quinta-feira, 1 de maio de 2014

Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 1

 Este texto foi elaborado com base em pesquisa desenvolvida por ocasião da minha permanência em Oxford, de abril a junho de 1998, como Visiting Fellow, junto ao Centro Brasileiro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford e como Senior Assistant Member (SAM) junto ao St. Antony’s College, na mesma Universidade de Oxford.

Para aprender o meu nome.
Cecília Meireles

Até que me seja enfim revelado que a vida em mim não tem o meu nome.
Clarice Lispector
 
 Construir e desconstruir nomes ou sistemas de identidade feminina. Esta é uma via trilhada pelas mulheres que escrevem no Brasil. E pode ser um possível caminho para se ler a produção cultural literária feita por mulheres no Brasil.

NO NÚCLEO DA QUESTÃO

Sob tal perspectiva de leitura, Macabéa, a personagem do breve romance intitulado A hora da estrela, da escritora judia (russa/ucraniana) e brasileira (nordestina/carioca) Clarice Lispector[1], constitui um ponto-chave, pois encarna, no seu estado de miserabilidade da identidade pessoal e social, grande parte das mulheres no Brasil. Sem acesso a qualquer bem de produção, essa personagem nordestina parte do sertão de Alagoas para uma grande capital, a cidade do Rio de Janeiro, onde vive na mais completa miséria, sem ter acesso à cultura de bens materiais, intelectuais e afetivos. Não tem condição de construir uma história, já que, à margem dos trilhos que direcionam os acontecimentos, a personagem vive da cultura de sucata: sobras dispensadas pelos outros, os que têm. Por isso resta-lhe apenas, por exemplo, a beleza rosada de outra mulher, Marilyn Monroe, em foto recortada de página de revista velha que ela prega na parede do seu quarto sujo de pensão.

No entanto, vive em estado de pureza. Não tem noção nenhuma a respeito do mundo desumano que a cerca. E o que bem poderia ser, noutro contexto de obra, uma “má consciência”, é, neste romance, um estado de humanismo latente. Macabéa vive, incólume às perversidades do mundo, um estado de condição humana utópica, que desconcerta o leitor: é ao mesmo tempo (sem saber que estava sendo) um pouco cômica e trágica, mas, ao mesmo tempo, eficaz luz de consciência crítica.

Essa moça vive como milhões de outras moças pobres e anônimas da cidade grande. Até que é atropelada e morre. E justamente logo depois que a cartomante lhe anunciara, mentirosamente, a realização de um sonho – o casamento com um rico e belo rapaz alemão. O detalhe de construção da cena fica por conta da contundente ironia de Clarice Lispector: Macabéa é atropelada justamente por um Mercedes Benz…Nessa hora da morte, caída na sarjeta da rua, lugar simbólico, aliás, de onde nunca saiu, Macabéa tem seu único momento de brilho e glória: a morte. É a sua hora da estrela.

Como os macabeus -  de que, aliás, Clarice Lispector, como judia, descende – e tal como os nordestinos, que Clarice Lispector também de certa forma foi, pois na pobre região do nordeste brasileiro viveu toda a infância até a puberdade – Macabéa vive como imigrante, em permanente estado de exílio e, concomitantemente, em permanente estado de resistência contra forças adversas.

A autora Clarice Lispector e a personagem Macabéa encarnam uma situação típica de impasse da mulher brasileira. Encontram-se numa encruzilhada de opções diante do que um “destino de mulher” lhes confere e do que a prática de um determinado olhar feminista revê, seja da perspectiva ingênua e naturalmente humanizada, como em Macabéa, seja da perspectiva lucidamente desconstrutiva, como em Clarice, embora a autora tenha sempre negado tal procedimento como compromisso de vinculação política. De qualquer forma, ambas se encontram num momento crítico da história do contexto de vida da mulher no Brasil, promovido por preconceituosas e injustas desigualdades sociais, pela consideração das diferenças de sexo e pelas múltiplas implicações das questões de gênero, problematizadas no corpo mesmo da representação ou construção simbólica, sob a forma da metalinguagem em arte literária.

