sexta-feira, 2 de maio de 2014

Nilto Maciel (30 janeiro 1945 - 30 abril 2014)

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Nilto Maciel (1945 – 2014)

Nasceu em Baturité, Ceará, em 30 de janeiro de 1945.

Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará em 70.

Criou, em 76, com outros escritores, a revista O Saco.

Mudou-se para Brasília em 77, tendo trabalhado na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF.

Regressou a Fortaleza em 2002.

Editor da revista Literatura desde 91.

Faleceu em Fortaleza, a 30 de abril de 2014.

Obteve primeiro lugar em alguns concursos literários nacionais e estaduais:
Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1981, com o livro de contos Tempos de Mula Preta;

Secretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1986, com o livro de contos Punhalzinho Cravado de Ódio;

“Brasília de Literatura”, 90, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Distrito Federal, com A Última Noite de Helena;

“Graciliano Ramos”, 92/93, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Alagoas, com Os Luzeiros do Mundo;

“Cruz e Sousa”, 96, categoria romance nacional, promovido pelo Governo do Estado de Santa Catarina, com A Rosa Gótica;

VI Prêmio Literário Cidade de Fortaleza, 1996, Fundação Cultural de Fortaleza, CE, com o conto “Apontamentos Para Um Ensaio”;

“Bolsa Brasília de Produção Literária”, 98, categoria conto, com o livro Pescoço de Girafa na Poeira;

“Eça de Queiroz”, 99, categoria novela, União Brasileira de Escritores, Rio de Janeiro, com o livro Vasto Abismo.

Organizou, com Glauco Mattoso,
Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal (Rio de Janeiro/Fortaleza, 1977).

Participa de diversas coletâneas, entre elas Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, org. por Rinaldo de Fernandes (Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 2006).

Tem contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. O Cabra que Virou Bode foi transposto para a tela (vídeo), pelo cineasta Clébio Ribeiro, em 1993.

LIVROS PUBLICADOS:

- Itinerário, contos, 1.ª ed. 1974, ed. do Autor, Fortaleza, CE; 2.ª ed. 1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP.

- Tempos de Mula Preta, contos, 1.ª ed. 1981, Secretaria da Cultura do Ceará; 2.ª ed. 2000, Papel Virtual Editora, Rio de Janeiro, RJ.

- A Guerra da Donzela, novela, l.ª ed. 1982, 2.ª ed. 1984, 3.ªed. 1985, Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, RS.

- Punhalzinho Cravado de Ódio, contos, 1986, Secretaria da Cultura do Ceará.

- Estaca Zero, romance, 1987, Edicon, São Paulo, SP.

- Os Guerreiros de Monte-Mor, romance, 1988, Editora Contexto, São Paulo, SP.

- O Cabra que Virou Bode, romance, 1.ª ed. 1991, 2.ª ed. 1992, 3.ª ed. 1995, 4.ª ed. 1996, Editora Atual, São Paulo, SP.

- As Insolentes Patas do Cão, contos, 1991, João Scortecci Editora, São Paulo, SP.

- Os Varões de Palma, romance, 1994, Editora Códice, Brasília.

- Navegador, poemas, 1996, Editora Códice, Brasília.

- Babel, contos, 1997, Editora Códice, Brasília.

- A Rosa Gótica, romance, 1.ª ed. 1997, Fundação Catarinense de Cultura, Florianópolis, SC (Prêmio Cruz e Sousa, 1996), 2.ª ed. 2002, Thesaurus Editora, Brasília, DF.

- Vasto Abismo, novelas, 1998, Ed. Códice, Brasília.

- Pescoço de Girafa na Poeira, contos, 1999, Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, Brasília.

- A Última Noite de Helena, romance, 2003. Editora Komedi, Campinas, SP.

- Os Luzeiros do Mundo, romance, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.

- Panorama do Conto Cearense, ensaio, 2005. Editora Códice, Fortaleza, CE.

- A Leste da Morte, contos, 2006. Editora Bestiário, Porto Alegre, RS.

- Carnavalha, romance, 2007. Bestiário, Porto Alegre, RS.

– Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil, ensaio. 2008. Imprece, Fortaleza, CE.

– Contos Reunidos (volume I). – reunindo Itinerário, Tempos de Mula Preta e Punhalzinho cravado de ódio –  2009. Ed. Bestiário, Porto Alegre, RS.

– Contos Reunidos (volume I). – reunindo As insolentes patas do cão, Babel e Pescoço de girafa na poeira – 2010. Ed. Bestiário, Porto Alegre, RS.

– Luz vermelha que se azula, contos, 2011. Expressão Gráfica, Fortaleza, CE.

– Como me tornei imortal: crônicas da vida literária. 2013. Armazém da Cultura. Fortaleza/CE

– Quintal dos dias, crônicas. 2013. Editoria Bestiário. Porto Alegre, RS.

– Sôbolas manhãs. crônicas. 2014. Editora Bestiário. Porto Alegre, RS.


ORGANIZADOR:


Pele e Abismo na Escritura de Batista de Lima, ensaios, artigos e resenhas, 2006. Ed. UNIFOR, Fortaleza, CE.

PARTICIPAÇÃO EM ANTOLOGIAS:

- Queda de Braço: Uma Antologia do Conto Marginal, seleção de Glauco Mattoso e Nilto Maciel. Clube dos Amigos do Marsaninho, Rio de Janeiro e Fortaleza, 1977. Contos: “As Fantásticas Narrações das Meninas do São Francisco” e “Sururus no Lupanar”.

- Conto Candango, coordenação de Salomão Sousa. Coordenada Editora de Brasília, 1980. Conto: “As Pequenas Testemunhas”.

- Horas Vagas (Coletânea 2), organizada por Joanyr de Oliveira. Coleção Machado de Assis, volume 42, Contos, Senado Federal, Brasília, 1981. Conto: “Detalhes Interessantes da Vida de Umzim”.

- O Prazer da Leitura, organizada por Jacinto Guerra, Ronaldo Cagiano, Nilce Coutinho e Cláudia Barbosa. Editora Thesaurus, Brasília, 1997. Conto: “Ícaro”.

- Almanaque de Contos Cearenses, organizado por Elisangela Matos, Pedro Rodrigues Salgueiro e Tércia Montenegro. Edições Bagaço, Recife, PE, 1997. Conto: “Apontamentos para um Ensaio”.

- Poesia de Brasília, organizada por Joanyr de Oliveira. Livraria Sette Letras, Rio de Janeiro, 1998. Poemas: “Odisséia Interior”, “Oferenda” e “Nem todo amor…”

- Poesía de Brasil – volumen 1, organizada por Aricy Curvello e traduzida para o espanhol por Gabriel Solis. Edição Proyecto Cultural Sur/Brasil, Bento Gonçalves, RS, 2000. Poemas: “Calvario”, “De Desapariciones y de Ruinas”, “Francisca” e “Arco Iris”.

- Reflexos da Poesia Contemporânea do Brasil, França, Itália e Portugal, organizada por Jean Paul Mestas. Universitária Editora, Lisboa, Portugal, 2000. Edição em francês e português. Poemas: “Lutin”/ “Duende”, “Avec les pieds par terre” / “Com os pés no chão”, “Auroral” / “Amanhança”, “Pro-phétique” / “Prof-ética”.

- Antologia de Haicais Brasileiros, organizada por Napoleão Valadares. André Quicé Editor, Brasília, 2003.

- Antologia de Contos Cearenses, organizada por Túlio Monteiro. Coleção Terra da Luz, tomo I, Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza, 2004. Conto: “Casa Mal-assombrada”.

- Antologia do Conto Brasiliense, seleção e organização por Ronaldo Cagiano. Projecto Editorial, Brasília, 2004. Conto: “Aníbal e os Livros”.

- Os Rumos do Vento/ Los Rumbos del Viento (Antologia de Poesia), coordenação de Alfredo Pérez Alencart e Pedro Salvado. Câmara Municipal de Fundão, Porotugal e Trilce Ediciones, Salamanca, Espanha, 2005. Poema: “Arco-íris”.

- Quartas Histórias – contos baseados em narrativas de Guimarães Rosa, org. Rinaldo de Fernandes. Rio de Janeiro, Ed. Garamond, 2006. Conto: “Águas de Badu”.

- Todas as Gerações – O Conto Brasiliense Contemporâneo, org. por Ronaldo Cagiano. Brasília, LGE Editora, 2006. Conto “Avisserger Megatnoc”.

- 15 Cuentos Brasileros/15 Contos Brasileiros, edición bilingüe español-portugués, org. por Nelson de Oliveira e tradução de Federico Lavezzo. Córdoba, Argentina, Editorial Comunicarte, 2007. Conto “Ave-Marias”.

Fonte:
Colaboração de Nilto Maciel, até 2013.

Nilto Maciel (Como me Tornei Imortal)

A grande maioria dos seres humanos acredita na imortalidade. Cada um deles se diz constituído de corpo e alma. Aquele morre, se desfaz, vira pó. Esta permanece intacta – a pensar e sentir – e, após a morte de sua metade, voa para o céu, o paraíso, onde está Deus, ou para o inferno ou sabe-se lá para onde. Essa grande maioria é resignada, vive rindo, brincando, feito eternas crianças, por se crer regida por Deus ou o Destino. Mesmo quando choram – diante do corpo sem vida de filhos, pais, irmãos, amigos, ídolos – parecem rir: Deus quis assim, Deus quis agora.

A pequena minoria dos seres humanos ou desacredita na imortalidade ou desconfia dessa possibilidade. Cada um deles assim sofisma: Se não sou imortal, se meu corpo é minha única morada, só me resta inventar outra eternidade. E assim surgiram as agremiações de letras e artes.

Para alguns escritores há duas maneiras de se alcançar a duração perpétua: pelo ingresso numa dessas corporações ou com a publicação de suas obras por uma grande editora. Se as duas portas se abrirem, melhor ainda: A vida eterna estará garantida. Para os mais presumidos só serve a Academia Brasileira de Letras. Os institutos menores (estaduais) ficariam para os escritores impúberes ou mais pequenos. Os minúsculos (municipais) se reservariam aos escritores insignificantes. Há, porém, ainda outras distinções: A entidade paulista seria quase equivalente à federal; a acreana, a amapaense, a sergipana, por exemplo, se equivaleriam a sociedades municipais; a paulistana valeria por uma filial da ABL; a baturiteense não poderia se comparar à santista. Empossados nesta ou naquela academia, todos alcançariam a imortalidade, no final, embora alguns, logo após a morte do corpo, teriam a alma conduzida imediatamente ao céu, enquanto outros dilatariam a interminável fila que conduz ao ponto derradeiro do destino literário.

Publicar livros por grandes editoras é mais fácil do que ingressar numa casa de acadêmicos. Basta o sujeito ser famoso ou amigo (bajulador, dizem) de autoridades federais, de outros entes famosos, ter muito dinheiro, etc. Por editora se entenda empresa que edita livros, vende-os a livrarias, divulga-os para os meios de comunicação de massa e paga direitos autorais.

Lá pelo início de minha adolescência, compreendi que não tenho alma e, portanto, sou mortal. Consciente disso, mais me pus a ler e escrever. E mais cônscio fiquei de que não tenho alma e sou mortal. Apesar disso, passei a acreditar em mim mesmo, em poder ser lembrado por mais um tempinho após minha morte, se escrevesse bem. Minhas filhas, meus netos e seus contemporâneos poderiam se lembrar de mim e ler minhas histórias. Passei mais muitos dias a ler e escrever. Fui morar em Brasília, cidade de muitos imortais, a capital do futuro. Publiquei uns livrinhos por pequenas editoras, ganhei alguns prêmios literários, de pouca monta (nada comparado aos prêmios das loterias) e tinha sido um dos criadores da revista O Saco (que me dava certo prestígio no mundo das letras). Tudo isso junto deve ter atiçado a luxúria de alguns imortais da capital. Que certamente cochichavam, enquanto cochilavam, frases obscenas, quando me viam: A esse só falta ingressar na nossa hoste. Pois eis que no meio do caminho desta vida (eu deveria ter uns quarenta anos, supondo que viverei até os oitenta), me apareceu um desses seres eternos. Chamava-se Almeida Fischer, que queria ser mais imortal do que era, pois pertencia à Academia Brasiliense de Letras. Não se apresentou em corpo e alma, para não se fazer tão objetivo; mandou um seu colega me fazer comunicado quase letal: Eu fora escolhido para constituir a nova casa federal de letras, a Academia de Letras do Brasil. Tomei susto, mas não morri. Ora, eu não queria vestir fardão. Muito menos farda, que abominava e abomino militares. Bastavam-me calça e camisa. Recuperado do susto, ouvi o complemento da fala do emissário do futuro presidente do sodalício (assim eles, os imortais, gostam de chamar suas agremiações): Iria me visitar noutro dia, para melhores esclarecimentos. E foi. Era um sábado de muita preguiça (minha), depois de ter passado a noite em bebedeira, a ouvir chorinhos. Alcançou-me de chinelos e calção. Renovou os elogios a mim, explicou os motivos da nova arcádia, como se me fizesse grande louvor e favor. Mal o deixei concluir o discurso. Agradeci os gabos e disse duas ou três frases indecorosas: Não me sentia acadêmico, sabia-me em fase de crescimento (embora tardio, a arcádia dentária ainda em formação), despreparado para a vida (literária) adulta e não via nenhuma necessidade de novos institutos de letras. Ele parecia não acreditar no que ouvia. Talvez eu estivesse brincando. Ou delirando: Você bebeu muito ontem? Certamente me ocorria um surto de loucura. Ora, quem não quer ser imortal, quem não se sente excepcionalmente envaidecido (e comovido) de ser convidado a ingressar no círculo restrito dos imortais? Prometi escrever carta a Fischer. Explicaria as razões de minha recusa ao convite. O mensageiro saiu de minha casa como quem sai de um cinema de horror. Escrevi a carta-bomba e a enviei ao morubixaba. Dias depois eu soube da tragédia: O homem se tinha morrido. Ou tinha deixado de ser vivo. Eu continuei mortal.

