Numa tarde, a brincar na calçada da prefeitura, o aroma de sapoti maduro atiçou-me os sentidos. Certamente preparavam a merenda do prefeito. Ou de mais alguém? Ah, vontade de saborear um suco gelado! Aquele odor antigo vez em quando me entra pelos sentidos. E com ele vêm carrinhos de madeira, bolas de pano, bonés de papel, barquinhos de jornal.
Brincar com castanhas de caju exigia força nos dedos e pontaria. Cada jogador utilizava uma tampa circular de lata. Tamanho médio de um pires. Recheávamos a tampa com cera de abelha ou vela derretida. Colocávamos algumas castanhas nas extremidades de um triângulo desenhado no chão. O primeiro jogador, postado a cinco ou mais metros de distância do triângulo, lançava a latinha na direção das castanhas. Esse mecanismo se dava assim: um dedo fura-bolos, acionado pelo indicador da outra mão, atingia a lata, fazendo com que ela se locomovesse pelo chão e alcançasse as castanhas. O jogador que atingisse uma das castanhas, lançando-a fora do triângulo, teria direito a nova jogada. Venceria o jogo se deslocasse todas as castanhas. Se errasse o alvo, o outro jogador se agacharia para desferir o golpe na sua latinha. Ganhava quem conseguisse atingir maior número de castanhas. O vencedor se apossava das peças em jogo.
Havia também as brincadeiras perigosas, proibidas pelas mães. Jogos, na verdade. Um deles acontecia em chão de barro e não em calçada. Primeiramente desenhava-se um triângulo, com a ponta de um arame em forma de punhal. Jogavam dois ou mais meninos. O primeiro deveria lançar a arma ao chão, fincando-a, ao lado do triângulo, e traçar uma reta de ligação de uma das pontas do desenho ao furo provocado pela arma. E assim se ia formando ao redor da figura geométrica um traçado de linhas interligadas, espécie de teia. Cada jogador deveria se preocupar em impedir a formação da teia adversária. Quanto mais próximo de uma das linhas, melhor. Se atingisse o interior do desenho estaria fora do jogo. O segundo jogador repetia o gesto do primeiro, desenhando-se, assim, linhas quase paralelas, que se emaranhavam ao redor do triângulo. Aquele que atingisse as linhas do outro seria eliminado. Venceria aquele que conseguisse “fechar” o concorrente, isto é, bloquear as linhas do parceiro e alcançar novamente o triângulo, sempre no sentido horário. O perigo de tal brincadeira ou jogo era iminente: a arma, pontuda, poderia espetar um pé.
Menos perigosos eram os carrinhos de madeira. Os choferes quase sempre necessitavam de ajudantes. Em troca das ajudas, viravam ajudantes. Sem isso, os carrinhos só rodavam nas descidas. E, para rodarem novamente na mesma calçada, deveriam subir as calçadas inclinadas. Nos declives, atingiam velocidades espantosas. Só os bons choferes conseguiam escapar aos acidentes. Esse brinquedo seria a versão pobre ou rudimentar do velocípede.
Restava saber com que se fazia um carrinho: madeiras, pregos, parafusos, borracha, sebo ou graxa para azeitar as rodas. Mamãe se opôs ao projeto. Brinquedo de vadio. Fosse estudar, decorar os verbos e a tabuada. Estudei, decorei o verbo ter, a multiplicação do sete, e voltei ao pedido. Onde arranjar tanta madeira, tanto prego?
Dias e dias depois, meu carrinho descia a calçada da prefeitura, sem ajuda de ninguém. De tão frágil, porém, não durou muito. Ao bater num tronco de árvore, espatifou-se.
Restava, pois, voltar a correr feito doido pela rua, sujeito a tropeços e quedas. O nome da brincadeira talvez fosse manja ou uma variação dela. Possivelmente o pique, o pega-pega. A brincadeira perdia a graça se na calçada ou às janelas não estivesse a plateia. Geralmente senhoras e senhoritas, que arrastavam cadeiras de balanço até à calçada e aí permaneciam horas e horas da noite, a parolar e ver os meninos em algazarra. Quando as primeiras cadeiras voltavam às casas, só nos restava parar, enxugar o suor e dormir.