Pretende-se, neste texto, determinar alguns momentos mais significativos dessa história da literatura brasileira feita por mulheres, bem como da história dos estudos referentes à mulher no campo da literatura. A exposição parte da seleção de determinadas situações experimentadas pelas mulheres nesse percurso de construção e desconstrução de imagens de si, examinando-as na sua condição de personagens, na sua condição de narradoras e autoras e na sua condição de pesquisadoras e críticas da literatura.

A VISÃO DOS VIAJANTES
 

A condição de subordinação da mulher brasileira, numa sociedade patriarcal de passado colonial, tal como noutros países da América Latina colonizados por europeus, deixou as suas marcas. Talvez a mais evidente delas seja a do silêncio e a de uma ausência, notada tanto no cenário público da vida cultural literária, quanto no registro das histórias da nossa literatura.

Num dos artigos pioneiros no sentido de mapear as “Características da história da mulher no Brasil”, escrito por Maria Beatriz Nizza da Silva, a autora afirma: “não temos acesso direto ao discurso feminino senão tardiamente no século XIX e até então temos de nos contentar em conhecer os desejos, vontades, queixas ou decisões das mulheres através da linguagem formal dos documentos ou petições, manejada pelos homens. A linguagem masculina dos procuradores e advogados sobrepõe-se, deformando-a, a uma linguagem feminina original e inatingível.”[2]

Também os depoimentos de viajantes que estiveram no Brasil no século XIX registram a presença das mulheres que aqui viram – ou não conseguiram ver. Alguns destes textos, reunidos pela historiadora Miriam Moreira Leite, referem-se ao isolamento da mulher no meio doméstico, se mulher branca; e aos vários ofícios que exercia, se mulher negra. Realçam, em ambos os casos, pelo menos em início do século XIX, o baixo rendimento cultural, já que não tinham acesso à educação que lhes garantisse a leitura e a escrita.

É o que afirma, por exemplo, um dos viajantes, B. Debret: “Desde a chegada da Corte ao Brasil tudo se preparara, mas nada de positivo se fizera em prol da educação das jovens brasileiras. Esta, em 1815, se restringia, como antigamente, a recitar preces de cor e a calcular de memória, sem saber escrever nem fazer as operações. Somente o trabalho de agulha ocupava seus lazeres, pois os demais cuidados relativos ao lar são entregues sempre às escravas.”[3]

Pouco tempo antes, um comerciante inglês, John Luccock já observara que, entre as mulheres da classe alta e média, e especialmente as mais moças, “a ignorância entre elas predominava”, o que era estimulado, pois “não se desejava que escrevessem” para que não fizessem “um mau uso dessa arte”. Observa ainda que tais mulheres viviam “muito mais reclusas que em nossa própria terra.”[4]

E é o próprio Debret que nota mudanças a partir de 1820, quando a educação começou a tomar impulso de tal modo que “não é raro encontrar-se uma senhora capaz de manter uma correspondência em várias línguas e apreciar a leitura, como na Europa.”[5] Quanto às mulheres negras escravas, ocupavam-se do trabalho em âmbito doméstico ou em oficinas, sem receberem qualquer instrução, numa situação que haveria de se prolongar por muito tempo. Eram artesãs: faziam flores, rendas, roupas. Ou eram aguadeiras, quitandeiras, amas-de-leite. Conforme observa Ida Pfeiffer, em 1846, “são mantidos de propósito numa espécie de infância (…) pois o despertar desse povo oprimido poderia ser terrível” e então “a população branca poderia tomar o lugar que é hoje ocupado pelos infelizes negros”.[6]

A primeira legislação referente à educação feminina apareceu apenas em 1827, assegurando os estudos elementares. E o ingresso de mulheres em escola normal de São Paulo aconteceu apenas em 1876, embora desde os anos 40 essa escola recebesse alunos de sexo masculino.[7] Mesmo em meados do século XIX, portanto, a mulher permanece isolada de ambiente cultural. E permanece isolada até do convívio de pessoas na sua própria casa. O Conde de Suzannet, em viagem ao Brasil, no ano de 1845, observa que, se no Rio “as mulheres tomam parte da vida social”, “no interior, uma pessoa pode passar semanas inteiras sob um teto sem nem ao menos entrever a mulher e as filhas do dono da casa.”[8] Outras mulheres, caso recusassem casamento de conveniência com rapaz escolhido pela família, eram depositadas no convento, como o convento da Ajuda, e lá ficavam às vezes até à morte, conforme relata o viajante Thomas Ewbank, em 1846.[9]