Fortaleza, abril de 2010.

Fonte:
Nilto Maciel. Como me tornei imortal: crônicas da vida literária. Fortaleza/CE: Armazém da Cultura, 2013. p.9-12.

Nilto Maciel (Um Doutor em Poesia)

Conheci Sérgio Campos em 1987 e com ele me correspondi desde aquele ano até poucos dias antes de seu falecimento. Escreveu-me 52 cartas ao longo de oito anos. Escrevi-lhe, talvez, o mesmo número de vezes. A apresentação de um ao outro se deu pela mão (melhor dizer pela palavra) de Floriano Martins.

Quando nos conhecemos, Sérgio havia publicado quatro livros, que aos poucos me foi ofertando. A primeira dádiva me veio junto à primeira epístola, de 8/5/87. Não se trata­va de seu livro inaugural, porém do quarto – Montanhecer. E dizia, já no segundo parágrafo: “É que circulam por aí tan­tos livros, mormente de poesia, alguns tão sem raiz, alma, que a gente percebe estar-se deteriorando essa antes tão eficiente forma de mútuo conhecimento. Se recebo, desconfio; se envio, receio."

Nascia bem nossa amizade, o “mútuo conhecimento” dele por mim e de mim por ele. Nascia exigente, crítico, objeti­vo. Como ele mesmo.

As cartas de Sérgio são, quase sempre, analíticas, críticas. Mergulha ao fundo das questões suscitadas, sobretudo em decorrência da leitura de um livro. Sua segunda carta é um belo ensaio, embora anuncie: “Reitero que não sou crítico, nem tenho a veleidade de o ser.”

Mais tarde escreveu alguns artigos de crítica literária e um ensaio. Se quisesse (ou tivesse tido tempo), poderia ter alcançado bom nome nessa área.

Cartas tratam, geralmente, do cotidiano, de circunstâncias. Ainda assim, ele não se deixava ir na conversa. Ia mais além. Divagava, posso dizer. Captava um princípio de pensamento do outro e o desenvolvia. Assim, analisando o meu Punhalzinho cravado de ódio, disse desconhecer algumas palavras por mim utilizadas. E citava “tiborna”, “barbatão” e outras. Na missiva seguinte voltou ao assunto: “Quanto às palavras, seus significados são deliciosos. Como são boni­tas e ricas as palavras, como a linguagem é fascinante. É duro constatar que a língua portuguesa aqui no Brasil en­contra-se em fase de extinção. O vocabulário em uso está se estreitando tanto que mais breve que possamos supor es­taremos falando uma das línguas mais ralas e pobres do planeta.”

Aos poucos fomos nos fazendo íntimos. E logo fiquei sabendo de seus problemas de saúde: a fratura do fêmur esquerdo, em 1983, segunda cirurgia no ano seguinte, tercei­ra em 85, quarta, quinta. Uma das melhores virtudes de Sérgio talvez tenha sido a humildade. Nada de arrogância, de presunção. Pois chegou a me enviar poemas esparsos e livros seus antes de publicados, para que eu,  simples prosador,  o ajudasse a “melhorá-los”. Ou para que os aprovasse ou reprovasse.

Humilde, não quer dizer fosse condescendente com os em­busteiros da literatura. Batia-se, sim, pela recuperação do soneto, por exemplo. E causticava os que o escreviam a esmo e proclamavam ter descoberto um filão, publicando li­vros e livros horrorosos. E lamentava-se: “Desanima, pare­ce que nos volta o peso de recomeçar do zero, pois a história do soneto na literatura brasileira é a própria história da infâmia.”

Sérgio foi um dos criadores da revista Literatura. Participou do projeto desde os primeiros momentos. Assim, em 3/7/90, me dizia: “Não podemos mais estar por aí de pires a mão, a depender dos Pascoais da vida, em busca de espaço para divulgação de nossos trabalhos.”

Se mais não participou da elaboração da Revista, se não esteve presente a todos os momentos dela, há uma explicação: estava dedicado a outros dois grandes projetos. O primeiro nascido de sua preocupação com o isolamento de nossa literatura em relação ao resto do mundo e, especialmente, a América Latina. O segundo projeto chamava-se Mundo Manual, uma editora para publicar seus livros e de ou­tros bons poetas.

Uniu-se a Floriano Martins no projeto de rompimento de barreiras. Criaram o jornal Resto do Mundo e passaram a divulgar no Brasil um segmento da literatura hispano-a­mericana. E vieram à tona nomes como os de José Kozer, Eugenio Montejo e Javier Sologurren. Pretendiam editar pequenas antologias desses e de outros poetas desconhecidos em nosso país.

Em 1990 criou uma editora, “uma paixão antiga”, como me disse. No ensaio Ponto e Contraponto, publicado em 1992, analisa também o livro enquanto livro e, didaticamente, ensina: “Pensamos na edição de um livro como o trabalho no­bre de textos de torná-lo de fácil leitura, pelos tipos adequados, pela diagramação mais consoante à natureza dos poemas, pe­lo formato que se harmoniza com o dos poemas, e, sobretudo, pelos cuidados com a boa apresentação, blocagem, lavor gráfico, beleza, posto que nela veja Barthes um rosto vazio (mas a respeito de cujos traços temos muito boas referências), e limpeza, pois nada mais lamentável que um livro produzido com desleixo. É como se o poeta tivesse por seu li­vro o mesmo conceito que tem por seus poemas.”

Outro sonho de Sérgio Campos: doutorar-se em Poética. Em fins de 1992 prestou exame de mestrado na Universidade do Rio de Janeiro. A seguir viria a fase de dissertação e, daí a 36 meses, a tese de doutorado.

Se não conseguiu o título, o diploma de doutor em Poética, nós, seus leitores – que, espero, sejam muitos e muitos daqui por diante – lhe damos e daremos outro título: o de artífice, de mestre, de doutor em Poesia. Pois Sér­gio Campos é, sem dúvida, um dos melhores poetas brasileiros deste final de milênio.

Meu último contato epistolar com ele se deu no dia 12/12/94. No pós-escrito anunciava: “Viajo amanhã e só retorno em 10/1/95.” Não sei dizer para onde viajou. Nem se retornou à sua Ilha do Governador. Dias depois Jorge Pieiro me telefonou de Fortaleza para comunicar a viagem eterna de nosso amigo e companheiro.

Fonte:

Nilto Maciel. Sôbolas manhãs. Porto Alegre/RS: Bestiário, 2014. p.138-141.

Nilto Maciel (Ícaro)

Rotineiramente nos meus sonhos sou levado de roldão no turbilhão das chafurdices mais absurdas. E acordo brigado comigo mesmo, por ser frágil, pequeno, indefeso — criaturinha atômica perdida na grandeza das coisas.

Há pouco eu ia ladeira abaixo, desembestado, numa car­reira de doido. E se não conseguisse nunca mais parar, fosse bater no fim do mundo? Bem feito, quem me havia mandado sair daquele jeito! Não, eu podia me esborrachar nas pedras, terminar todo arranhado, quebrar perna, braço, rachar a cabeça. Ah meu Deus! E que vontade de voltar atrás, ao tempo da partida! De pelo menos estacar, tomar fôlego, andar ape­nas, passo aqui, passo ali, feito cachorro vadio. Porém já ne­nhuma vontade eu carregava, nada eu conseguia fazer para di­minuir a velocidade, desgovernado seixo na correnteza. E des­cia, rolava, perdido, danado. Grão de areia arrastado pelo ar, eu sentia sumir-me o chão dos pés, levitar, alçar voo. As per­nas, soltas no espaço, balançavam agarradas ao resto do corpo, feito as de um enforcado. E me guiavam os quatro ventos do desespero para as alturas e as perdições. Na boca, o gosto do nada; nos olhos, o medo de precipitar-me; no peito, a ân­sia da desgraça. Sim, a queda. Não podia durar muito minha aventura de pássaro sem asas. Como voar para sempre? A me­nos que eu buscasse o mar, seguro porto de todos os voadores. Nunca, ele não existia, e, se existisse, vivia longe, longe demais. Mas quanta burrice, eu quase alcançava tocar com os pés as cabeleiras das árvores. Não carecia preocupar-me tanto. Bastava soltar-me das argolas do céu e saltar.

Com alguma perícia, agarrava-me aos galhos e, macaco velho, evitava o tombo. E ainda dava cambalhotas no ar, pula­va de galho em galho, imitava Tarzan. E se me estrepasse? Não, não me restava salvação, condenado a perambular entre as estrelas, até perder todas as forças e... ploft. Era uma vez um menino que desceu a ladeira da vida, tomou carreira, subiu feito balão e espatifou-se todo.

Não deixei de voar, não avistei o mar, não me agarrei aos galhos das árvores e o sonho terminou em gritaria.

Há muitos anos, eu vivia constantemente machucado, ferido, coberto de conchas. E, ainda por cima, minha mãe me cobria de peia. Deixasse de ser tão molenga! Eu não me emen­dava, no entanto. Caía, apanhava, caía de novo, apanhava mais. Por que não largava essa mania de viver trepado, feito macaco? Porém as mangueiras me encantavam. Difícil só alcançar o pri­meiro galho. Daí em diante eu me perdia, metido entre as fo­lhagens, escondido do mundo. E a sensação de poder cair! Aquele vento doido, o desequilíbrio, o chão coberto de fo­lhas secas, pintinhos entretidos a caçar insetos, aos pios, frágeis, indefesos entre os pés sujos e desatentos dos porcos aos roncos! Então aconteceu qualquer coisa comigo e eu pulei? Ou caí? Tudo isso depois de me fartar de chupar as mangas amassadas e podres do chão. Caíam de maduras ou por arte dos meninos. Eu não participava dessas brincadeiras. E sempre pegava a sobra. Até o sobejo dos bichos.

Aprendi cedo a levar quedas, ou dar pulos; ou voar. Esses três tipos de ginástica se confundiam em mim. Eu caía, pula­va ou voava da mangueira? Da janela de minha casa, porém, eu conseguia pular mesmo. E voava até o meio da rua. Chama­va os colegas e fazíamos apostas.

Eu devia ter nascido pássaro. Essa vontade de pular, de jogar-me ao chão, de lançar-me do alto. Apenas o espaço vazio, chão, a terra. E o vento que bate, açoita, puxa, empurra.

Quando me senti bem treinado, resolvi pular do muro alto do quintal. Embaixo só pedras, espinhos, formigas. Caí e quase desmaiei. Levantei-me, cambaleante, machucado, arra­nhado. Ainda bem que não havia ninguém por perto. Só mi­nha decepção. Quando entrei para casa, mamãe ficou muito nervosa e agitada. Eu disse ter pulado uma cerca, com me­do de um touro. Eu não podia dizer a verdade. Ou touro, ou tourada. “Esse calção encarnado”.

Antes da seguinte experiência tive a ideia de fazer tes­tes com formigas. Primeira etapa: arranjar uma caixa de fós­foros, qualquer latinha. Segunda: encontrar uma porção de formigas. Terceira: ter paciência e coragem de pegar com o maior cuidado as bichinhas. Ninguém consegue fazer isso, por­que formiga é bicho danado de esperto. Mas eu era esperto e meio. E conseguia juntar dez, doze, dezenas delas. Subia ao muro, abria a caixinha, as formigas saíam apressadinhas e eu dava um sopro. As coitadas voavam, caíam e não acontecia nada de mais. Ao chegarem ao chão, corriam, apavoradas. Talvez fossem leves demais.

Experimentei também as bonecas de minhas irmãs. Do lugar mais alto do mundo — a torre da igreja. E de lá soltei uma a uma, encantado com suas quedas lentas. Corri as esca­das para ver o estado delas. No patamar, porém, não encon­trei mais nenhuma. Teriam voado? Para a serra, lá onde mora­vam os passarinhos? Ou haviam voltado para o alto da torre, à minha procura? Espiei para cima, para todos os lados e cadê boneca? Só passarinho voando. E não podiam ser bonecas de pano. Ou podia boneca se transformar em passarinho?

