diaba! Se tens crença em algum Deus, clame por ele desde já meu bem..
– Nossa! Um pouco de emoção de verdade afinal de contas. Ei! Já não te disse para ter modos? Não me chama de Diaba! Tu beijas a tua mãe com esta tua boca suja? Beija? Uhm... Uhm... e este plástico na minha perna! Até parece que eu fui comprada, no açougue do seu Maneca, ali, na esquina da minha casa. – Carolina olhou, usando um pequeno espelho, por vários ângulos, para a tatuagem como uma criança, que acabara de ganhar um brinquedo novo.
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Samuel da Costa é contista em Itajaí /SC
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