Em 1865, o viajante Agassiz reitera: “o nível de ensino dado nas escolas femininas é pouquíssimo elevado”, pois se desenvolve dos sete ou oito aos treze ou quatorze anos, quando, então, são retiradas dos colégios e logo se casam. Embora tenha conhecido mulheres de “alta cultura”, considera que são exceções, pois, “efetivamente, nunca conversei com as senhoras brasileiras com quem mais de perto privei no Brasil sem delas receber as mais tristes confidências acerca de sua existência estreita e confinada.”[10] E complementa:

“Não há uma só mulher brasileira que, tendo refletido um pouco sobre o assunto, não se saiba condenada a uma vida de repressões e constrangimento. Não podem transpor a porta de sua casa, senão em determinadas condições, sem provocar escândalo. A educação que lhes dão, limitada a um conhecimento sofrível de Francês e Música, deixa-as na ignorância de uma multidão de questões gerais; o mundo dos livros lhes está fechado, pois é reduzido o número de obras portuguesas que lhes permitem ler, e menor ainda o das obras a seu alcance escritas em outras línguas. Pouca coisa sabem da história do seu país, quase nada da de outras nações, e nem parecem suspeitar que possa haver outro credo religioso além daquele que domina no Brasil(…) Em suma, além do círculo estreito da existência doméstica, nada existe para elas.”[11]

Portanto, o viajante ou não vê a mulher, ou a vê, mas naquilo que, para ela, não existe. Tal olhar, do que vem de fora, estranha e critica a reclusão social e a ignorância intelectual da mulher, ressaltando nela o seu não-estar (ausência no lugar social de prestígio) e o seu não-saber (falta de instrução). Assim sendo, o que efetivamente existia para a mulher, ou seja, o universo feminino que se desenrolava nesse espaço doméstico, para além da descrição da superfície dos gestos vistos como vitimizados, permanece intocado pelo olhar estrangeiro masculino.

 A VISÃO DA ESCRITORA E CRÍTICA LÚCIA MIGUEL PEREIRA

Na tentativa de analisar o contexto cultural da mulher brasileira de modo sistemático, a escritora brasileira Lúcia Miguel Pereira, que escreveu quatro romances problematizando a questão da mulher no Brasil no século XX e que foi também uma estudiosa e crítica da literatura[12], escreveu artigo publicado em 1954, intitulado “As mulheres na literatura brasileira”, em que descreve a condição feminina no Brasil[13].

Aí percorre vários textos que se referem ao papel da mulher na sociedade brasileira, tentando fazer no Brasil o que Virginia Woolf fizera trinta anos atrás na Inglaterra, com as  conferências de 1928, depois revistas e publicadas com o título de A room of one’s own[14]. A ficcionista e crítica, que lera e cita a Virginia Woolf da conferência dirigida para moças de um colégio inglês, procura nomes de escritoras brasileiras nos volumes de histórias da nossa literatura e recorre a algumas obras de escritores renomados para examinar como a mulher aparece aí representada.

Nas histórias de literatura brasileira, encontra poucos nomes. Sílvio Romero, na sua História da Literatura Brasileira, de 1882, mencionou apenas sete. E Sacramento Blake, no seu Dicionário bibliográfico editado em 1889, menciona 56. As referências poderiam se estender a outras histórias de literatura.

Além da ausência da mulher no registro, feito por homens, de produções literárias ao longo da história de nossa literatura, a pesquisadora detém-se em alguns exemplos de ausência da mulher no campo social das atividades artísticas, detectando preconceitos que norteiam o comportamento da mulher no Brasil.