Noutro dia o sacristão não me deixou subir à torre. Pre­cisava enfeitar a igreja para a procissão. Voltei para casa, doi­do para ver de novo boneca transformar-se em passarinho.

Na hora da procissão, o povo em fila, as casas fechadas. Nos parapeitos das janelas nenens de colo e suas avós, e nas portas velhinhos sentados em cadeiras de balanço. Tomei a dianteira, impaciente. Ao nos aproximarmos, deixei a fila e subi à torre. Debruçado sobre a janelinha, tive vontade de cus­pir na boiada. A igreja se entupiu de gente. No patamar ficou quem não pôde entrar. Tantas cabeças juntas nunca tinha visto assim de cima. Admirado, ia me esquecendo das bonecas. Deu-me vontade de novo de cuspir. Desisti: o sacristão podia me mandar descer. Devia era jogar logo as bonecas. E joguei. Voo bonito. Pareciam anjos descendo do céu. Tive medo de olhar, vontade de me retirar da janela e me esconder dentro do sino ou detrás do sacristão.

O povo, ao avistar a chuva de anjos, gritava e corria. As bonecas caíam. O padre pedia calma aos fiéis. Eu me espremia de medo. As bonecas assustavam o povo de Deus. E se o povo subisse as paredes para me castigar? Aranhas vingativas que me jogassem ao solo. Eu me espatifaria feito uma boneca. Não, voaria e viraria anjo ou passarinho e sobrevoaria a cidade e fugiria para a serra. O padre me amaldiçoaria, me chamaria de Maligno. Mostraria a cruz e eu voltaria a ser gente, menino maligno. Cairia, me despedaçaria todo. Não precisava nem cair. Bastava pular da torre. Todas aquelas ovelhas correriam, fugiriam de mim e me deixariam morrer. Nenhuma abriria os bra­ços para me aparar. Eu me quebraria de encontro ao duro chão do patamar. A menos que o povo se juntasse de novo. Então eu cairia em cima dele e me salvaria. Não, aquelas cabe­ças eram duras. Serviam então as mãos. E se seus dedos me furassem, me espetassem? Nem isso. Aquele povo imenso abria caminho para minha morte. Furava um buraco para eu me enterrar. Eu e as bonecas.

Todos olhavam para cima, embasbacados, como se eu fosse a papa-ceia. O vento soprava. O espaço vazio, cinzento. Minhas irmãs choravam a morte de suas bonecas que voavam para a serra e às vezes caíam como frutas maduras. Por onde andava o sacristão que não vinha bater o sino? A procissão continuava, mas no patamar não cabia sequer mais um cristão. Os fiéis esperavam Deus. Se eu caísse? Se eu voasse? Se eu virasse anjo, passarinho, aquele homem de asas?

Fonte:
Nilto Maciel. Contos Reunidos. volume II. Porto Alegre/RS: Bestiário,2010. p.11-15.

Nilto Maciel (Vamos Comer Sapoti ?)

Numa tarde, a brincar na calçada da prefeitura, o aroma de sapoti maduro atiçou-me os sentidos. Certamente preparavam a merenda do prefeito. Ou de mais alguém? Ah, vontade de saborear um suco gelado! Aquele odor antigo vez em quando me entra pelos sentidos. E com ele vêm carrinhos de madeira, bolas de pano, bonés de papel, barquinhos de jornal.

Brincar com castanhas de caju exigia força nos dedos e pontaria. Cada jogador utilizava uma tampa circular de lata. Tamanho médio de um pires. Recheávamos a tampa com cera de abelha ou vela derretida. Colocávamos algumas castanhas nas extremidades de um triângulo desenhado no chão. O primeiro jogador, postado a cinco ou mais metros de distância do triângulo, lançava a latinha na direção das castanhas. Esse mecanismo se dava assim: um dedo fura-bolos, acionado pelo indicador da outra mão, atingia a lata, fazendo com que ela se locomovesse pelo chão e alcançasse as castanhas. O jogador que atingisse uma das castanhas, lançando-a fora do triângulo, teria direito a nova jogada. Venceria o jogo se deslocasse todas as castanhas. Se errasse o alvo, o outro jogador se agacharia para desferir o golpe na sua latinha. Ganhava quem conseguisse atingir maior número de castanhas. O vencedor se apossava das peças em jogo.  

Havia também as brincadeiras perigosas, proibidas pelas mães. Jogos, na verdade. Um deles acontecia em chão de barro e não em calçada. Primeiramente desenhava-se um triângulo, com a ponta de um arame em forma de punhal. Jogavam dois ou mais meninos. O primeiro deveria lançar a arma ao chão, fincando-a, ao lado do triângulo, e traçar uma reta de ligação de uma das pontas do desenho ao furo provocado pela arma. E assim se ia formando ao redor da figura geométrica um traçado de linhas interligadas, espécie de teia. Cada jogador deveria se preocupar em impedir a formação da teia adversária. Quanto mais próximo de uma das linhas, melhor. Se atingisse o interior do desenho estaria fora do jogo. O segundo jogador repetia o gesto do primeiro, desenhando-se, assim, linhas quase paralelas, que se emaranhavam ao redor do triângulo. Aquele que atingisse as linhas do outro seria eliminado. Venceria aquele que conseguisse “fechar” o concorrente, isto é, bloquear as linhas do parceiro e alcançar novamente o triângulo, sempre no sentido horário. O perigo de tal brincadeira ou jogo era iminente: a arma, pontuda, poderia espetar um pé.

Menos perigosos eram os carrinhos de madeira. Os choferes quase sempre necessitavam de ajudantes. Em troca das ajudas, viravam ajudantes. Sem isso, os carrinhos só rodavam nas descidas. E, para rodarem novamente na mesma cal­çada, deveriam subir as calçadas inclinadas. Nos declives, atingiam velocidades espantosas. Só os bons choferes conseguiam escapar aos acidentes. Esse brinquedo seria a versão pobre ou rudimentar do velocípede.

Restava saber com que se fazia um carrinho: madeiras, pregos, parafusos, borracha, sebo ou graxa para azeitar as rodas. Mamãe se opôs ao projeto. Brinquedo de vadio. Fosse estudar, decorar os verbos e a tabuada. Estudei, decorei o verbo ter, a multiplicação do sete, e voltei ao pedido. On­de arranjar tanta madeira, tanto prego?

Dias e dias depois, meu carrinho descia a calçada da prefeitura, sem ajuda de ninguém. De tão frágil, porém, não durou muito. Ao bater num tronco de árvore, espatifou-se.

Restava, pois, voltar a correr feito doido pela rua, sujeito a tropeços e quedas. O nome da brincadeira talvez fosse manja ou uma variação dela. Possivelmente o pique, o pega-pega. A brincadeira perdia a graça se na calçada ou às janelas não estivesse a plateia. Geralmen­te senhoras e senhoritas, que arrastavam cadeiras de balanço até à calçada e aí permaneciam horas e horas da noite, a parolar e ver os meninos em algazarra. Quando as primeiras cadeiras voltavam às casas, só nos restava parar, enxugar o suor e dormir.

Sento-me diante da televisão. Vão e vêm bandidos, presidentes, modelos, jogadores, soldados, mendigos. Além, muito além da parede, vejo barquinhos de papel, carrinhos de madeira, bolas de pano. Vamos comer sapoti?

Fonte:
Nilto Maciel. Quintal dos dias. Porto Alegre/RS: Bestiário,2013. p.43-47.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Roberto Pinheiro Acruche (Dia do Trabalho)

O autor é de São Francisco de Itabapoana/RJ

A. A. de Assis (Revista Virtual de Trovas "Trovia" - n. 173 - maio de 2014)



Triste sina dos mortais
é ver, assim malfadadas,
lado a lado almas rivais,
almas gêmeas separadas...
Albercyr Camargo

Quem ama (dizem) não pensa;
pensa, sim, pensa em amar.
No resto é que se dispensa:
não perde o tempo em pensar.
Bastos Tigre

Não adianta nem atrasa
chorar na tua partida...
Saíste de minha casa,
ficaste na minha vida!
Benedita Melo

Saudade, febre que a gente
sem querer pode apanhar;
Nunca mata de repente,
vai matando devagar...
Colombina

Cabelos brancos ao vento,
– Saudade feita de neve!
Mil fibras de sentimento
dizendo a tudo até breve!...
Helvécio Barros

Oh, minha mãe, em meus cantos,
num grato e eterno estribilho,
bendigo a Deus, que, entre tantos,
me escolheu para teu filho!
J. G. de Araújo Jorge

Não foste a minha metade
pois jamais me deste um “sim”,
mas fizeste que a saudade
fosse a metade de mim!
José Maria M. de Araújo – RJ

Dei-te amor sem falsidade
uma floresta de amor.
E tu, só por crueldade,
te fizeste lenhador.
Lilinha Fernandes
 




Chegar mais cedo é proeza
que assusta muito marido,
pois quem chega de surpresa
costuma ser surpreendido!
Arlindo Tadeu Hagen – MG

Os reveses de costume,
tão calma enfrenta Maria,
que lhe chamam... e ela assume...
o nome de Cal-maria.
Dorothy Jansson Moretti – SP

Nos seus encontros ousados
junto da velha porteira,
esperava os namorados:
hoje ela espera a parteira!
Edmar Japiassú Maia – RJ

Casamento de verdade
pouca gente ainda procura:
querem ter a propriedade
sem pagar pela escritura!
Jotão Silva – RJ

Quando no sono mergulho,
quem dorme ao lado... se “ferra”:
– Porque eu faço mais barulho
Do que um trem subindo a serra!!!
Maria  Madalena Ferreira – RJ

Bem pior que a dor de dente
a de rins costuma sê-lo.
Não, porém, mais deprimente
do que a dor de cotovelo...
Osvaldo Reis – PR

“Colesterol sempre sobe
se bebo e como torresmo.”
Diz a mulher: “Não se afobe!
Só isso é que sobe mesmo...”
Wanda de Paula Mourthé – MG


 

Da mãe à filha querida:
– Obrigada, meu bebê...
Fui eu quem lhe dei a vida,
mas minha vida é você!
A. A. de Assis – PR

Olha o cigarro atirado,
aceso e, até, quase inteiro.
– Por favor, seja educado!
Sou floreira e não cinzeiro.
Adélia Woellner – PR

A mensagem carinhosa
de um abraço sedutor
é como dar uma rosa
como símbolo do amor.
Agostinho Rodrigues – RJ

O trinar da corruíra
lembra Dalva de Oliveira;
do alto da sucupira,
encanta a floresta inteira!
Amilton Monteiro – SP

Velha ponte de madeira,
ligando a roça à cidade,
foi a passagem primeira
do meu sonho à realidade...
Angelica Villela Santos – SP

A paixão é traiçoeira,
dizem que pode matar.
Eu digo que é só coceira
gostosa de se coçar.
Ari Santos de Campos – SC

Sempre acolho de mãos postas
e, humilde, tento aceitar
o silêncio das respostas
que a vida não sabe dar!
Carolina Ramos – SP

Essas nuvens de algodão,
que no céu a gente vê,
induzem meu coração
a me lembrar de você.
Clênio Borges – RS

O amor ficou no passado...
– Hoje eu sei por que ficou:
o nosso encontro marcado,
o destino desmarcou!
Clenir Neves Ribeiro – Austrália

O amor oculto floresce
qual rara flor num penedo:
– perfume que remanesce
das delícias de um segredo.
Clevane Pessoa – MG

Enganar que sou feliz
é coisa inútil, porque
meu sorriso triste diz
quanto sofro sem você.
Conceição de Assis – MG

Em vez de bombas, canhões,
fome, miséria, orfandade,
que se unam os corações
na paz da fraternidade!
Cônego Telles – PR

Dios te de sus bendiciones,
salud, amor y ternura,
y todas tus ilusiones
se colmen com tu dulzura.
Cristina Olivera Chávez – USA

Quem se eleva sobre o pranto
não teme a noite vazia
e ao som de um velho acalanto
nina a própria nostalgia.
Dáguima Verônica – MG

Amizade é bênção, graça,
essência que canaliza
duas almas: a que abraça
e a que, do abraço, precisa...
Darly O. Barros – SP

Voei por mil universos
em meu mundo-fantasia
e, com tijolos de versos,
fiz castelos de poesia!
Delcy Canalles – RS

Neste  dia,  quem  te  quer
são  teus  filhos – tua  vida...
– A  glória  de  ser  mulher
e  a  honra  de  ser  querida!
Diamantino Ferreira – RJ

Eu ergo a taça a brindar
a noite que o quarto invade
e no cristal do luar
bebo o vinho da saudade!
Domitilla Borges Beltrame – SP

Numa profusão de cores
vem o outono, sedutor,
inspirar os sonhadores
num convite para o amor.
Eliana Jimenez – SC

Meu beijo tem a fragrância
dos perfumes da amizade,
mas... dado assim à distância
tem mais sabor de saudade!
Elisabeth Souza Cruz – RJ

