domingo, 18 de maio de 2014

Gonçalves Dias (Primeiros Cantos) 3

Inocência

Ó meu anjo, vem correndo,
Vem tremendo
Lançar-te nos braços meus;
Vem depressa, que a lembrança
Da tardança
Me aviva os rigores teus.
Do teu rosto, qual marfim,
De carmim
Tinge um nada a cor mimosa;
É belo o pudor, mas choro,
E deploro
Que assim sejas medrosa.
Por inocente tens medo
De tão cedo,
De tão cedo ter amor;
Mas sabe que a formosura
Pouco dura,
Pouco dura, como a flor.
Corre a vida pressurosa,
como a rosa,
Como a rosa na corrente.
Amanhã terás amor?
Como a flor,
Como a flor fenece a gente.
Hoje ainda és tu donzela
Pura e bela,
Cheia de meigo pudor;
Amanhã menos ardente
De repente
Talvez sintas meu amor.

Pedido

Ontem no baile
Não me atendias!
Não me atendias,
Quando eu falava.
De mim bem longe
Teu pensamento!!
Teu pensamento,
Bem longe errava.
Eu vi teus olhos
Sobre outros olhos!
Sobre outros olhos,
Que eu odiava.
Tu lhe sorriste
Com tal sorriso!
Com tal sorriso,
Que apunhalava.
Tu lhe falaste
Com voz tão doce!
Com voz tão doce,
Que me matava.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Se então só qu’rias
Exp’rimentar-me.
Oh! não lhe fales,
Não lhe sorrias,
Não lhe sorrias,
Que era matar-me.

O Desengano

JÁ VIGÍLIAS passei namorado,
Doces horas d’insônia passei,
Já meus olhos, d’amor fascinado,
Em ver só meu amor empreguei.
Meu amor era puro, extremoso,
Era amor que meu peito sentia,
Eram lavas de um fogo teimoso,
Eram notas de meiga harmonia.
Harmonia era ouvir sua voz,
Era ver seu sorriso harmonia;
E os seus modos e gestos e ditos
Eram graças, perfume e magia.
E o que era o teu amor, que me embalava
Mais do que meigos sons de meiga lira?
Um dia o decifrou - não mais que um dia
Fingimento e mentira!
Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia,
Como uma flor!.
Por que tão cedo o talismã quebraste
Do nosso amor?
Por que num só instante assim partiste
Essa anosa cadeia?
De bom grado a sofreste! essa lembrança
Inda hoje me recreia.
Quão insensato fui! - busquei firmeza.
Qual em ondas de areia movediça,
Na mulher, - não achei!
E da esp’rança, que eu via tão donosa
Sorrir dentro em minha alma, as longas asas
Doido e néscio cortei!
E tu vás caprichosa prosseguindo
Essa esteira de amor, que julgas cheia
De flores bem gentis;
Podes ir, que os meus olhos te não vejam;
Longe, longe de mim, mas que em minha alma
Eu sinta qu’és feliz.
Podes ir, que é desfeito o nosso laço,
Podes ir, que o teu nome nos meus lábios
Nunca mais soará!
Sim, vai; - mas este amor que me atormenta,
Que tão grato me foi, que me é tão duro,
Comigo morrerá!
Tão belo o nosso amor! - foi só de um dia
Como uma flor!
Oh! que bem cedo o talismã quebraste
Do nosso amor!

Minha Vida e meus Amores

QUANDO, no albor da vida, fascinado
Com tanta luz e brilho e pompa e galas,
Vi o mundo sorrir-me esperançoso:
- Meu Deus, disse entre mim, oh! quanto é doce.
Quanto é bela esta vida assim vivida! -
Agora, logo, aqui, além, notando
Uma pedra, uma flor, uma lindeza,
Um seixo da corrente, uma conchinha
A beira-mar colhida!
Foi esta a infância minha; a juventude
Falou-me ao coração: - amemos, disse,
Porque amar é viver.
E esta era linda, como é linda a aurora
No fresco da manhã tingindo as nuvens
De rósea cor fagueira;
Aquela tinha um quê de anelos meigos
Artífice sublime;
Feiticeiro sorrir dos lábios dela
Prendeu-me o coração; - julguei-o ao menos.
Aquela outra sorria tristemente,
Como um anjo no exílio, ou como o cálix
De flor pendida e murcha e já sem brilho.
Humilde flor tão bela e tão cheirosa,
No seu deserto perfumando os ventos.
- Eu morrera feliz, dizia eu d’alma,
Se pudesse enxertar uma esperança
Naquela alma tão pura e tão formosa,
E um alegre sorrir nos lábios dela.
A fugaz borboleta as flores todas
Elege, e liba e uma e outra, e foge
Sempre em novos amores enlevada:
Neste meu paraíso fui como ela,
Inconstante vagando em mar de amores.
O amor sincero e fundo e firme e eterno,
Como o mar em bonança meigo e doce,
Do templo como a luz perene e santo,
Não, nunca o senti; - somente o viço
Tão forte dos meus anos, por amores
Tão fáceis quanto indi’nos fui trocando.
Quanto fui louco, ó Deus! - Em vez do fruto
Sazonado e maduro, que eu podia
Como em jardim colher, mordi no fruto
Pútrido e amargo e rebuçado em cinzas,
Como infante glutão, que se não senta
À mesa de seus pais.
Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão,
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.
Um dia, em qu’eu sentei-me junto dela,
Sua voz murmurou nos meus ouvidos,
- Eu te amo? - Ó anjo, que não possa eu crer-te!
Ela, certo, não é mulher que vive
Nas fezes da desonra, em cujos lábios
Só mentira e traição eterno habitam.
Tem uma alma inocente, um rosto belo,
E amor nos olhos. . . - mas não posso crê-la.
Dá, meu Deus, que eu possa amar,
Dá que eu sinta uma paixão;
Torna-me virgem minha alma,
E virgem meu coração.
Outra vez que lá fui, que a vi, que a medo
Terna voz lhe escutei: - Sonhei contigo! -
Inefável prazer banhou meu peito,
Senti delícias; mas a sós comigo
Pensei - talvez! - e já não pude crê-la.
Ela tão meiga e tão cheia de encantos,
Ela tão nova, tão pura e tão bela. ..
Amar-me! - Eu que sou?
Meus olhos enxergam, em quanto duvida
Minha alma sem crença, de força exaurida,
Já farta da vida,
Que amor não doirou.
Mau grado meu, crer não posso, .
Mau grado meu que assim é;
Queres ligar-te comigo
Sem no amor ter crença e fé?
Antes vai colar teu rosto,
Colar teu seio nevado
Contra o rosto mudo e frio,
Contra o seio dum finado.
Ou suplica a Deus comigo
Que me dê uma paixão;
Que me dê crença à minha alma,
E vida ao meu coração.

Recordação

Nessun maggior dolore...
- Dante

 
Quando em meu peito as aflições rebentam
Eivadas de sofrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em círculos de ferro, com tal força,
Que dele o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de sofrer cansada, .
Bem que afeita a sofrer, sequer não pode
Clamar: Senhor piedade; - e que os meus olhos
Rebeldes, uma lágrima não vertem
Do mar d’angústias que meu peito oprime:
Volvo aos instantes de ventura, e penso
Que a sós contigo, em prática serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sôfregos, atentos
Sorvendo meus ouvidos, - nos teus olhos
Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastara ainda
Porque de os ver me saciasse!... O pranto
Então dos olhos meus corre espontâneo,
Que não mais te verei. - Em tal pensando
De martírios calar sinto em meu peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto sofre.

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