Da obra Compêndio do Peregrino da América, escrita por Nuno Marques Pereira[15], de nacionalidade provavelmente portuguesa, a crítica cita trecho em que o narrador dá conselhos aos homens: que eles não permitam que mulheres “filhas, irmãs, parentas e pessoas honradas de sua obrigação, que estiverem debaixo de sua proteção, vão ver comédias nem semelhantes farsas (…)”, pois “sairão de tais funções distraídas e com pensamentos tão estragados que não se poderá reformar (tais pensamentos) em muitos dias”.[16] Aconselha também a proibição do teatro e da ‘poesia cantada’, como as modinhas de Domingos Caldas Barbosa, “porque grande força faz no sexo feminino”, o qual consegue “perverter e abrasar em um incêndio amoroso”.[17]

Embora reconheça exceções, o quadro geral da condição da mulher no século XVIII prolonga-se até o século XIX, que a escritora bem conhecia, enquanto leitora de Eça de Queiróz e de Machado de Assis; deste último, fez, aliás, renomada biografia.[18] Um agudo ceticismo aparece no comentário que a escritora faz referente às mulheres dos oitocentos.

“Dessas doces donzelinhas, ariscas e sonsas, das ácidas donzelas que, não encontrando marido, se agregavam a parentes, em suas casas vegetando quase como aias, dessas casadas tementes aos maridos ou sorrateiramente os traindo, dessas matriarcas decididas, não raro despóticas, compunha-se a sociedade real, e a que povoava a ficção”.[19]

E depois do romantismo e do realismo, já no final do século XIX, segundo ainda a mesma escritora, tudo parece mudar. Mas não muda. As mulheres tornam-se mais ousadas na valorização do amor físico, que substitui o amor sentimental, mas não há, aí, revolução. Esses casos, de Evas arrebatadas, são considerados mórbidos e excepcionais. Não se altera a estrutura da família, baseada na continência feminina.

Nos seus próprios romances, escritos nos anos 40 e 50 do século XX, a escritora problematiza a questão dos papéis sociais da mulher, detectando preconceitos e censuras, que causam frustrações e retrocessos no percurso das opções por comportamentos e atitudes a serem assumidas pela mulher numa sociedade fechada e altamente codificada. No entanto, a visão que tem a escritora ao acompanhar a história da mulher na literatura brasileira ao longo dos séculos – do século XVIII aos inícios do século XX – parece se pautar por uma crítica severa não dos mecanismos cerceadores, mas dos procedimentos adotados pela mulher imune a ações de uma prática de mudança. O discurso crítico parece crispado por um certo rancor, na denúncia impaciente dos tipos de mulheres oitocentistas que seguem, com disciplina, os papéis institucionalmente impostos e aceitos.

Faltaria, ainda, reconhecer uma outra linhagem de mulheres militantes dentro da literatura (como personagens ou como autoras) e da sociedade (na militância política através sobretudo do veículo jornalístico) que desenvolveram trabalho emancipatório preparador das condições que propiciariam, no século XX, a implementação e solidificação de um movimento que poderíamos chamar de estética feminista.
 
AS PRIMEIRAS ESCRITORAS: DE TEREZA MARGARIDA A NÍSIA FLORESTA

São do século XIX os primeiros textos escritos por mulheres brasileiras que têm alguma divulgação entre o público letrado. Até lá, nos tempos coloniais, a mulher nada escreve, ou escreve mas os textos não aparecem, ou aparecem como exceção, entre maioria quase absoluta de textos escritos por homens. A razão é simples: apenas os homens tinham acesso à educação formal, fornecida não em universidades – cuja criação em terras brasileiras foi proibida pelo reino português – mas em seminários de várias ordens religiosas.

Assim mesmo, nem todos podiam freqüentar os seminários. Em certos casos, lá estudavam desde que não fossem “pardos”. Poderiam também, sobretudo a partir da expulsão dos jesuítas, em 1759, receber as chamadas aulas régias, educação oficial com apoio do rei português, mas em “ensino escolar eloquente, retórico e imitativo – e, de resto, elitista e ornamental”, numa educação “voltada para a perpetuação de uma ordem patriarcal, estatumental e colonial”.[20] Havia, ainda, a possibilidade do autodidatismo, forma de educação não formal, em ambiente doméstico. E ainda em território doméstico, havia distribuição da matéria de acordo com o sexo. De modo geral, ao homem era de praxe se “ensinar a ler, a escrever e contar”, e à mulher, “a coser, lavar, a fazer rendas e todos os misteres femininos”[21], que incluía a reza. Se muitas mulheres, sobretudo irmãs “fêmeas” e sem dote, eram depositadas no convento, muitas também passaram a manter escolas no próprio espaço privado, aí ensinado leitura, música, corte e costura.[22]

No mais, aparecem nomes isolados de escritoras. É o caso de Tereza Margarida da Silva e Orta, filha de um português e uma brasileira, que viveu desde os cinco anos em Portugal. Escreveu obra de cunho moralista, intitulada Aventuras de Diófanes, considerada por alguns como o primeiro romance brasileiro, já que a escritora nasceu no Brasil, e, por outros, como obra portuguesa, já que a autora foi quando menina para Portugal e nunca mais voltou ao Brasil.