Quase seca...E a fonte insiste
em seu lamento de dor!
É o canto ficando triste
e a fonte jorrando amor!
Francisco Garcia – RN

Na beira do cais, um lenço,
flutua num vai-e-vem...
Ele diz adeus, eu penso,
com vontade de ir também.
Francisco Pessoa – CE
 

Olhando ao longe, o horizonte,
contemplo a rara beleza
e bendigo a meiga ponte
que me liga à natureza!
Gasparini Filho – SP

Sei que os motivos são poucos,
sei que as razões também são,
mas este amor nos faz loucos
e os loucos não têm razão!
Gerson César de Souza – PR

O meu amor é bonito,
é grande, imenso, sem fim.
É bem maior que o infinito,
mas cabe dentro de mim!
Gislaine Canales – RS

Nosso amor é uma certeza
dentro do meu coração;
e a luz da paixão, acesa,
apaga a luz da razão!
Istela Marina – PR

Um sorriso, uma indulgência,
um gesto ingênuo de adeus...
Por onde houver inocência
há um pedacinho de Deus...
JB Xavier – SP

Nesta imagem refletida
(tão bom se o espelho falasse...),
quanta história está contida
nos vincos da minha face!
Jeanette De Cnop – PR
 

Galgo nuvens montanhosas,
sou na vida um alpinista;
mesmo em trilhas perigosas,
busco os sonhos da conquista.
Jessé Nascimento – RJ

Falsidade deixa brecha
na roda-viva que invade.
Quando o círculo se fecha
escancara-se a verdade.
João B. Xavier Oliveira – SP

Poesia, vida, beleza,
bem-aventurança, dor,
felicidade, tristeza…
É isso e bem mais o amor.
João Costa – RJ

Faz muito bem para a gente
a luta do dia a dia:
– Cansa o corpo, mas à mente
dá redobrada energia.
Jorge Fregadolli – PR
 

Meu coração em pedaços
tinha um céu tão estrelado:
a esperança em teus abraços
e a brisa de apaixonado.
José Feldman – PR

Quando estou em meu terraço,
olhando os astros risonhos,
a Lua atravessa o espaço
puxando o carro dos sonhos.
José Lucas de Barros – RN

Se a vida pede uma pausa,
faça isso, por favor,
ou por amor a uma causa,
ou por causa de um amor!
José Ouverney – SP

Tento fugir da rotina,
conquistar um novo espaço...
mas, minha tristeza assina
seu nome, por onde eu passo...
José Valdez – SP
 

É a sorte um somatório
de bens, ventura, cifrões,
ou tão somente o ilusório
triunfo das ambições?
Lisete Johnson – RS
 

Do amor relembrando o encanto,
eu canto o amor que perdi...
Nos versos respingo o pranto,
num canto eu choro por ti...
Lucília Decarli – PR
 

Em cada nota eu receio,
na pauta que a vida escreve,
que transformem nosso enleio
numa simples semibreve...
Luiz Carlos Abritta – MG
 

O meu amor desmedido,
sem ter cais para ancorar,
parece um barco perdido...
longe da praia... a vagar...
Maria Lua – RJ

O pescador sai bem cedo,
bem antes de o sol raiar;
sai sempre alegre e sem medo,
cheio de sonhos no olhar...
Maria Luiza Walendowsky – SC

Não deixe as cartas que eu mando
sem respostas, por favor,
porque é bom, de vez em quando,
reler mentiras de amor!
Maria Nascimento – RJ

Passa longe um pensamento
e eu nem sei mais de onde vem,
se é tocado pelo vento
ou se é vento ele também
Mário Zamataro – PR

Vejo uma gota de orvalho
pairando sobre uma rosa:
de Deus, é mais um trabalho
para torná-la formosa.
Maurício Friedrich – PR

Paciência teve Jó
que tantas dores sofreu;
perdeu tudo, ficou só,
mas sua fé não morreu.
Mifori – SP

Meus filhos são meus amores,
e o meu amor é tão farto,
que eu não me lembro das dores
e muito menos do parto!
Neide Rocha Portugal – PR
 

Quem tem coração de paz
vive de culpa liberto,
porque faz do bem que faz
um céu de sol mais aberto!
Nilton Manoel – SP

Mantinhas longe o olhar,
e eu, tola, não percebi...
Mesmo dizendo me amar,
aos poucos eu te perdi.
Olga Agulhon – PR

Nada importa, na descida,
se não ocorrer desvio;
os deslizes da subida
é que mostram desafio...
Olga Maria Ferreira – RS
 

A paz está baseada
num conceito natural:
só pode ser alcançada
com justiça social.
Olympio Coutinho – MG

Trovador que espalha o sonho
que lhe mora n'alma inquieta
confessa ao mundo, risonho,
a bênção que é ser poeta!
Renato Alves – RJ

Pião que igual ninguém viu:
coração  girou... girou...
de tanto girar... dormiu
no peito que o encantou!
Roza de Oliveira – PR

No refúgio desmanchamos,
quando ficamos a sós,
esses nós que carregamos
no fundo de todos nós!
Selma Patti Spinelli – SP

Tua alma desperta em mim
tanta calma e tanto ardor,
que, se o amor não for assim,
eu mudo o nome do amor!
Sérgio Ferreira da Silva – SP

No peito do Trovador
tudo é causa de alegria;
pinta o Sol com muito amor
na nuvem preta do dia! ...
Sônia Ditzel Martelo – PR

Ontem levei-te em meus braços
aos ardores da paixão!...
E hoje levo meus cansaços
à paz do teu coração.
Thalma Tavares – SP

À espera dos teus carinhos, 
junto a ti, quando me deito,
sinto o frio dos sozinhos
que dormem no mesmo leito!
Thereza Costa Val - MG

Tendo o amor por inquilino,
com coragem e artimanha,
meu coração é um menino
que ora bate... que ora apanha!
Therezinha Brisolla – SP

O valor da roça encerra
o beijo do sol ardente
que, fertilizando a terra,
sacia a fome da gente.
Vanda Alves – PR

Que este preceito se integre
ao meu simples dia a dia:
– Melhor do que estar alegre,
só mesmo dar alegria.
Vanda Fagundes Queiroz – PR

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Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 1

 Este texto foi elaborado com base em pesquisa desenvolvida por ocasião da minha permanência em Oxford, de abril a junho de 1998, como Visiting Fellow, junto ao Centro Brasileiro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford e como Senior Assistant Member (SAM) junto ao St. Antony’s College, na mesma Universidade de Oxford.

Para aprender o meu nome.
Cecília Meireles

Até que me seja enfim revelado que a vida em mim não tem o meu nome.
Clarice Lispector
 
 Construir e desconstruir nomes ou sistemas de identidade feminina. Esta é uma via trilhada pelas mulheres que escrevem no Brasil. E pode ser um possível caminho para se ler a produção cultural literária feita por mulheres no Brasil.

NO NÚCLEO DA QUESTÃO

Sob tal perspectiva de leitura, Macabéa, a personagem do breve romance intitulado A hora da estrela, da escritora judia (russa/ucraniana) e brasileira (nordestina/carioca) Clarice Lispector[1], constitui um ponto-chave, pois encarna, no seu estado de miserabilidade da identidade pessoal e social, grande parte das mulheres no Brasil. Sem acesso a qualquer bem de produção, essa personagem nordestina parte do sertão de Alagoas para uma grande capital, a cidade do Rio de Janeiro, onde vive na mais completa miséria, sem ter acesso à cultura de bens materiais, intelectuais e afetivos. Não tem condição de construir uma história, já que, à margem dos trilhos que direcionam os acontecimentos, a personagem vive da cultura de sucata: sobras dispensadas pelos outros, os que têm. Por isso resta-lhe apenas, por exemplo, a beleza rosada de outra mulher, Marilyn Monroe, em foto recortada de página de revista velha que ela prega na parede do seu quarto sujo de pensão.

No entanto, vive em estado de pureza. Não tem noção nenhuma a respeito do mundo desumano que a cerca. E o que bem poderia ser, noutro contexto de obra, uma “má consciência”, é, neste romance, um estado de humanismo latente. Macabéa vive, incólume às perversidades do mundo, um estado de condição humana utópica, que desconcerta o leitor: é ao mesmo tempo (sem saber que estava sendo) um pouco cômica e trágica, mas, ao mesmo tempo, eficaz luz de consciência crítica.

Essa moça vive como milhões de outras moças pobres e anônimas da cidade grande. Até que é atropelada e morre. E justamente logo depois que a cartomante lhe anunciara, mentirosamente, a realização de um sonho – o casamento com um rico e belo rapaz alemão. O detalhe de construção da cena fica por conta da contundente ironia de Clarice Lispector: Macabéa é atropelada justamente por um Mercedes Benz…Nessa hora da morte, caída na sarjeta da rua, lugar simbólico, aliás, de onde nunca saiu, Macabéa tem seu único momento de brilho e glória: a morte. É a sua hora da estrela.

Como os macabeus -  de que, aliás, Clarice Lispector, como judia, descende – e tal como os nordestinos, que Clarice Lispector também de certa forma foi, pois na pobre região do nordeste brasileiro viveu toda a infância até a puberdade – Macabéa vive como imigrante, em permanente estado de exílio e, concomitantemente, em permanente estado de resistência contra forças adversas.

A autora Clarice Lispector e a personagem Macabéa encarnam uma situação típica de impasse da mulher brasileira. Encontram-se numa encruzilhada de opções diante do que um “destino de mulher” lhes confere e do que a prática de um determinado olhar feminista revê, seja da perspectiva ingênua e naturalmente humanizada, como em Macabéa, seja da perspectiva lucidamente desconstrutiva, como em Clarice, embora a autora tenha sempre negado tal procedimento como compromisso de vinculação política. De qualquer forma, ambas se encontram num momento crítico da história do contexto de vida da mulher no Brasil, promovido por preconceituosas e injustas desigualdades sociais, pela consideração das diferenças de sexo e pelas múltiplas implicações das questões de gênero, problematizadas no corpo mesmo da representação ou construção simbólica, sob a forma da metalinguagem em arte literária.

Pretende-se, neste texto, determinar alguns momentos mais significativos dessa história da literatura brasileira feita por mulheres, bem como da história dos estudos referentes à mulher no campo da literatura. A exposição parte da seleção de determinadas situações experimentadas pelas mulheres nesse percurso de construção e desconstrução de imagens de si, examinando-as na sua condição de personagens, na sua condição de narradoras e autoras e na sua condição de pesquisadoras e críticas da literatura.

A VISÃO DOS VIAJANTES
 

A condição de subordinação da mulher brasileira, numa sociedade patriarcal de passado colonial, tal como noutros países da América Latina colonizados por europeus, deixou as suas marcas. Talvez a mais evidente delas seja a do silêncio e a de uma ausência, notada tanto no cenário público da vida cultural literária, quanto no registro das histórias da nossa literatura.

Num dos artigos pioneiros no sentido de mapear as “Características da história da mulher no Brasil”, escrito por Maria Beatriz Nizza da Silva, a autora afirma: “não temos acesso direto ao discurso feminino senão tardiamente no século XIX e até então temos de nos contentar em conhecer os desejos, vontades, queixas ou decisões das mulheres através da linguagem formal dos documentos ou petições, manejada pelos homens. A linguagem masculina dos procuradores e advogados sobrepõe-se, deformando-a, a uma linguagem feminina original e inatingível.”[2]

Também os depoimentos de viajantes que estiveram no Brasil no século XIX registram a presença das mulheres que aqui viram – ou não conseguiram ver. Alguns destes textos, reunidos pela historiadora Miriam Moreira Leite, referem-se ao isolamento da mulher no meio doméstico, se mulher branca; e aos vários ofícios que exercia, se mulher negra. Realçam, em ambos os casos, pelo menos em início do século XIX, o baixo rendimento cultural, já que não tinham acesso à educação que lhes garantisse a leitura e a escrita.

