sábado, 20 de março de 2021

Adega de Versos 5: Ademar Macedo

 


Milton S. Souza (Vermelho na cabeça)


Apesar das constantes broncas da esposa, aquele aposentado está sempre “inventando coisas”. E foi exatamente uma invenção que provocou aquela confusão toda. A tarde estava calma e bonita, quando ele resolveu pintar a parte de fora do apartamento, no primeiro andar. A parede vermelha estava com a pintura descascada e precisava de uma melhorada. Preparou tudo, tinta, rolo e outros apetrechos necessários. O primeiro problema surgiu quando encostou a escada na parede. Ela era muito curta e seus braços não conseguiam alcançar o ponto que precisava ser pintado. Isso, porém, não era problema para um “grande inventor”...

Alguns tijolos velhos que estavam há muito tempo encostados num canto foram empilhados cuidadosamente nas proximidades da parede. Logo depois, com o mesmo cuidado, colocou a escada sobre o monte de tijolos. Precisou carregar mais alguns para construir degraus para poder subir até a escada. Com dificuldade, levou a tinta, o rolo e os outros apetrechos até o topo da escada. Finalmente estava pronto para começar a pintar.

Pela janela do apartamento ainda viu a silhueta da esposa, passando para lá e para cá, como se estivesse tirando o pó dos móveis. Era melhor que ela nem notasse que ele estava pintando a parede, pois já começaria com os seus sermões: “Cuidado, vais cair, isso é perigoso”. A mulher achava que ele, por estar aposentado, deveria ficar o dia inteiro sentando no sofá vendo TV. Que besteira. Estava aposentado, mas não estava morto. Não iria gastar o seu dinheiro pagando alguém cada vez que tivesse que pregar um prego. Sabia fazer de tudo um pouco. E pintar uma parede, por exemplo, era uma das coisas mais fáceis do mundo... Pensava tudo isso enquanto molhava o rolo na tinta e se preparava para tingir de vermelho a velha parede.

Foi exatamente neste momento que a pilha de tijolos utilizada como base para a escada começou a ceder. A escada balançou. Ele tentou se agarrar na janela, mas não conseguiu. O rolo foi o primeiro a cair. Quando a escada desabou, ele se segurou na única coisa sólida que suas mãos alcançaram: a lata de tinta vermelha. A queda foi amenizada por algumas plantas que se engancharam na escada perto da parede. Mas ele terminou se esborrachando sobre o gramado. A lata de tinta veio logo depois, derramando seu líquido vermelho e pegajoso sobre a sua cabeça e parte do corpo. Ficou estatelado no meio de uma poça vermelha.

O barulho alertou a vizinhança. Muitas janelas se abriram e muitos gritos foram dados ao mesmo tempo. Um deles, o mais forte de todos, foi o da sua mulher, que desmaiou ao ver o marido caído e totalmente manchado de vermelho. Lá de cima, do primeiro andar, a tinta parecia ser sangue, muito sangue. Aquela visão foi aterradora demais para a pobre esposa do “inventor”...

Enquanto alguns vizinhos socorriam o desastrado e avermelhado pintor, outros entraram no seu apartamento e reanimaram e desmaiada esposa. A confusão durou mais de uma hora, mas teve um final feliz: a esposa só necessitou de uns dois copos de água com açúcar para entender que não havia virado viúva e voltar ao normal. E o aposentado sofreu apenas alguns pequenos arranhões. Mas precisou suportar alguns olhares e risinhos debochados dos vizinhos, que quase não conseguiram conter as gargalhadas enquanto deixavam o apartamento.

O pior veio depois que a porta da rua foi fechada: as broncas da esposa por mais esta sua “perigosa invenção” e pela enorme mancha vermelha que ficou no sofá novinho, onde os vizinhos fizeram ele deitar depois de ter sido socorrido. Isso sem contar as quase três horas de banho, com o uso de querosene, esfregões e outros produtos, para tentar tirar aquela maldita tinta vermelha dos cabelos brancos, do rosto e do resto do corpo.

Ele, um torcedor do Grêmio, pintado de vermelho*…
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* Obs: vermelho é a cor do Internacional, adversário do Grêmio.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XVI