O livro, publicado em Portugal em 1752 e que teve outras edições, portuguesas e brasileiras, traduz o gosto clássico, sob a inspiração das Aventuras de Telêmaco, de Fénelon. Revela erudição da mulher que teve acesso à educação, iniciada em Portugal, junto às freiras do convento das Trinas, onde aprende, por exemplo, além do desenho e bordado, idiomas antigos e modernos, letras, história, música, astronomia, filosofia, teologia. E revela também dose de experiência de vida movimentada, de mulher corajosa que enfrenta certos preconceitos. A moça, contrariando a vontade da família, que, aliás, fez fortuna no Brasil, foge de casa para se unir ao jovem e pobre professor alemão. Por isso é deserdada, cabendo a fortuna do pai ao irmão, também escritor, Matias Aires da Silva de Eça, autor de Reflexões sobre a vaidade dos homens, publicado em Lisboa também em 1752. Com 12 filhos, fica viúva, em 1753. É perseguida pelos jesuítas, rebelando-se contra eles no texto Relação abreviada. Fica, no entanto, e por causas desconhecidas, presa durante sete anos, até a queda do Marquês de Pombal, quando morre D. José e sobe ao trono D. Maria I. Já livre da prisão, vive na pobreza, em casa de um cunhado, até morrer, em 1793.[23]

Tais circunstâncias de vida comprovam o contexto europeu em que a escritora se formou e escreveu. Entre o colonizador e o colonizado não existe ainda, praticamente, nenhum embate, pois o que a escritora parece carregar da terra é apenas, além da fortuna do pai, de quem, aliás, nada recebeu porque foi deserdada, a marca de uma nacionalidade em cinco anos de vida aparentemente diluídos na marcante experiência de vida europeia.

Num contexto de cultura colonial em que a fundação de universidades era proibida e em que o analfabetismo imperava, em que as tipografias passam a funcionar livremente apenas depois de 1808, quando a Família Real chega ao Brasil, os textos feitos por mulheres, se existiram, devem ter circulado oralmente: se assim foi, encontram-se na tradição da poesia e contos e cantos populares, território de cultura que merece ainda cuidadosa investigação. Outros textos por elas escritos fariam parte de um contexto de cultura bem específico: o espaço doméstico registrado nos livros de receitas, diários, cartas, simples anotações, orações, pensamentos, lista de deveres e obrigações, que também, efêmeros, quase na sua grande maioria, desapareceram. Quanto aos textos de caráter mais artístico, constituiriam exceção. E são poucas as exceções. Uma delas refere-se aos textos escritos por Nísia Floresta Brasileira Augusta, considerada a primeira feminista brasileira.

Nascida no Rio Grande do Norte, no nordeste, em 1810, a menina Dionísia Gonçalves Pinto[24] logo passa por uma primeira e malfadada experiência de casamento, aos 13 anos de idade. Mora também em Recife, onde o pai é assassinado, e onde se casa novamente, com um acadêmico liberal. Recife era, nesta fase de Independência em relação ao trono português, grande centro de comércio açucareiro e também palco de sucessivas rebeliões que incentivavam a imprensa para a divulgação das propostas liberais. E foi lá que a então jovem escritora iniciou uma militância política e jornalística, de caráter republicano, favorável à liberação dos escravos e à luta pelos direitos da mulher.