É o que afirma, por exemplo, um dos viajantes, B. Debret: “Desde a chegada da Corte ao Brasil tudo se preparara, mas nada de positivo se fizera em prol da educação das jovens brasileiras. Esta, em 1815, se restringia, como antigamente, a recitar preces de cor e a calcular de memória, sem saber escrever nem fazer as operações. Somente o trabalho de agulha ocupava seus lazeres, pois os demais cuidados relativos ao lar são entregues sempre às escravas.”[3]

Pouco tempo antes, um comerciante inglês, John Luccock já observara que, entre as mulheres da classe alta e média, e especialmente as mais moças, “a ignorância entre elas predominava”, o que era estimulado, pois “não se desejava que escrevessem” para que não fizessem “um mau uso dessa arte”. Observa ainda que tais mulheres viviam “muito mais reclusas que em nossa própria terra.”[4]

E é o próprio Debret que nota mudanças a partir de 1820, quando a educação começou a tomar impulso de tal modo que “não é raro encontrar-se uma senhora capaz de manter uma correspondência em várias línguas e apreciar a leitura, como na Europa.”[5] Quanto às mulheres negras escravas, ocupavam-se do trabalho em âmbito doméstico ou em oficinas, sem receberem qualquer instrução, numa situação que haveria de se prolongar por muito tempo. Eram artesãs: faziam flores, rendas, roupas. Ou eram aguadeiras, quitandeiras, amas-de-leite. Conforme observa Ida Pfeiffer, em 1846, “são mantidos de propósito numa espécie de infância (…) pois o despertar desse povo oprimido poderia ser terrível” e então “a população branca poderia tomar o lugar que é hoje ocupado pelos infelizes negros”.[6]

A primeira legislação referente à educação feminina apareceu apenas em 1827, assegurando os estudos elementares. E o ingresso de mulheres em escola normal de São Paulo aconteceu apenas em 1876, embora desde os anos 40 essa escola recebesse alunos de sexo masculino.[7] Mesmo em meados do século XIX, portanto, a mulher permanece isolada de ambiente cultural. E permanece isolada até do convívio de pessoas na sua própria casa. O Conde de Suzannet, em viagem ao Brasil, no ano de 1845, observa que, se no Rio “as mulheres tomam parte da vida social”, “no interior, uma pessoa pode passar semanas inteiras sob um teto sem nem ao menos entrever a mulher e as filhas do dono da casa.”[8] Outras mulheres, caso recusassem casamento de conveniência com rapaz escolhido pela família, eram depositadas no convento, como o convento da Ajuda, e lá ficavam às vezes até à morte, conforme relata o viajante Thomas Ewbank, em 1846.[9]

Em 1865, o viajante Agassiz reitera: “o nível de ensino dado nas escolas femininas é pouquíssimo elevado”, pois se desenvolve dos sete ou oito aos treze ou quatorze anos, quando, então, são retiradas dos colégios e logo se casam. Embora tenha conhecido mulheres de “alta cultura”, considera que são exceções, pois, “efetivamente, nunca conversei com as senhoras brasileiras com quem mais de perto privei no Brasil sem delas receber as mais tristes confidências acerca de sua existência estreita e confinada.”[10] E complementa:

“Não há uma só mulher brasileira que, tendo refletido um pouco sobre o assunto, não se saiba condenada a uma vida de repressões e constrangimento. Não podem transpor a porta de sua casa, senão em determinadas condições, sem provocar escândalo. A educação que lhes dão, limitada a um conhecimento sofrível de Francês e Música, deixa-as na ignorância de uma multidão de questões gerais; o mundo dos livros lhes está fechado, pois é reduzido o número de obras portuguesas que lhes permitem ler, e menor ainda o das obras a seu alcance escritas em outras línguas. Pouca coisa sabem da história do seu país, quase nada da de outras nações, e nem parecem suspeitar que possa haver outro credo religioso além daquele que domina no Brasil(…) Em suma, além do círculo estreito da existência doméstica, nada existe para elas.”[11]

Portanto, o viajante ou não vê a mulher, ou a vê, mas naquilo que, para ela, não existe. Tal olhar, do que vem de fora, estranha e critica a reclusão social e a ignorância intelectual da mulher, ressaltando nela o seu não-estar (ausência no lugar social de prestígio) e o seu não-saber (falta de instrução). Assim sendo, o que efetivamente existia para a mulher, ou seja, o universo feminino que se desenrolava nesse espaço doméstico, para além da descrição da superfície dos gestos vistos como vitimizados, permanece intocado pelo olhar estrangeiro masculino.

 A VISÃO DA ESCRITORA E CRÍTICA LÚCIA MIGUEL PEREIRA

Na tentativa de analisar o contexto cultural da mulher brasileira de modo sistemático, a escritora brasileira Lúcia Miguel Pereira, que escreveu quatro romances problematizando a questão da mulher no Brasil no século XX e que foi também uma estudiosa e crítica da literatura[12], escreveu artigo publicado em 1954, intitulado “As mulheres na literatura brasileira”, em que descreve a condição feminina no Brasil[13].

Aí percorre vários textos que se referem ao papel da mulher na sociedade brasileira, tentando fazer no Brasil o que Virginia Woolf fizera trinta anos atrás na Inglaterra, com as  conferências de 1928, depois revistas e publicadas com o título de A room of one’s own[14]. A ficcionista e crítica, que lera e cita a Virginia Woolf da conferência dirigida para moças de um colégio inglês, procura nomes de escritoras brasileiras nos volumes de histórias da nossa literatura e recorre a algumas obras de escritores renomados para examinar como a mulher aparece aí representada.

Nas histórias de literatura brasileira, encontra poucos nomes. Sílvio Romero, na sua História da Literatura Brasileira, de 1882, mencionou apenas sete. E Sacramento Blake, no seu Dicionário bibliográfico editado em 1889, menciona 56. As referências poderiam se estender a outras histórias de literatura.

Além da ausência da mulher no registro, feito por homens, de produções literárias ao longo da história de nossa literatura, a pesquisadora detém-se em alguns exemplos de ausência da mulher no campo social das atividades artísticas, detectando preconceitos que norteiam o comportamento da mulher no Brasil.

Da obra Compêndio do Peregrino da América, escrita por Nuno Marques Pereira[15], de nacionalidade provavelmente portuguesa, a crítica cita trecho em que o narrador dá conselhos aos homens: que eles não permitam que mulheres “filhas, irmãs, parentas e pessoas honradas de sua obrigação, que estiverem debaixo de sua proteção, vão ver comédias nem semelhantes farsas (…)”, pois “sairão de tais funções distraídas e com pensamentos tão estragados que não se poderá reformar (tais pensamentos) em muitos dias”.[16] Aconselha também a proibição do teatro e da ‘poesia cantada’, como as modinhas de Domingos Caldas Barbosa, “porque grande força faz no sexo feminino”, o qual consegue “perverter e abrasar em um incêndio amoroso”.[17]

Embora reconheça exceções, o quadro geral da condição da mulher no século XVIII prolonga-se até o século XIX, que a escritora bem conhecia, enquanto leitora de Eça de Queiróz e de Machado de Assis; deste último, fez, aliás, renomada biografia.[18] Um agudo ceticismo aparece no comentário que a escritora faz referente às mulheres dos oitocentos.

“Dessas doces donzelinhas, ariscas e sonsas, das ácidas donzelas que, não encontrando marido, se agregavam a parentes, em suas casas vegetando quase como aias, dessas casadas tementes aos maridos ou sorrateiramente os traindo, dessas matriarcas decididas, não raro despóticas, compunha-se a sociedade real, e a que povoava a ficção”.[19]

E depois do romantismo e do realismo, já no final do século XIX, segundo ainda a mesma escritora, tudo parece mudar. Mas não muda. As mulheres tornam-se mais ousadas na valorização do amor físico, que substitui o amor sentimental, mas não há, aí, revolução. Esses casos, de Evas arrebatadas, são considerados mórbidos e excepcionais. Não se altera a estrutura da família, baseada na continência feminina.

Nos seus próprios romances, escritos nos anos 40 e 50 do século XX, a escritora problematiza a questão dos papéis sociais da mulher, detectando preconceitos e censuras, que causam frustrações e retrocessos no percurso das opções por comportamentos e atitudes a serem assumidas pela mulher numa sociedade fechada e altamente codificada. No entanto, a visão que tem a escritora ao acompanhar a história da mulher na literatura brasileira ao longo dos séculos – do século XVIII aos inícios do século XX – parece se pautar por uma crítica severa não dos mecanismos cerceadores, mas dos procedimentos adotados pela mulher imune a ações de uma prática de mudança. O discurso crítico parece crispado por um certo rancor, na denúncia impaciente dos tipos de mulheres oitocentistas que seguem, com disciplina, os papéis institucionalmente impostos e aceitos.

Faltaria, ainda, reconhecer uma outra linhagem de mulheres militantes dentro da literatura (como personagens ou como autoras) e da sociedade (na militância política através sobretudo do veículo jornalístico) que desenvolveram trabalho emancipatório preparador das condições que propiciariam, no século XX, a implementação e solidificação de um movimento que poderíamos chamar de estética feminista.
 
AS PRIMEIRAS ESCRITORAS: DE TEREZA MARGARIDA A NÍSIA FLORESTA

São do século XIX os primeiros textos escritos por mulheres brasileiras que têm alguma divulgação entre o público letrado. Até lá, nos tempos coloniais, a mulher nada escreve, ou escreve mas os textos não aparecem, ou aparecem como exceção, entre maioria quase absoluta de textos escritos por homens. A razão é simples: apenas os homens tinham acesso à educação formal, fornecida não em universidades – cuja criação em terras brasileiras foi proibida pelo reino português – mas em seminários de várias ordens religiosas.

Assim mesmo, nem todos podiam freqüentar os seminários. Em certos casos, lá estudavam desde que não fossem “pardos”. Poderiam também, sobretudo a partir da expulsão dos jesuítas, em 1759, receber as chamadas aulas régias, educação oficial com apoio do rei português, mas em “ensino escolar eloquente, retórico e imitativo – e, de resto, elitista e ornamental”, numa educação “voltada para a perpetuação de uma ordem patriarcal, estatumental e colonial”.[20] Havia, ainda, a possibilidade do autodidatismo, forma de educação não formal, em ambiente doméstico. E ainda em território doméstico, havia distribuição da matéria de acordo com o sexo. De modo geral, ao homem era de praxe se “ensinar a ler, a escrever e contar”, e à mulher, “a coser, lavar, a fazer rendas e todos os misteres femininos”[21], que incluía a reza. Se muitas mulheres, sobretudo irmãs “fêmeas” e sem dote, eram depositadas no convento, muitas também passaram a manter escolas no próprio espaço privado, aí ensinado leitura, música, corte e costura.[22]

No mais, aparecem nomes isolados de escritoras. É o caso de Tereza Margarida da Silva e Orta, filha de um português e uma brasileira, que viveu desde os cinco anos em Portugal. Escreveu obra de cunho moralista, intitulada Aventuras de Diófanes, considerada por alguns como o primeiro romance brasileiro, já que a escritora nasceu no Brasil, e, por outros, como obra portuguesa, já que a autora foi quando menina para Portugal e nunca mais voltou ao Brasil.

O livro, publicado em Portugal em 1752 e que teve outras edições, portuguesas e brasileiras, traduz o gosto clássico, sob a inspiração das Aventuras de Telêmaco, de Fénelon. Revela erudição da mulher que teve acesso à educação, iniciada em Portugal, junto às freiras do convento das Trinas, onde aprende, por exemplo, além do desenho e bordado, idiomas antigos e modernos, letras, história, música, astronomia, filosofia, teologia. E revela também dose de experiência de vida movimentada, de mulher corajosa que enfrenta certos preconceitos. A moça, contrariando a vontade da família, que, aliás, fez fortuna no Brasil, foge de casa para se unir ao jovem e pobre professor alemão. Por isso é deserdada, cabendo a fortuna do pai ao irmão, também escritor, Matias Aires da Silva de Eça, autor de Reflexões sobre a vaidade dos homens, publicado em Lisboa também em 1752. Com 12 filhos, fica viúva, em 1753. É perseguida pelos jesuítas, rebelando-se contra eles no texto Relação abreviada. Fica, no entanto, e por causas desconhecidas, presa durante sete anos, até a queda do Marquês de Pombal, quando morre D. José e sobe ao trono D. Maria I. Já livre da prisão, vive na pobreza, em casa de um cunhado, até morrer, em 1793.[23]

Tais circunstâncias de vida comprovam o contexto europeu em que a escritora se formou e escreveu. Entre o colonizador e o colonizado não existe ainda, praticamente, nenhum embate, pois o que a escritora parece carregar da terra é apenas, além da fortuna do pai, de quem, aliás, nada recebeu porque foi deserdada, a marca de uma nacionalidade em cinco anos de vida aparentemente diluídos na marcante experiência de vida europeia.

Num contexto de cultura colonial em que a fundação de universidades era proibida e em que o analfabetismo imperava, em que as tipografias passam a funcionar livremente apenas depois de 1808, quando a Família Real chega ao Brasil, os textos feitos por mulheres, se existiram, devem ter circulado oralmente: se assim foi, encontram-se na tradição da poesia e contos e cantos populares, território de cultura que merece ainda cuidadosa investigação. Outros textos por elas escritos fariam parte de um contexto de cultura bem específico: o espaço doméstico registrado nos livros de receitas, diários, cartas, simples anotações, orações, pensamentos, lista de deveres e obrigações, que também, efêmeros, quase na sua grande maioria, desapareceram. Quanto aos textos de caráter mais artístico, constituiriam exceção. E são poucas as exceções. Uma delas refere-se aos textos escritos por Nísia Floresta Brasileira Augusta, considerada a primeira feminista brasileira.

Nascida no Rio Grande do Norte, no nordeste, em 1810, a menina Dionísia Gonçalves Pinto[24] logo passa por uma primeira e malfadada experiência de casamento, aos 13 anos de idade. Mora também em Recife, onde o pai é assassinado, e onde se casa novamente, com um acadêmico liberal. Recife era, nesta fase de Independência em relação ao trono português, grande centro de comércio açucareiro e também palco de sucessivas rebeliões que incentivavam a imprensa para a divulgação das propostas liberais. E foi lá que a então jovem escritora iniciou uma militância política e jornalística, de caráter republicano, favorável à liberação dos escravos e à luta pelos direitos da mulher.

