domingo, 18 de maio de 2014

Nádia Battella Gotlib (A Literatura Feita por Mulheres no Brasil) Parte 4, final


OS ESTUDOS FEMINISTAS

Pode-se afirmar que os estudos da mulher na literatura brasileira surgem, no Brasil, como consequência das questões até aqui anunciadas. Se há textos esquecidos, há necessidade de recuperá-los, ressuscitando-os das páginas manuscritas, ou de primeiras edições escondidas nas estantes, ou de reedições esgotadas. Trata-se, neste primeiro caso, de trabalho de resgate.

Com tal intenção, foram fundadas editoras especializadas em textos escritos por mulheres, na maioria com propósitos de divulgação de trabalhos em várias áreas de conhecimento afins[84], ligadas ou não diretamente a agências de fomento e a grupos de pesquisa específicos sobre mulheres.[85]

Pesquisas de âmbito regional são incentivadas, visando o levantamento de dados referentes a escritoras de várias cidades ou Estados do Brasil, em estudos que se fazem necessários, tendo em vista a enorme extensão territorial do país e a diversidade de culturas aí existentes. Pressupõem a pesquisa a periódicos de época, a livros, a catálogos e a demais fontes que possam permitir um mapeamento da produção literária e jornalística de cada região, bem como das trocas culturais, mediante estudos de recepção. O levantamento, relativamente recente, tem contribuído para que se determine um corpus básico, para que, então, se possa proceder às etapas subsequentes de análise crítica e interpretativa das obras, acompanhadas de um sistemático balanço das premissas metodológicas mais adequadas ao objeto em questão.

Como produto desse trabalho, têm surgido reedições importantes, como as de escritoras do século XIX, tanto as que se dedicaram ao romance[86], como à poesia[87], à crônica, ao teatro, ao jornalismo. Acrescente-se ainda a reedição de revistas do século XIX e do século XX, algumas, em edição fac-similar[88], bem como o estudo específico de algumas dessas revistas[89]. E o levantamento, por vezes acompanhado de análise, de textos de gêneros discursivos específicos, até então considerados ‘menores’, como os livros de memórias de mulheres.[90] Também informações úteis aparecem sob a forma de verbetes referentes a, por exemplo, mulheres ensaístas.[91]

Num segundo bloco, situam-se os estudos que tentam reler os textos escritos por mulheres – e por homens, com o objetivo de praticar um novo modo de ler, de cunho na maioria das vezes feminista. Ainda que, dentro dessa linha, possam ser assumidas diferentes posturas teóricas, metodológicas e críticas, tais estudos têm mostrado, de modo geral, uma dupla perspectiva: ora a adoção de uma linhagem anglo-saxônica, com as ramificações norte-americanas, na leitura de tradição marxista, de caráter mais social e político do gender, nas suas relações com a antropologia cultural; ora a adoção de uma perspectiva francesa, mais alerta a questões de ordem psicanalítica, privilegiando a questão da diferença, valendo-se, em algumas vertentes, das relações com a linguística e a semiótica.[92]

Num terceiro bloco, e já como consequência dos dois anteriores, há um linha de conhecimento referente ainda aos estudos literários da mulher na literatura que se move com base no produto concreto dos resultados de leituras específicas desenvolvidas em torno de obras de escritoras brasileiras. E que procura, a partir de tais resultados, com base nas constantes e variantes de construção de tais obras literárias e recusando sistemas fechados, tecer considerações a respeito das respectivas condições contextuais de produção cultural.

O conjunto de tal produção científica evidencia que uma metodologia de história, teoria e crítica de nossa literatura feminina brasileira vem, paulatinamente, sendo montada por nossos estudiosos e estudiosas de literatura, ou de modo individual, ou, mais frequentemente, de modo coletivo, sob a forma de grupos de pesquisa.

Têm exercido papel importante no sentido de desenvolver tais estudos, os vários cursos de Pós-Graduação sobre o assunto e Núcleos de Estudos da Mulher implementados em várias Universidades brasileiras, a partir sobretudo dos anos 80, que geraram uma produção científica de qualidade, divulgada ora em volumes de autoria individual, ora de autoria coletiva.

É o caso do Grupo de Trabalho A mulher na literatura, filiado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (ANPOLL), que, desde sua fundação, em 1987, conta com a adesão de quase duzentas pesquisadoras, e que vem publicando sistematicamente os resultados dos trabalhos, sob a forma de boletins periódicos e coletâneas de artigos e ensaios.[93] O mesmo grupo vem promovendo também, desde 1988, Seminários Nacionais, bienais, realizados em anos alternados aos do GT A mulher na literatura.