Um dos seus mais importantes trabalhos é uma adaptação do livro da inglesa Mary Wollstonecraft (ou Mistriss Godwin), o livro Vindication of the rights of woman, que intitulou Direito das mulheres e injustiça dos homens, publicado em 1832, que assina já como Nísia Floresta Brasileira Augusta.[25] Segundo Constância Lima Duarte, a autora faz uma “tradução livre”, adaptando o texto às circunstâncias da realidade brasileira, tendo como resultado “o texto fundante do feminismo brasileiro”. Afirma a crítica:

“Nísia não realiza, propriamente, uma tradução do texto da feminista. Ela realiza, sim, um outro texto, o seu texto sobre os direitos das mulheres. Mary Wollstonecraft lhe dá a motivação ao colocar em letra impressa questões pertinentes à mulher inglesa, voltadas naturalmente para o público de seu país. Nísia como que realiza uma “antropofagia libertária”. E poderíamos ainda acrescentar: não como opção, mas até como fatalidade histórica. Na deglutição geral das ideias estrangeiras, era praxe promover-se uma acomodação de tais ideias ao cenário nacional. É o que ela faz. Assimila as concepções de Mary Wollstonecraft e devolve um outro produto, pessoal (…) extraído da própria experiência (…)”.[26]

Assim sendo, há pontos em comum: “tanto na denúncia da mulher como classe oprimida como na reivindicação de uma sociedade mais justa, em que ela seja respeitada e tenha os mesmos direitos. Também são pontos comuns as denúncias da superioridade feminina apoiada na força física, a educação como o meio eficaz de promoção feminina e o aparato filosófico de feição iluminista. No mais, os textos se distanciam tomando cada qual o seu rumo, segundo as motivações das autoras, o público a que se destinavam e as peculiaridades da condição feminina num e noutro lugar”.[27]

A escritora inglesa menciona a necessária “revolução”, incluindo a exigência de uma independência econômica, mais tarde configurada no “quarto próprio” da também inglesa Virginia Woolf. Já a brasileira reivindica direitos para mostrar que as mulheres têm também grandeza de alma e que o sexo feminino “não é tão desprezível quanto os homens querem fazer crer”.[28] Conforme explicita Constância Lima Duarte, esta separação entre educação e emancipação marca a posição ambígua da mulher brasileira, posição, aliás, que teria continuidade no final do século XIX e até nos inícios do século XX: a mulher admite e empreende o movimento de luta pela educação sem admitir mudança nos papéis sociais tradicionais da mulher enquanto “mãe” e “rainha do lar”.[29]

A “tradução livre” da obra da escritora inglesa não é atitude isolada e inconsequente. Pelo contrário, faz parte de uma longa carreira dedicada às letras e à educação da mulher. Depois de morar no sul do país, em Porto Alegre, onde fica viúva, a escritora muda-se, com suas duas filhas, para o Rio de Janeiro, onde funda uma escola que mantém durante dezessete anos e que foi severamente criticada por suas propostas educacionais avançadas. E dá continuidade à sua produção literária, reunindo objetivos pedagógicos, moralistas e ficcionais. Com tal intenção, publicou Conselhos à minha filha, em 1842, que teve muitas edições, e Fany ou O modelo das donzelas, de 1847. Escreveu também um poema indianista, A lágrima de um caeté, em 1849, baseado na luta entre brancos e índios que gerou a Revolução Praieira, em Pernambuco, em fevereiro de 1849, e em que, contrariando o estereótipo do bom selvagem, retrata o índio dividido e potencialmente rebelde.

No início de 1850, já na França, frequenta os cursos e conferências pronunciadas pelos positivistas, incluindo aí Auguste Comte. Volta ao Brasil em 1852 e, no ano seguinte, são publicados artigos sobre educação feminina, o Opúsculo Humanitário, no Rio de Janeiro.[30] Para a autora, a educação vincula-se ainda a um projeto de realização pessoal da mulher no universo familiar e doméstico. Mas anuncia também propostas avançadas para a época: a educação deveria ser dirigida a todas as mulheres, incluindo aí as pobres, como meio de livrá-las da miséria, proclamando a necessidade, por si só já revolucionária, de “que todas sejam bem educadas em suas respectivas situações”.[31]