Um dos seus mais importantes trabalhos é uma adaptação do livro da inglesa Mary Wollstonecraft (ou Mistriss Godwin), o livro Vindication of the rights of woman, que intitulou Direito das mulheres e injustiça dos homens, publicado em 1832, que assina já como Nísia Floresta Brasileira Augusta.[25] Segundo Constância Lima Duarte, a autora faz uma “tradução livre”, adaptando o texto às circunstâncias da realidade brasileira, tendo como resultado “o texto fundante do feminismo brasileiro”. Afirma a crítica:

“Nísia não realiza, propriamente, uma tradução do texto da feminista. Ela realiza, sim, um outro texto, o seu texto sobre os direitos das mulheres. Mary Wollstonecraft lhe dá a motivação ao colocar em letra impressa questões pertinentes à mulher inglesa, voltadas naturalmente para o público de seu país. Nísia como que realiza uma “antropofagia libertária”. E poderíamos ainda acrescentar: não como opção, mas até como fatalidade histórica. Na deglutição geral das ideias estrangeiras, era praxe promover-se uma acomodação de tais ideias ao cenário nacional. É o que ela faz. Assimila as concepções de Mary Wollstonecraft e devolve um outro produto, pessoal (…) extraído da própria experiência (…)”.[26]

Assim sendo, há pontos em comum: “tanto na denúncia da mulher como classe oprimida como na reivindicação de uma sociedade mais justa, em que ela seja respeitada e tenha os mesmos direitos. Também são pontos comuns as denúncias da superioridade feminina apoiada na força física, a educação como o meio eficaz de promoção feminina e o aparato filosófico de feição iluminista. No mais, os textos se distanciam tomando cada qual o seu rumo, segundo as motivações das autoras, o público a que se destinavam e as peculiaridades da condição feminina num e noutro lugar”.[27]

A escritora inglesa menciona a necessária “revolução”, incluindo a exigência de uma independência econômica, mais tarde configurada no “quarto próprio” da também inglesa Virginia Woolf. Já a brasileira reivindica direitos para mostrar que as mulheres têm também grandeza de alma e que o sexo feminino “não é tão desprezível quanto os homens querem fazer crer”.[28] Conforme explicita Constância Lima Duarte, esta separação entre educação e emancipação marca a posição ambígua da mulher brasileira, posição, aliás, que teria continuidade no final do século XIX e até nos inícios do século XX: a mulher admite e empreende o movimento de luta pela educação sem admitir mudança nos papéis sociais tradicionais da mulher enquanto “mãe” e “rainha do lar”.[29]

A “tradução livre” da obra da escritora inglesa não é atitude isolada e inconsequente. Pelo contrário, faz parte de uma longa carreira dedicada às letras e à educação da mulher. Depois de morar no sul do país, em Porto Alegre, onde fica viúva, a escritora muda-se, com suas duas filhas, para o Rio de Janeiro, onde funda uma escola que mantém durante dezessete anos e que foi severamente criticada por suas propostas educacionais avançadas. E dá continuidade à sua produção literária, reunindo objetivos pedagógicos, moralistas e ficcionais. Com tal intenção, publicou Conselhos à minha filha, em 1842, que teve muitas edições, e Fany ou O modelo das donzelas, de 1847. Escreveu também um poema indianista, A lágrima de um caeté, em 1849, baseado na luta entre brancos e índios que gerou a Revolução Praieira, em Pernambuco, em fevereiro de 1849, e em que, contrariando o estereótipo do bom selvagem, retrata o índio dividido e potencialmente rebelde.

No início de 1850, já na França, frequenta os cursos e conferências pronunciadas pelos positivistas, incluindo aí Auguste Comte. Volta ao Brasil em 1852 e, no ano seguinte, são publicados artigos sobre educação feminina, o Opúsculo Humanitário, no Rio de Janeiro.[30] Para a autora, a educação vincula-se ainda a um projeto de realização pessoal da mulher no universo familiar e doméstico. Mas anuncia também propostas avançadas para a época: a educação deveria ser dirigida a todas as mulheres, incluindo aí as pobres, como meio de livrá-las da miséria, proclamando a necessidade, por si só já revolucionária, de “que todas sejam bem educadas em suas respectivas situações”.[31]

Em 1856 viaja novamente para a Europa e aproxima-se de Auguste Comte, com quem mantém correspondência que traduz a amizade existente entre os dois. Publica ainda tanto o relato de suas viagens pela Alemanha, Itália e Grécia, quanto proclama, em visão ufanista e saudosa, as belezas da cidade do Rio de Janeiro (“Passeio ao Aqueduto da Carioca”), ou as belezas das cidades de Recife e Olinda (“O Brasil”), este último, numa primeira edição italiana, em Florença, com mais um ensaio sobre “A Mulher” e mais três textos, num volume intitulado Cintilações de uma alma brasileira, recentemente editado em português.[32] Volta ao Brasil no decorrer da década de 70. Mas permanece na Europa até morrer, com 76 anos, em 1885.[33]

A obra de Nísia Floresta, de variado assunto e gênero, mostra sensibilidade e lucidez ao abordar não só a beleza da terra brasileira e de tantos países europeus, mas a rebeldia do índio, a educação da mulher e a luta pelos seus direitos, mantendo um fio de coerência intelectual e demarcando, assim, um território preciso e seu, no espaço de construção da mulher brasileira a caminho da sua emancipação cultural.
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Notas

[1] O romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, foi publicado em 1977, ano da morte da escritora, que ocorreu em dezembro desse ano.

Clarice Lispector nasceu em Tchechelnik (Ucrânia), em 1920, quando viajava para o Brasil, onde viveu durante dois anos na cidade de Maceió, no estado de Alagoas, e em seguida, até os seus 12 anos, na cidade de Recife, capital do estado do Pernambuco. As duas cidades estão situadas no nordeste do Brasil, região muito pobre sobretudo no interior (sertão), em que a miséria se agrava devido a longos períodos de seca. (Cf.: Nádia Battella Gotlib, Clarice, uma vida que se conta. São Paulo, Ática, 1995.)

[2] Maria Beatriz Nizza da Silva, “Características da História da Mulher no Brasil”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, 17:75-91, 1987, p. 87. Trata-se de trabalho pioneiro no sentido de se tentar um mapeamento dos estudos referentes à ‘história das mulheres’ no Brasil na área das ciências sociais.

[3] Miriam Moreira Leite (org.), A condição feminina no Rio de Janeiro. Século XIX. São Paulo, Hucitec/INL, 1984, p. 68.

[4] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.68.

[5] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.69.

[6] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.71.

[7] June E. Hahmer, A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas (1850-1937). São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 33.

[8] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob.cit., p. 43.

[9] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p. 63-65.

[10] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.74.

[11] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.74-75.

[12] Os romances publicados por Lúcia Miguel Pereira (1903-1959) são: Maria Luíza, 1933; Em surdina, 1933 (reeditado em 1949); Amanhecer, 1938; Cabra-Cega, 1954. Além desses romances, escreveu também livros de literatura infantil.

[13] Lúcia Miguel Pereira, “As mulheres na literatura brasileira”. Anhembi. Rio de Janeiro, Ano V, vol. XVII, n. 49, dez./54, p.19.

[14] O livro de Virginia Woolf foi traduzido para o português em edição brasileira com o título de Um teto todo seu (Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, ed. Nova Fronteira, 1985).

[15] Nuno Marques Pereira (1652-1731?) publica o seu Compêndio do Peregrino da América em 1728, contando as aventuras de um peregrino que parte pelo sertão brasileiro para converter ao bom caminho moral e religioso, os ambiciosos exploradores de minas, bem como outras pessoas que o peregrino ia encontrando pelo seu caminho.

[16] Domingos Caldas Barbosa (Rio de Janeiro, c.1740 - Lisboa 1800), mestiço, músico, tocador e cantador de viola, compunha e acompanhava modinhas e lunduns. Foi fundador da Nova Arcádia, academia para cultivo da poesia e da oratória. Escreveu, com pseudônimo de Lereno, uma obra intitulada Viola de Lereno, que teve um primeiro volume publicado em 1798 e um segundo, em 1826. Segundo Antonio Candido, “seus versinhos são interessantes, pela candura e amor com que falam das coisas e sentimentos da pátria, definindo de modo explícito os traços afetivos correntemente associados ao brasileiro na psicologia popular: dengue, negaceio, quebranto, derretimento”(Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 5.ed., Belo Horizonte/Itatiaia, São Paulo/Edusp, 1975, tomo I, p. 155). Introduziu a modinha brasileira nos salões de Lisboa, onde cantava seus versos acompanhando-os com viola.

[17] Lúcia Miguel Pereira, ob. cit., p. 20.

[18] Lúcia Miguel Pereira escreveu duas biografias: Machado de Assis, publicada em 1936, com várias reedições; e A Vida de Gonçalves Dias, publicada em 1943. Publicou também uma História da Literatura Brasileira:  Prosa de ficção, de 1870 a 1920, em 1950.

[19] Lúcia Miguel Pereira, ob. cit., p. 22.

[20] Cf. Luiz Carlos Villalta, “O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura”. História da vida privada no Brasil, v. 1: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p.331-385.

[21] Cf. Luiz Carlos Villalta, ob.cit., p.351.

[22] Mary Del Priore, “Ritos da vida privada”. História da vida privada no Brasil, v. 1: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 275-330.

[23] Para bibliografia referente à atividade literária de Teresa Margarida da Silva e Orta, ver: Nelly Novaes Coelho, “A imagem da mulher no século XVIII: Aventuras de Diófanes, de Teresa Margarida”. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, n. 35 (“Imagens da mulher”), jan.-dez. 1995, p. 25-36.

[24] Nasceu a 12 de outubro de 1910, no sítio Floresta, perto de Papari (estado de Alagoas). Cf. Constância Lima Duarte, Nísia Floresta. Vida e obra. Natal, UFRN Editora Universitária, 1995, p.16.

[25]Nísia Floresta Brasileira Augusta, Direitos das mulheres e injustiça dos homens. (Tradução livre do original Vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft). Introdução, notas e posfácio: Constância Lima Duarte. São Paulo, Cortez, 1989.

[26] Constância Lima Duarte, “Nos primórdios do feminismo brasileiro”. Em: Nísia Floresta Brasileira Augusta, Direitos das mulheres e injustiça dos homens. (Tradução livre do original Vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft).Introdução, notas e posfácio: Constância Lima Duarte. São Paulo, Cortez, 1989, p.107-108.

[27] Constância Lima Duarte, ob. cit., p.108.

[28] Constância Lima Duarte, ob. cit., p.121.

[29] Cf. Maria Thereza Caiuby Crescenti Bernardes, Mulheres de ontem? Rio de Janeiro, Século XIX. São Paulo, T. A. Queiroz editor, 1989.

[30] Nísia Floresta Brasileira Augusta, Opúsculo Humanitário. Introdução e notas: Peggy Sharpe-Valadares. São Paulo/Cortez, Brasília/INEP, 1989.

[31] Nísia Floresta Brasileira Augusta, ob. cit., p. 65.

[32] O ensaio “A Mulher” foi traduzido para o inglês pela filha de Nísia Floresta e publicado com o título “Woman”, em Londres, em 1865, por G. Parker, Little St. Andrew Street, Upper, St. Martin Lane. (Cf. Constância Lima Duarte, “Introdução”, em: Nísia Floresta Brasileira Augusta, Cintilações de uma alma brasileira, Trad. de Michele A Vartulli, Florianópolis, Editora Mulheres-Editora da Unisc, 1997, p. XIX.).

A Editora Mulheres, responsável por esta publicação, tem reeditado outros textos escritos por mulheres, privilegiando as escritoras brasileiras do século XIX (é o caso do romance Lésbia, por  Maria Benedita Borman ou Délia, de 1890; e do volumeMulheres Illustres do Brazil, de D. Ignez Sabino, de 1899) e início do século XX (é o caso de A Silveirinha, romance de Júlia Lopes de Almeida, de 1914, por exemplo). A editora tem no prelo uma Antologia de escritoras brasileiras do século XIX, organizada por Zahidé L. Muzart. Também com esta finalidade, o Instituto Nacional do Livro iniciou em 1987 uma coleção intitulada “Resgate”, que publicou, por exemplo, em co-edição com a Presença edições, Correio da roça, de Júlia Lopes de Almeida, romance epistolar de 1913, e Voleta, romance de Albertina Berta, de 1926.

[33] Ver: Constância Lima Duarte, Nísia Floresta. Vida e Obra. Natal, UFRN Editora Universitária, 1995.


Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Regina Bertoccelli (Revoada de Rondéis )

TRANSPARÊNCIAS

Nada em mim é tristonho,
nem o olhar, nem o sorriso.
Por acreditar no meu sonho
vou em busca do paraíso.