Num balanço crítico datado de início dos anos 90, Heloisa Buarque de Hollanda reconhecia três linhas mestras de estudos no grupo de trabalho A mulher na literatura, que denominou de: literatura e feminismo, literatura e feminino, literatura e mulher.[94] A primeira vertente, reconhece como sendo a de caráter participante, “absorvendo desde a pesquisa no sentido da recuperação da história silenciada da produção feminina até a análise dos paradigmas patriarcais e logocêntricos da literatura canônica”. A segunda, literatura e feminino, mais preocupada com a “identificação de uma escritura feminina”, de modelo francês, com uma inflexão marcadamente semiológica e/ou psicanalítica”. E a terceira, literatura e mulher, mais diretamente ligada ao trabalho de análise do papel da mulher na literatura (como autora, narradora, personagem), sem problematizar a questão das relações de gênero.

Tal produção científica tem sido publicada regularmente pelas equipes responsáveis por cada um desses eventos, em estudos que, apesar de estarem implicados entre si, distribuem-se, fundamentalmente, neste final dos anos 90, em três grandes blocos de reflexão, com alterações sutis, mas significativas, em relação aos grupos anteriores: a teoria e crítica feminista; a questão mais específica do cânone; as múltiplas implicações da categoria do gender.[95]

Nota-se, pois, nos estudos mais recentes, pela simples nomeação de cada linha de reflexão, uma preocupação mais acentuada em construir repertórios teóricos que possam examinar a prática da leitura mediante opções por um feminismo que continua sendo, por princípio, não canônico, e que se abre às múltiplas sugestões suscitadas pela categoria do gênero. Mais uma vez, a necessária desconstrução do nome…também de tais estudos: evitando a tradição da generalização de, simplesmente, estudos literários, o enfoque torna-se mais dirigido quando se detém na questão específica da literatura ligada aos estudos da mulher, e, posteriormente, transforma-se em estudos de gênero ao reforçar a interferência cultural na construção dos papéis sociais que se desenvolvem no âmbito das relações humanas entre homens e mulheres. Sob tal enfoque, o trabalho científico tem mostrado resultados substanciais, conforme comprovam os textos publicados na revista especializada na questão do gênero, intitulada Estudos Feministas[96], bem como a publicação de bibliografias mais gerais sobre o assunto.[97]

Também com objetivo de pesquisa, e, algumas vezes, com finalidades práticas de atendimento a um público amplo e diversificado, foram fundados vários núcleos de estudos da mulher ligados a várias instituições universitárias, com publicações próprias. E há também organizações independentes que promovem debates e encontros específicos sobre a questão da mulher na realidade brasileira, com enfoques e metodologias de várias áreas de conhecimento e, quase sempre, de caráter interdisciplinar.

O estágio atual dos estudos até o momento desenvolvidos, sobretudo no que se refere ao questionamento de fundamentos básicos de metodologia de trabalho e à divulgação de textos literários esquecidos e de fontes primárias de pesquisa, mostra que a literatura feminina no Brasil se viabiliza como um campo fértil de investigação, que vem contribuindo para, mediante o diálogo interdisciplinar, estender os resultados de tal investigação ao âmbito mais geral das ciências humanas, aperfeiçoando a discussão de questões que envolvem o ser no campo mais geral da cultura brasileira. O ser e os nomes do ser.

* Esta exposição destinou-se a um público estrangeiro, o que motivou o seu caráter fundamentalmente informativo, patente na seleção de itens e de questões críticas aqui propostas.

NOTAS

[84] É o caso da editora Mulheres, dirigida por professoras de literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. Algumas dessas editoras mantêm vínculo institucional e são ligadas a Universidades de âmbito federal ou estadual; outras, são empresas particulares.

[85] Também com o objetivo de incentivar e divulgar pesquisas em torno da ‘mulher’, tem fundamental importância o trabalho desenvolvido pela Fundação Carlos Chagas, com projetos implementados desde o final da década de 70: o primeiro “Projeto Mulher” da Fundação Carlos Chagas, subvencionado pela Fundação Ford, é de 1976; desde 1978 a Fundação vem mantendo concursos para dotação de pesquisa sobre a mulher brasileira e publicando os resultados. Neste sentido, é pioneira a publicação de Mulher Brasileira: Bibliografia Anotada, em dois volumes, em São Paulo, pela Fundação Carlos Chagas e editora Brasiliense: o primeiro volume, com dados bibliográficos referentes à produção da mulher nas áreas de História, Família, grupos Étnicos e Feminismo, em 1989; o segundo, com dados referentes às de Trabalho, Direito, Educação, Artes e Meios de Comunicação, em 1981. Os demais resultados de pesquisas dos concursos vêm sendo sistematicamente publicados pela Fundação.

[86] É o caso, por exemplo, da reedição do romance D. Narcisa de Villar: Legenda do tempo colonial, de 1859, escrito por Ana Luísa de Azevedo Castro, organizado por Zahidé L. Muzart (Florianópolis, Editora Mulheres, 1990).