Em 1856 viaja novamente para a Europa e aproxima-se de Auguste Comte, com quem mantém correspondência que traduz a amizade existente entre os dois. Publica ainda tanto o relato de suas viagens pela Alemanha, Itália e Grécia, quanto proclama, em visão ufanista e saudosa, as belezas da cidade do Rio de Janeiro (“Passeio ao Aqueduto da Carioca”), ou as belezas das cidades de Recife e Olinda (“O Brasil”), este último, numa primeira edição italiana, em Florença, com mais um ensaio sobre “A Mulher” e mais três textos, num volume intitulado Cintilações de uma alma brasileira, recentemente editado em português.[32] Volta ao Brasil no decorrer da década de 70. Mas permanece na Europa até morrer, com 76 anos, em 1885.[33]

A obra de Nísia Floresta, de variado assunto e gênero, mostra sensibilidade e lucidez ao abordar não só a beleza da terra brasileira e de tantos países europeus, mas a rebeldia do índio, a educação da mulher e a luta pelos seus direitos, mantendo um fio de coerência intelectual e demarcando, assim, um território preciso e seu, no espaço de construção da mulher brasileira a caminho da sua emancipação cultural.
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Notas

[1] O romance A hora da estrela, de Clarice Lispector, foi publicado em 1977, ano da morte da escritora, que ocorreu em dezembro desse ano.

Clarice Lispector nasceu em Tchechelnik (Ucrânia), em 1920, quando viajava para o Brasil, onde viveu durante dois anos na cidade de Maceió, no estado de Alagoas, e em seguida, até os seus 12 anos, na cidade de Recife, capital do estado do Pernambuco. As duas cidades estão situadas no nordeste do Brasil, região muito pobre sobretudo no interior (sertão), em que a miséria se agrava devido a longos períodos de seca. (Cf.: Nádia Battella Gotlib, Clarice, uma vida que se conta. São Paulo, Ática, 1995.)

[2] Maria Beatriz Nizza da Silva, “Características da História da Mulher no Brasil”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, 17:75-91, 1987, p. 87. Trata-se de trabalho pioneiro no sentido de se tentar um mapeamento dos estudos referentes à ‘história das mulheres’ no Brasil na área das ciências sociais.

[3] Miriam Moreira Leite (org.), A condição feminina no Rio de Janeiro. Século XIX. São Paulo, Hucitec/INL, 1984, p. 68.

[4] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.68.

[5] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.69.

[6] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.71.

[7] June E. Hahmer, A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas (1850-1937). São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 33.

[8] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob.cit., p. 43.

[9] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p. 63-65.

[10] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.74.

[11] Apud Miriam Moreira Leite (org.), ob. cit., p.74-75.

[12] Os romances publicados por Lúcia Miguel Pereira (1903-1959) são: Maria Luíza, 1933; Em surdina, 1933 (reeditado em 1949); Amanhecer, 1938; Cabra-Cega, 1954. Além desses romances, escreveu também livros de literatura infantil.

[13] Lúcia Miguel Pereira, “As mulheres na literatura brasileira”. Anhembi. Rio de Janeiro, Ano V, vol. XVII, n. 49, dez./54, p.19.

[14] O livro de Virginia Woolf foi traduzido para o português em edição brasileira com o título de Um teto todo seu (Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, ed. Nova Fronteira, 1985).

[15] Nuno Marques Pereira (1652-1731?) publica o seu Compêndio do Peregrino da América em 1728, contando as aventuras de um peregrino que parte pelo sertão brasileiro para converter ao bom caminho moral e religioso, os ambiciosos exploradores de minas, bem como outras pessoas que o peregrino ia encontrando pelo seu caminho.

[16] Domingos Caldas Barbosa (Rio de Janeiro, c.1740 - Lisboa 1800), mestiço, músico, tocador e cantador de viola, compunha e acompanhava modinhas e lunduns. Foi fundador da Nova Arcádia, academia para cultivo da poesia e da oratória. Escreveu, com pseudônimo de Lereno, uma obra intitulada Viola de Lereno, que teve um primeiro volume publicado em 1798 e um segundo, em 1826. Segundo Antonio Candido, “seus versinhos são interessantes, pela candura e amor com que falam das coisas e sentimentos da pátria, definindo de modo explícito os traços afetivos correntemente associados ao brasileiro na psicologia popular: dengue, negaceio, quebranto, derretimento”(Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 5.ed., Belo Horizonte/Itatiaia, São Paulo/Edusp, 1975, tomo I, p. 155). Introduziu a modinha brasileira nos salões de Lisboa, onde cantava seus versos acompanhando-os com viola.