Vendo bem por onde eu piso
os obstáculos eu transponho.
Nada em mim é tristonho,
nem o olhar, nem o sorriso.

Uma canção eu componho
contente e de improviso.
Minh'alma eu exponho
deixando aqui um aviso:
Nada em mim  é tristonho.

SEPARAÇÃO

Sem ti, minh'alma vagueia
pelos becos escuros da solidão.
É grande em meu peito a agonia,
dói demais o meu coração.
 
Perdi o rumo, estou sem direção,
foi embora toda a minha alegria.
Sem ti, minh'alma vagueia
pelos becos escuros da solidão.
 
Volta amor, dá-me a tua poesia
que cantarei pra ti uma canção.
Se o meu sorriso te contagia,
não vaciles, põe fim à separação.
Sem ti, minh'alma vagueia…

NAS ASAS DA POESIA

Vou voar nas asas da poesia,
deixar o vento levar minha mente.
O momento é de pura magia,
o coração feliz bate contente.
 
A alma confortada vibra e sente
a chegada de minha alegria.
Vou voar nas asas da poesia,
deixar o vento levar minha mente.
 
No embalo de uma suave sinfonia
a inspiração se fez presente.
Revigorada e cheia de energia
vou compor meus versos novamente.
Vou voar nas asas da poesia…

CÚMPLICES

Quero-te sempre ao meu lado,
dividir contigo minha alegria.
Posso ser o sonho desejado
de tua noite fria e vazia.
 
Farei pra ti uma poesia
depois do amor consumado.
Quero-te sempre ao meu lado,
dividir contigo minha alegria.
 
Vem, deita aqui do meu lado,
logo surgirá um novo dia.
Descansa teu corpo cansado,
entre nossas almas há sintonia.
Quero-te sempre ao meu lado.

ATRAVÉS DA VIDRAÇA

Através da vidraça vejo o céu nublado
e os respingos da chuva na calçada.
Sozinha, penso no meu amado
com a alma angustiada.
 
Em breve virá a madrugada
e muito já terei chorado.
Através da vidraça vejo o céu nublado
e os respingos da chuva na calçada.
 
Sopra um vento forte e gelado
que estremece a janela molhada.
Com o coração triste e encarcerado
repouso minh'alma extenuada.
Através da vidraça vejo o céu nublado…

ERA UMA VEZ...

Era uma vez o amor,
Um belo sonho ruído,
Na triste face da dor
Desse amor destruído!

Saji Pokeo


Era uma vez um amor que findou
e que destruiu um lindo sonho.
Por isso, tudo em mim mudou
e meu sorriso ficou tristonho.

Minha dor agora eu exponho
porque em mim você não acreditou.
Era uma vez um amor que findou
e que destruiu um lindo sonho.

O meu coração você atingiu e abalou,
tornou meu viver triste e medonho.
Mas agora que tudo passou e acabou,
terei um novo sonho...eu suponho...
Era uma vez um amor que findou.

ESQUECIMENTO

Jaz em cova profunda tua lembrança,
as promessas vãs e o tempo perdido.
Em tuas palavras perdi a confiança,
nada mais entre nós faz sentido.

 De luto meu coração está vestido,
espera ele por uma nova mudança.
Jaz em cova profunda tua lembrança,
as promessas vãs e o tempo perdido.
 
Depois da tempestade vem a bonança,
todo o mal que vivi será esquecido.
Vou procurar sem perder a esperança,
hei de encontrar um amor querido.
Jaz em cova profunda tua lembrança.

COISAS DO CORAÇÃO

Meu coração anda descompassado,
bate assim...meio sem jeito.
Talvez ele esteja cansado
de viver em meu peito.
 
Preciso encontrar o defeito,
saber o que está errado.
Meu coração anda descompassado,
bate assim...meio sem jeito.
 
Tenho pena do pobre coitado,
sem ritmo vive insatisfeito.
Para tê-lo feliz e sossegado,
qualquer conselho eu aceito.
Meu coração anda descompassado…

ABRAÇADA COM A SAUDADE

Adormeci  abraçada com a saudade,
vestida com as cores do passado.
Com a alma em liberdade,
sonhei com o meu amado.
 
Meu coração está apaixonado,
esta é minha realidade.
Adormeci abraçada com a saudade,
vestida com as cores do passado.
 
Por instantes vivi a felicidade
de ter meu desejo realizado.
Despertei feliz, é verdade,
meu coração está  consolado.
Adormeci abraçada com a saudade…

Fonte:
http://www.recantodasletras.com.br/autor_textos.php?pag=2&id=5527&categoria=L

Angelica Villela Santos (Uma cena de amor)

I Troféu Falando de Amor (Categoria Prosa) Medalha de Ouro
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Uma comprida fila de formigas vinha todas as noites banquetear-se na lixeirinha que tenho sobre a pia da cozinha, onde entravam, mesmo estando tampada. Observei  onde se abrigavam e de lá saiam para o banquete. Resolvi, então, tampar o buraquinho com miolo de pão umedecido, como aprendi a fazer com minha avó materna.

– Demora algum tempo, mas elas acharão outro caminho e um dia voltarão, principalmente se o lixo lhes for apetitoso.  Mesmo que você tampe o buraco com cimento, isto vai acontecer em outro ponto qualquer da parede ou do chão. Esses bichinhos são danadinhos! E não fique pensando que ficarão sufocadas dentro do buraco tampado, como você, que ama todos os animais, já deve estar pensando. As espertinhas devem ter alguma outra saída ou até mais de uma, para escaparem, atraídas por outra guloseima.  Então, use o miolo de pão, que é barato e fácil de ser colocado,  dizia vovó.

Quando cheguei em casa à noite, resolvi por em prática a operação., mas não ia fazer a maldade de tampar o buraquinho antes delas irem embora.

Quando levantei a tampa da lixeira, foi aquela debandada geral!  Coloquei o miolo de pão, mas vi, logo em seguida, que uma delas – talvez a mais gulosa – havia ficado para trás e estava toda agitada, fazendo ziguezagues na parede azulejada, pois encontrara o buraco fechado.

Imediatamente, tirei a massinha e daí a instantes, saíram duas, desceram pela parede e, encontrando a companheira, encostaram as cabecinhas contra a dela, num colóquio que só elas ouviram – mas eu entendi – e, muito ligeiras, partiram em direção ao abrigo, com a outra seguindo logo atrás. Aquela cena de amor, de solidariedade entre as formiguinhas, me tocou profundamente,  principalmente tendo em vista o mundo atual, onde o amor está tão distante e o   lema dos humanos é: “Salve-se quem puder!”     

Dorothy Jansson Moretti (Baú de Trovas) 8


Machado de Assis (D. Paula)

Não era possível chegar mais a ponto. D. Paula entrou na sala exatamente quando a sobrinha enxugava os olhos cansados de chorar. Compreende-se o assombro da tia. Entender-se-á também o da sobrinha, em se sabendo que D. Paula vive no alto da Tijuca, donde raras vezes desce; a última foi pelo Natal passado, e estamos em maio de 1882. Desceu ontem, à tarde, e foi para casa da irmã, Rua do Lavradio. Hoje, tão depressa almoçou, vestiu-se e correu a visitar a sobrinha. A primeira escrava que a viu, quis ir avisar a senhora, mas D. Paula ordenou-lhe que não, e foi pé ante pé, muito devagar, para impedir o rumor das saias, abriu a porta da sala de visitas, e entrou.

- Que é isto? exclamou.

Venancinha atirou-se-lhe aos braços, as lágrimas vieram-lhe de novo. A tia beijou-a muito, abraçou-a, disse-lhe palavras de conforto e pediu, e quis que lhe contasse o que era, se alguma doença, ou...

- Antes fosse uma doença! antes fosse a morte! interrompeu a moça.

- Não digas tolices; mas que foi? anda, que foi?

Venancinha enxugou os olhos e começou a falar. Não pôde ir além de cinco ou seis palavras; as lágrimas tornaram, tão abundantes e impetuosas, que D. Paula achou de bom aviso deixá-las correr primeiro. Entretanto, foi tirando a capa de rendas pretas que a envolvia, e descalçando as luvas. Era uma bonita velha, elegante, dona de um par de olhos grandes, que deviam ter sido infinitos. Enquanto a sobrinha chorava, ela foi cerrar cautelosamente a porta da sala, e voltou ao canapé. No fim de alguns minutos, Venancinha cessou de chorar, e confiou à tia o que era.

Era nada menos que uma briga com o marido, tão violenta, que chegaram a falar de separação. A causa eram ciúmes. Desde muito que o marido embirrava com um sujeito; mas na véspera à noite, em casa do C..., vendo-a dançar com ele duas vezes e conversar alguns minutos, concluiu que eram namorados. Voltou amuado para casa de manhã, acabado o almoço, a cólera estourou, e ele disse-lhe coisas duras e amargas, que ela repeliu com outras.

- Onde está teu marido? perguntou a tia.

- Saiu; parece que foi para o escritório.

D. Paula perguntou-lhe se o escritório era ainda o mesmo, e disse-lhe que descansasse, que não era nada, dali a duas horas tudo estaria acabado. Calçava as luvas rapidamente.

- Titia vai lá?

- Vou... Pois então? Vou. Teu marido é bom, são arrufos. 104? Vou lá; espera por mim, que as escravas não te vejam.

Tudo isso era dito com volubilidade, confiança e doçura. Calçadas as luvas, pôs o mantelete, e a sobrinha ajudou-a, falando também, jurando que, apesar de tudo, adorava o Conrado. Conrado era o marido, advogado desde 1874. D. Paula saiu, levando muitos beijos da moça. Na verdade, não podia chegar mais a ponto. De caminho, parece que ela encarou o incidente, não digo desconfiada, mas curiosa, um pouco inquieta da realidade positiva; em todo caso ia resoluta a reconstruir a paz doméstica.

Chegou, não achou o sobrinho no escritório, mas ele veio logo, e, passado o primeiro espanto, não foi preciso que D. Paula lhe dissesse o objeto da visita; Conrado adivinhou tudo. Confessou que fora excessivo em algumas coisas, e, por outro lado, não atribuía à mulher nenhuma índole perversa ou viciosa. Só isso; no mais, era uma cabeça de vento, muito amiga de cortesias, de olhos ternos, de palavrinhas doces, e a leviandade também é uma das portas do vício. Em relação à pessoa de quem se tratava, não tinha dúvida de que eram namorados. Venancinha contara só o fato da véspera; não referiu outros, quatro ou cinco, o penúltimo no teatro, onde chegou a haver tal ou qual escândalo. Não estava disposto a cobrir com a sua responsabilidade os desazos da mulher. Que namorasse, mas por conta própria.

D. Paula ouviu tudo, calada; depois falou também. Concordava que a sobrinha fosse leviana; era próprio da idade. Moça bonita não sai à rua sem atrair os olhos, e é natural que a admiração dos outros a lisonjeie. Também é natural que o que ela fizer de lisonjeada pareça aos outros e ao marido um princípio de namoro: a fatuidade de uns e o ciúme do outro explicam tudo. Pela parte dela, acabava de ver a moça chorar lágrimas sinceras, deixou-a consternada, falando de morrer, abatida com o que ele lhe dissera. E se ele próprio só lhe atribuía leviandade, por que não proceder com cautela e doçura, por meio de conselho e de observação, poupando-lhe as ocasiões, apontando-lhe o mal que fazem à reputação de uma senhora as aparências de acordo, de simpatia, de boa vontade para os homens?

Não gastou menos de vinte minutos a boa senhora em dizer essas coisas mansas, com tão boa sombra, que o sobrinho sentiu apaziguar-se-lhe o coração. Resistia, é verdade; duas ou três vezes, para não resvalar na indulgência, declarou à tia que entre eles tudo estava acabado. E, para animar-se, evocava mentalmente as razões que tinha contra a mulher. A tia, porém, abaixava a cabeça para deixar passar a onda, e surgia outra vez com os seus grandes olhos sagazes e teimosos. Conrado ia cedendo aos poucos e mal. Foi então que D. Paula propôs um meio-termo.

- Você perdoa-lhe, fazem as pazes, e ela vai estar comigo, na Tijuca, um ou dois meses; uma espécie de desterro. Eu, durante este tempo, encarrego-me de lhe pôr ordem no espírito. Valeu?

Conrado aceitou. D. Paula, tão depressa obteve a palavra, despediu-se para levar a boa nova à outra, Conrado acompanhou-a até à escada. Apertaram as mãos; D. Paula não soltou a dele sem lhe repetir os conselhos de brandura e prudência; depois, fez esta reflexão natural:

- E vão ver que o homem de quem se trata nem merece um minuto dos nossos cuidados...

- É um tal Vasco Maria Portela...