[87] É o caso, por exemplo, do volume organizado por Luzilá Gonçalves Ferreira, Em busca de Thargélia: Poesias escritas por mulheres em Pernambuco no segundo oitocentismo (1870-1920), tomo I (Recife, FUNDARPE, 1991). Algumas dessas pesquisas têm site na internet, como a que enfoca as “escritoras cariocas”: nielm@openlink.com.br

[88] É o caso de, por exemplo, A Mensageira: Revista literária dedicada à mulher brasileira, publicada em São Paulo de 1897 a 1900 (ob. cit.).

[89] Eis alguns exemplos de revistas que vêm sendo examinadas: A Violeta (Yasmin Jamil Nadaf, Sob o signo de uma flor: Estudo da revista A Violeta, publicação do Grêmio Literário Júlia Lopes, 1916-1950. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1993); Única (por Sylvia Perlingeiro Paixão, “Mulheres em revista: a participação feminina no projeto modernista do Rio de Janeiro nos anos 20”, em: Susana Bornéo Funck (Org.), Trocando idéias sobre a mulher e a literatura. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)-Pós-Graduação em Inglês, 1994, p. 421-440); Walkyrias (Ana Arruda Callado, “Uma Walkyria entra em cena em 1934”. Estudos Feministas: CIEC-ECO-UFRJ, v. 2,  n. 2, 1994, p. 345-355).

[90] É o caso, por exemplo, de: Maria José Motta Viana, Do sótão à vitrine: Memórias de mulheres. Belo Horizonte, editora UFMG, 1995.

[91] Heloísa Buarque de Hollanda e Lúcia N. Araújo, Ensaístas Brasileiras. Rio de Janeiro, Rocco, 1993.

[92] Entre publicações de caráter acadêmico sobre o assunto, discutindo as diferentes vertentes teóricas e com análise de textos de diferentes escritoras, cito, dentre várias, como exemplo, a revista Gragoatá: Revista do Instituto de Letras, em número especial sobre “Figurações do gênero e da identidade”: UFF, Niterói (RJ), n. 3, 2. semestre de 1997.

[93] Desde 1987, ano em que foi fundado o GT A mulher na literatura, filiado a ANPOLL, já foram publicados sete Boletins que trazem informações a respeito de tais pesquisas, com resumos de textos e textos na íntegra apresentados nos Encontros do GT. Também os grupos responsáveis pelos Seminários têm publicado os trabalhos apresentados nos vários eventos. A título de exemplo, cito uma das primeiras publicações: o volume organizado, entre outras, por Rita Terezinha Schmidt: Organon, n. 16, UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)-Instituto de Letras, 1989.

[94] Heloisa Buarque de Hollanda, “A historiografia feminista: algumas questões de fundo”. Em: Susana Bornéo Funck (Org.), Trocando idéias sobre a mulher e a literatura. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)-Pós-Graduação em Inglês, 1994, p. 453-463. (Republicado, com algumas modificações, com o título “Mulher e literatura no Brasil: uma primeira abordagem”, em: Uma questão de gênero. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos, 1991, p. 54-92.) Problematizando a questão mais geral da crítica feminista, da mesma autora é o texto “Introdução: Feminismo em tempos modernos”, em: Heloisa Buarque de Hollanda (Org.), Tendências e Impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 7-19. E também: Maria Odila Leite da Silva Dias, “Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica das diferenças”. Estudos Feministas, CIEC-ECO-UFRJ, v. 2., n. 2, 1994, p. 373-382.

[95] Tais temas figuram no programa para o VIII Seminário Nacional Mulher e Literatura, a ser realizado em Salvador, na Universidade Federal da Bahia, em setembro de 1999.

[96] A implementação e a consolidação de tais estudos no Brasil, em âmbito interdisciplinar, incluindo não só as várias sub-áreas dos estudos literários, mas as das ciências humanas em geral, ligadas a estudos de gênero, podem ser examinadas a partir dos 13 volumes já publicados da revista Estudos Feministas  (Rio de Janeiro, CIEC-ECO-UFRJ, no momento: Rio de Janeiro, IFCS-UFRJ). A revista traz, desde 1992, artigos e ensaios, encartes em inglês, resenhas de livros nacionais e estrangeiros e informações sobre cursos, núcleos de estudos, eventos e publicações, no Brasil e no exterior.

[97] Ver: Yasmin Jamil Nadaf (org.), Catálogo de títulos sobre a mulher. Cuiabá (MT), UFMT, 1997, 2 v.; Cristina Bruschini, Danielle Ardaillon e Sandra G. Unbehaum, Tesauro para estudos de gênero e sobre mulheres. São Paulo, Fundação Carlos Chagas e Editora 34, 1998.

Fonte:
http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_Nadia_Gotlib.htm  em 19/02/2012

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