[17] Lúcia Miguel Pereira, ob. cit., p. 20.

[18] Lúcia Miguel Pereira escreveu duas biografias: Machado de Assis, publicada em 1936, com várias reedições; e A Vida de Gonçalves Dias, publicada em 1943. Publicou também uma História da Literatura Brasileira:  Prosa de ficção, de 1870 a 1920, em 1950.

[19] Lúcia Miguel Pereira, ob. cit., p. 22.

[20] Cf. Luiz Carlos Villalta, “O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura”. História da vida privada no Brasil, v. 1: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p.331-385.

[21] Cf. Luiz Carlos Villalta, ob.cit., p.351.

[22] Mary Del Priore, “Ritos da vida privada”. História da vida privada no Brasil, v. 1: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 275-330.

[23] Para bibliografia referente à atividade literária de Teresa Margarida da Silva e Orta, ver: Nelly Novaes Coelho, “A imagem da mulher no século XVIII: Aventuras de Diófanes, de Teresa Margarida”. Revista da Biblioteca Mário de Andrade, n. 35 (“Imagens da mulher”), jan.-dez. 1995, p. 25-36.

[24] Nasceu a 12 de outubro de 1910, no sítio Floresta, perto de Papari (estado de Alagoas). Cf. Constância Lima Duarte, Nísia Floresta. Vida e obra. Natal, UFRN Editora Universitária, 1995, p.16.

[25]Nísia Floresta Brasileira Augusta, Direitos das mulheres e injustiça dos homens. (Tradução livre do original Vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft). Introdução, notas e posfácio: Constância Lima Duarte. São Paulo, Cortez, 1989.

[26] Constância Lima Duarte, “Nos primórdios do feminismo brasileiro”. Em: Nísia Floresta Brasileira Augusta, Direitos das mulheres e injustiça dos homens. (Tradução livre do original Vindication of the rights of woman, de Mary Wollstonecraft).Introdução, notas e posfácio: Constância Lima Duarte. São Paulo, Cortez, 1989, p.107-108.

[27] Constância Lima Duarte, ob. cit., p.108.

[28] Constância Lima Duarte, ob. cit., p.121.

[29] Cf. Maria Thereza Caiuby Crescenti Bernardes, Mulheres de ontem? Rio de Janeiro, Século XIX. São Paulo, T. A. Queiroz editor, 1989.

[30] Nísia Floresta Brasileira Augusta, Opúsculo Humanitário. Introdução e notas: Peggy Sharpe-Valadares. São Paulo/Cortez, Brasília/INEP, 1989.

[31] Nísia Floresta Brasileira Augusta, ob. cit., p. 65.

[32] O ensaio “A Mulher” foi traduzido para o inglês pela filha de Nísia Floresta e publicado com o título “Woman”, em Londres, em 1865, por G. Parker, Little St. Andrew Street, Upper, St. Martin Lane. (Cf. Constância Lima Duarte, “Introdução”, em: Nísia Floresta Brasileira Augusta, Cintilações de uma alma brasileira, Trad. de Michele A Vartulli, Florianópolis, Editora Mulheres-Editora da Unisc, 1997, p. XIX.).

A Editora Mulheres, responsável por esta publicação, tem reeditado outros textos escritos por mulheres, privilegiando as escritoras brasileiras do século XIX (é o caso do romance Lésbia, por  Maria Benedita Borman ou Délia, de 1890; e do volumeMulheres Illustres do Brazil, de D. Ignez Sabino, de 1899) e início do século XX (é o caso de A Silveirinha, romance de Júlia Lopes de Almeida, de 1914, por exemplo). A editora tem no prelo uma Antologia de escritoras brasileiras do século XIX, organizada por Zahidé L. Muzart. Também com esta finalidade, o Instituto Nacional do Livro iniciou em 1987 uma coleção intitulada “Resgate”, que publicou, por exemplo, em co-edição com a Presença edições, Correio da roça, de Júlia Lopes de Almeida, romance epistolar de 1913, e Voleta, romance de Albertina Berta, de 1926.

[33] Ver: Constância Lima Duarte, Nísia Floresta. Vida e Obra. Natal, UFRN Editora Universitária, 1995.


Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012

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