D. Paula empalideceu. Que Vasco Maria Portela? Um velho, antigo diplomata, que... Não, esse estava na Europa desde alguns anos, aposentado, e acabava de receber um título de barão. Era um filho dele, chegado de pouco, um pelintra... D. Paula apertou-lhe a mão, e desceu rapidamente. No corredor, sem ter necessidade de ajustar a capa, fê-lo durante alguns minutos, com a mão trêmula e um pouco de alvoroço na fisionomia. Chegou mesmo a olhar para o chão, refletindo. Saiu, foi ter com a sobrinha, levando a reconciliação e a cláusula. Venancinha aceitou tudo.

Dois dias depois foram para a Tijuca. Venancinha ia menos alegre do que prometera; provavelmente era o exílio, ou pode ser também que algumas saudades. Em todo caso, o nome de Vasco subiu a Tijuca, se não em ambas as cabeças, ao menos na da tia, onde era uma espécie de eco, um som remoto e brando, alguma coisa que parecia vir do tempo da Stoltz e do ministério Paraná. Cantora e ministério, coisas frágeis, não o eram menos que a ventura de ser moça, e onde iam essas três eternidades? Jaziam nas ruínas de trinta anos. Era tudo o que D. Paula tinha em si e diante de si.

Já se entende que o outro Vasco, o antigo, também foi moço e amou. Amaram-se, fartaram-se um do outro, à sombra do casamento, durante alguns anos, e, como o vento que passa não guarda a palestra dos homens, não há meio de escrever aqui o que então se disse da aventura. A aventura acabou; foi uma sucessão de horas doces e amargas, de delícias, de lágrimas, de cóleras, de arroubos, drogas várias com que encheram a esta senhora a taça das paixões. D. Paula esgotou-a inteira e emborcou-a depois para não mais beber. A saciedade trouxe-lhe a abstinência, e com o tempo foi esta última fase que fez a opinião. Morreu-lhe o marido e foram vindo os anos. D. Paula era agora uma pessoa austera e pia, cheia de prestígio e consideração.

A sobrinha é que lhe levou o pensamento ao passado. Foi a presença de uma situação análoga, de mistura com o nome e o sangue do mesmo homem, que lhe acordou algumas velhas lembranças. Não esqueçam que elas estavam na Tijuca, que iam viver juntas algumas semanas, e que uma obedecia à outra; era tentar e desafiar a memória

- Mas nós deveras não voltamos à cidade tão cedo? perguntou Venancinha rindo, no outro dia de manhã.

- Já estás aborrecida?

- Não, não, isso nunca, mas pergunto...

D. Paula, rindo também, fez com o dedo um gesto negativo; depois, perguntou-lhe se tinha saudades cá de baixo. Venancinha respondeu que nenhumas; e para dar mais força à resposta, acompanhou-a de um descair dos cantos da boca, a modo de indiferença e desdém. Era pôr demais na carta, D. Paula tinha o bom costume de não ler às carreiras, como quem vai salvar o pai da forca, mas devagar, enfiando os olhos entre as sílabas e entre as letras, para ver tudo, e achou que o gesto da sobrinha era excessivo.

"Eles amam-se!" pensou ela.

A descoberta avivou o espírito do passado. D. Paula forcejou por sacudir fora essas memórias importunas; elas, porém, voltavam, ou de manso ou de assalto, como raparigas que eram, cantando, rindo, fazendo o diabo. D. Paula tornou aos seus bailes de outro tempo, às suas eternas valsas que faziam pasmar a toda a gente, às mazurcas, que ela metia à cara das sobrinha como sendo a mais graciosa coisa do mundo, e aos teatros, e às cartas, e vagamente, aos beijos; mas tudo isso - e esta é a situação - tudo isso era como as frias crônicas, esqueleto da história, sem a alma da história. Passava-se tudo na cabeça. D. Paula tentava emparelhar o coração com o cérebro, a ver se sentia alguma coisa além da pura repetição mental, mas, por mais que evocasse as comoções extintas, não lhe voltava nenhuma. Coisas truncadas!

Se ela conseguisse espiar para dentro do coração da sobrinha, pode ser que achasse ali a sua imagem, e então... Desde que esta idéia penetrou no espírito de D. Paula, complicou-lhe um pouco a obra de reparação e cura. Era sincera, tratava da alma da outra, queria vê-la restituída ao marido. Na constância do pecado é que se pode desejar que outros pequem também, para descer de companhia ao purgatório; mas aqui o pecado já não existia. D. Paula mostrava à sobrinha a superioridade do marido, as suas virtudes e assim também as paixões, que podiam dar um mau desfecho ao casamento, pior que trágico, o repúdio.

Conrado, na primeira visita que lhes fez, nove dias depois, confirmou a advertência da tia; entrou frio e saiu frio. Venancinha ficou aterrada. Esperava que os nove dias de separação tivessem abrandado o marido, e, em verdade, assim era; mas ele mascarou-se à entrada e conteve-se para não capitular. E isto foi mais salutar que tudo o mais. O terror de perder o marido foi o principal elemento de restauração. O próprio desterro não pôde tanto.

Vai senão quando, dois dias depois daquela visita, estando ambas ao portão da chácara, prestes a sair para o passeio do costume, viram vir um cavaleiro. Venancinha fixou a vista, deu um pequeno grito, e correu a esconder-se atrás do muro. D. Paula compreendeu e ficou. Quis ver o cavaleiro de mais perto; viu-o dali a dois ou três minutos, um galhardo rapaz, elegante, com as suas finas botas lustrosas, muito bem-posto no selim; tinha a mesma cara do outro Vasco, era o filho; o mesmo jeito da cabeça, um pouco à direita, os mesmos ombros largos, os mesmos olhos redondos e profundos.

Nessa mesma noite, Venancinha contou-lhe tudo, depois da primeira palavra que ela lhe arrancou. Tinham-se visto nas corridas, uma vez, logo que ele chegou da Europa. Quinze dias depois, foi-lhe apresentado em um baile, e pareceu-lhe tão bem, com um ar tão parisiense, que ela falou dele, na manhã seguinte, ao marido. Conrado franziu o sobrolho, e foi este gesto que lhe deu uma idéia que até então não tinha. Começou a vê-lo com prazer; daí a pouco com certa ansiedade. Ele falava-lhe respeitosamente, dizia-lhe coisas amigas, que ela era a mais bonita moça do Rio, e a mais elegante, que já em Paris ouvira elogiá-la muito, por algumas senhoras da família Alvarenga. Tinha graça em criticar os outros, e sabia dizer também umas palavras sentidas, como ninguém. Não falava de amor, mas perseguia-a com os olhos, e ela, por mais que afastasse os seus, não podia afastá-los de todo. Começou a pensar nele, amiudadamente, com interesse, e quando se encontravam, batia-lhe muito o coração, pode ser que ele lhe visse então, no rosto, a impressão que fazia.

D. Paula, inclinada para ela, ouvia essa narração, que aí fica apenas resumida e coordenada. Tinha toda a vida nos olhos; a boca meio aberta, parecia beber as palavras da sobrinha, ansiosamente, como um cordial. E pedia-lhe mais, que lhe contasse tudo, tudo. Venancinha criou confiança. O ar da tia era tão jovem, a exortação tão meiga e cheia de um perdão antecipado, que ela achou ali uma confidente e amiga, não obstante algumas frases severas que lhe ouviu, mescladas às outras, por um motivo de inconsciente hipocrisia. Não digo cálculo; D. Paula enganava-se a si mesma. Podemos compará-la a um general inválido, que forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas.

- Já vês que teu marido tinha razão, dizia ela; foste imprudente, muito imprudente...

Venancinha achou que sim, mas jurou que estava tudo acabado.

- Receio que não. Chegaste a amá-lo deveras?

- Titia...

- Tu ainda gostas dele!

- Juro que não. Não gosto; mas confesso... sim... confesso que gostei... Perdoe-me tudo; não diga nada a Conrado; estou arrependida... Repito que a princípio um pouco fascinada... Mas que quer a senhora?

- Ele declarou-te alguma coisa?

- Declarou; foi no teatro, uma noite, no Teatro Lírico, à saída. Tinha costume de ir buscar-me ao camarote e conduzir-me até o carro, e foi à saída... duas palavras...

D. Paula não perguntou, por pudor, as próprias palavras do namorado, mas imaginou as circunstâncias, o corredor, os pares que saíam, as luzes, a multidão, o rumor das vozes, e teve o poder de representar, com o quadro, um pouco das sensações dela; e pediu-lhas com interesse, astutamente.

- Não sei o que senti, acudiu a moça cuja comoção crescente ia desatando a língua; não me lembro dos primeiros cinco minutos. Creio que fiquei séria; em todo o caso, não lhe disse nada. Pareceu-me que toda gente olhava para nós, que teriam ouvido, e quando alguém me cumprimentava sorrindo, dava-me idéia de estar caçoando. Desci as escadas não sei como, entrei no carro sem saber o que fazia; ao apertar-lhe a mão, afrouxei bem os dedos. Juro-lhe que não queria ter ouvido nada. Conrado disse-me que tinha sono, e encostou-se ao fundo do carro; foi melhor assim, porque eu não sei que diria, se tivéssemos de ir conversando. Encostei-me também, mas por pouco tempo; não podia estar na mesma posição. Olhava para fora através dos vidros, e via só o clarão dos lampiões, de quando em quando, e afinal nem isso mesmo; via os corredores do teatro, as escadas, as pessoas todas, e ele ao pé de mim, cochichando as palavras, duas palavras só, e não posso dizer o que pensei em todo esse tempo; tinha as idéias baralhadas, confusas, uma revolução em mim...

- Mas, em casa?

- Em casa, despindo-me, é que pude refletir um pouco, mas muito pouco. Dormi tarde, e mal. De manhã, tinha a cabeça aturdida. Não posso dizer que estava alegre nem triste, lembro-me que pensava muito nele, e para arredá-lo prometi a mim mesma revelar tudo ao Conrado; mas o pensamento voltava outra vez. De quando em quando, parecia-me escutar a voz dele, e estremecia. Cheguei a lembrar-me que, à despedida, lhe dera os dedos frouxos, e sentia, não sei como diga, uma espécie de arrependimento, um medo de o ter ofendido... e depois vinha o desejo de o ver outra vez... Perdoe-me, titia; a senhora é que quer que lhe conte tudo.

A resposta de D. Paula foi apertar-lhe muito a mão e fazer um gesto de cabeça. Afinal achava alguma coisa de outro tempo, ao contato daquelas sensações ingenuamente narradas. Tinha os olhos ora meio cerrados, na sonolência da recordação, - ora aguçados de curiosidade e calor, e ouvia tudo, dia por dia, encontro por encontro, a própria cena do teatro, que a sobrinha a princípio lhe ocultara. E vinha tudo o mais, horas de ânsia, de saudade, de medo, de esperança, desalentos, dissimulações, ímpetos, toda a agitação de uma criatura em tais circunstâncias, nada dispensava a curiosidade insaciável da tia. Não era um livro, não era sequer um capítulo de adultério, mas um prólogo, - interessante e violento.

Venancinha acabou. A tia não lhe disse nada, deixou-se estar metida em si mesma; depois acordou, pegou-lhe na mão e puxou-a. Não lhe falou logo; fitou primeiro, e de perto, toda essa mocidade, inquieta e palpitante, a boca fresca, os olhos ainda infinitos, e só voltou a si quando a sobrinha lhe pediu outra vez perdão. D. Paula disse-lhe tudo o que a ternura e a austeridade da mãe lhe poderia dizer, falou-lhe de castidade, de amor ao marido, de respeito público; foi tão eloqüente que Venancinha não pôde conter-se, e chorou.

Veio o chá, mas não há chá possível depois de certas confidências. Venancinha recolheu-se logo, e, como a luz era agora maior, saiu da sala com os olhos baixos, para que o criado lhe não visse a comoção. D. Paula ficou diante da mesa e do criado. Gastou vinte minutos, ou pouco menos, em beber uma xícara de chá e roer um biscoito, e apenas ficou só, foi encostar-se à janela, que dava para a chácara.

Ventava um pouco, as folhas moviam-se sussurrando, e, conquanto não fossem as mesmas do outro tempo, ainda assim perguntavam-lhe: "Paula, você lembra-se do outro tempo?" Que esta é a particularidade das folhas, as gerações que passam contam às que chegam as coisas que viram, e é assim que todas sabem tudo e perguntam por tudo. Você lembra-se do outro tempo?

Lembrar, lembrava, mas aquela sensação de há pouco, reflexo apenas, tinha agora cessado. Em vão repetia as palavras da sobrinha, farejando o ar agreste da noite: era só na cabeça que achava algum vestígio, reminiscências, coisas truncadas. O coração empacara de novo, o sangue ia outra vez com a andadura do costume. Faltava-lhe o contato moral da outra. E continuava, apesar de tudo, diante da noite, que era igual às outras noites de então, e nada tinha que se parecesse com as do tempo da Stoltz e do Marquês de Paraná; mas continuava, e lá dentro as pretas espalhavam o sono contando anedotas, e diziam, uma ou outra vez, impacientes:

– Sinhá velha hoje deita tarde como diabo!

Fonte:
Machado de Assis. Várias Histórias.