Sento-me diante da televisão. Vão e vêm bandidos, presidentes, modelos, jogadores, soldados, mendigos. Além, muito além da parede, vejo barquinhos de papel, carrinhos de madeira, bolas de pano. Vamos comer sapoti?
Brincar com castanhas de caju exigia força nos dedos e pontaria. Cada jogador utilizava uma tampa circular de lata. Tamanho médio de um pires. Recheávamos a tampa com cera de abelha ou vela derretida. Colocávamos algumas castanhas nas extremidades de um triângulo desenhado no chão. O primeiro jogador, postado a cinco ou mais metros de distância do triângulo, lançava a latinha na direção das castanhas. Esse mecanismo se dava assim: um dedo fura-bolos, acionado pelo indicador da outra mão, atingia a lata, fazendo com que ela se locomovesse pelo chão e alcançasse as castanhas. O jogador que atingisse uma das castanhas, lançando-a fora do triângulo, teria direito a nova jogada. Venceria o jogo se deslocasse todas as castanhas. Se errasse o alvo, o outro jogador se agacharia para desferir o golpe na sua latinha. Ganhava quem conseguisse atingir maior número de castanhas. O vencedor se apossava das peças em jogo.
Havia também as brincadeiras perigosas, proibidas pelas mães. Jogos, na verdade. Um deles acontecia em chão de barro e não em calçada. Primeiramente desenhava-se um triângulo, com a ponta de um arame em forma de punhal. Jogavam dois ou mais meninos. O primeiro deveria lançar a arma ao chão, fincando-a, ao lado do triângulo, e traçar uma reta de ligação de uma das pontas do desenho ao furo provocado pela arma. E assim se ia formando ao redor da figura geométrica um traçado de linhas interligadas, espécie de teia. Cada jogador deveria se preocupar em impedir a formação da teia adversária. Quanto mais próximo de uma das linhas, melhor. Se atingisse o interior do desenho estaria fora do jogo. O segundo jogador repetia o gesto do primeiro, desenhando-se, assim, linhas quase paralelas, que se emaranhavam ao redor do triângulo. Aquele que atingisse as linhas do outro seria eliminado. Venceria aquele que conseguisse “fechar” o concorrente, isto é, bloquear as linhas do parceiro e alcançar novamente o triângulo, sempre no sentido horário. O perigo de tal brincadeira ou jogo era iminente: a arma, pontuda, poderia espetar um pé.
Menos perigosos eram os carrinhos de madeira. Os choferes quase sempre necessitavam de ajudantes. Em troca das ajudas, viravam ajudantes. Sem isso, os carrinhos só rodavam nas descidas. E, para rodarem novamente na mesma calçada, deveriam subir as calçadas inclinadas. Nos declives, atingiam velocidades espantosas. Só os bons choferes conseguiam escapar aos acidentes. Esse brinquedo seria a versão pobre ou rudimentar do velocípede.
Restava saber com que se fazia um carrinho: madeiras, pregos, parafusos, borracha, sebo ou graxa para azeitar as rodas. Mamãe se opôs ao projeto. Brinquedo de vadio. Fosse estudar, decorar os verbos e a tabuada. Estudei, decorei o verbo ter, a multiplicação do sete, e voltei ao pedido. Onde arranjar tanta madeira, tanto prego?
Dias e dias depois, meu carrinho descia a calçada da prefeitura, sem ajuda de ninguém. De tão frágil, porém, não durou muito. Ao bater num tronco de árvore, espatifou-se.
Restava, pois, voltar a correr feito doido pela rua, sujeito a tropeços e quedas. O nome da brincadeira talvez fosse manja ou uma variação dela. Possivelmente o pique, o pega-pega. A brincadeira perdia a graça se na calçada ou às janelas não estivesse a plateia. Geralmente senhoras e senhoritas, que arrastavam cadeiras de balanço até à calçada e aí permaneciam horas e horas da noite, a parolar e ver os meninos em algazarra. Quando as primeiras cadeiras voltavam às casas, só nos restava parar, enxugar o suor e dormir.
Sento-me diante da televisão. Vão e vêm bandidos, presidentes, modelos, jogadores, soldados, mendigos. Além, muito além da parede, vejo barquinhos de papel, carrinhos de madeira, bolas de pano. Vamos comer sapoti?
Fonte:
Nilto Maciel. Quintal dos dias. Porto Alegre/RS: Bestiário,2013. p.43-47.
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