A flor que tanto cuidamos
pode até não ser aquela
que no jardim a almejamos
sempre colorida e bela.
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Ao prosseguires na vida
no rumo determinado,
siga na luz escolhida
que obterás o resultado.
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As palavras benfazejas
gostamos de sempre ouvir,
como frutas em bandejas
devemos também servir.
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A verdade, no plural,
não consigo imaginar.
Ávida, pra ser normal,
só a vejo no singular.
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Beija-flores tão charmosos
com seus bicos alongados,
são pequenos, mas vaidosos
nas flores sempre plugados.
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Caneta e papel na mão,
não deixe de registrar,
o fruto da inspiração
e a todos poder mostrar.
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Carência de paradigmas,
e excesso de rebeldia,
agigantam os enigmas,
pondo sombra à luz do dia.
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Demora tanto passar
os minutos numa espera,
dá vontade de apressar
quando a dor nos vocifera.
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Dumont, com fulgor e glória,
pôde enfim, sobrevoar
e uma cadeira na história
pôde assim assegurar.
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Foi na distante Paris,
que Dumont se consagrou,
com o seu 'Quatorze Bis'
a torre sobrevoou.
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Meramente momentânea
pode ser nossa postura,
talvez seja simultânea,
outra forma de procura.
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Milhares de bons momentos
guardamos sem esquecer.
Às vezes, os sofrimentos,
nos fazem fortalecer.
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Muitas vezes os ponteiros
poderão parar, talvez,
mas os da vida, certeiros,
param somente uma vez.
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Muitos dos que gritam, querem
ser apenas observados,
outros, no entanto preferem,
observar tudo calados.
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Ninguém saia a procurar
algo numa noite escura,
para não se transformar
numa frustrada aventura.
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Nobres flores perfumadas
no jardim da nossa vida,
apenas são transformadas
depois da missão cumprida.
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Nunca deves macular
o vistoso entardecer,
nenhum dos sonhos calar
nem teu grito emudecer.
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O crime nos amedronta,
faz a vida estremecer,
se o medo for uma afronta
a coragem faz vencer.
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O mundo parece obter
grande luz, perfume e cor,
quando soubermos viver
com justiça, paz e amor.
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Ontem, para a caridade,
a porta sempre se abria,
hoje, sequer na amizade,
alguém na janela espia.
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Para que surja a mudança
deves quebrar a rotina,
sem luta e perseverança
a mudança não culmina.
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Quem for plantar na lavoura
do saber, sempre terá,
a semente imorredoura
que novos frutos dará.
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Quero-quero, beija-flor,
pintassilgo, tico-tico,
canarinho encantador
toca e canta com o bico.
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Repensar o pensamento
dentro da modernidade,
é dar vigor ao talento
e asas para a humanidade.
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Toda planta que dá frutos
será sempre depredada,
por causa dos atributos
que ela esconde na ramada.
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Um mar de luz parecia
deslizar nos verdes montes,
eram ondas de harmonia
desvelando os horizontes.
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Vaquejadas das saudades
nas estâncias do querer,
soltas, correm as vontades,
pelos campos do viver.
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Vida nova, novo ser,
se repete todo o dia
e o sol pra favorecer
forte luz nos irradia.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Paulo R. O. Caruso (Cronista crônico)


Pensei em escrever um poema. Mas de que tipo? Um poema livre ou algum que seguisse uma fórmula? Liguei o microcomputador e, a seguir, diante do buraco negro da tela em branco, pensei num cordel. Entretanto, o que me deixou claudicante é que eram já onze e meia da noite, sendo que eu iria para a cama dentro de meia-hora, para depois acordar às cinco da matina rumo ao labor de cada dia. Logo, abandonei a proposta de escrever um cordel, que jamais é um poemeto, mas sim reúne muitas estrofes e, devido à exiguidade do tempo, comecei a cogitar me dedicar a um soneto...

Ora, um soneto tem quatorze versos e poderia ser deca, dodeca, setissilábico ou até mesmo bárbaro, além de poder ser ao estilo italiano ou inglês e... Faltavam já vinte minutos, o que me fez abortar a segunda cogitação.

Tendo desistido da segunda possível empreitada, cogitei uma trova, que é composta por quatro versos setissilábicos e tem rima ABAB. Contudo, às quinze para a meia noite eu ainda não sabia que tema utilizar entre os de concursos de trovas com prazo ainda aberto para inscrições! Fora que eu nem mais me lembrava de quais temas exigiam abordagem lírico-filosófica ou humorística! Bem, agora já eram dez para meia-noite...

Pensei depois em escrever um haicai... Só três versinhos! Cinco sílabas poéticas no primeiro e no terceiro versos, além de sete no segundo! Ocorre que eu sou dos poucos que prefere escrevê-los com as rimas que a tendência oriental apregoa, mas, depois de anos, nos derradeiros três meses comecei enfim a adotar o modelo ocidental, isto é, não rimado. A dúvida sobre tema e estilo durou mais alguns minutos, o que me fez cogitar a adoção de uma aldravia... Você conhece aldravia?

Pois bem, aldravia é um poemeto sintético derivado do verbete “aldrava” (batedor de porta de madeira maciça, a grosso modo). Porém, como este que lhe escreve é um sujeito chato e indeciso, o que, diante do relógio indicando dois minutos para a meia-noite, me fez largar até mesmo a ideia de um simples poemeto composto verticalmente por seis palavras, cada qual ocupando uma linha! Logo, o que foi que me sobrou? Esta crônica!
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4. Lugar no 1º Concurso de Crônicas da Academia Internacional da União Cultural na categoria "Acadêmicos Efetivos".

Fonte:

1º Concurso de Sonetos Clássicos da Academia Internacional da União Cultural (Prazo: 10 de Abril)


– REGULAMENTO –  

1º - DEFINIÇÃO E OBJETIVOS
O Concurso consiste na valorização da arte literária poética, especificamente do soneto clássico decassílabo.

2º - NATUREZA DOS TRABALHOS
Pode-se participar com apenas UM soneto clássico, decassílabo:

I - Com as rimas, para fins deste concurso, nos quartetos no formato ABAB ABAB ou ABBA ABBA e nos tercetos nos formatos CCD EED ou CDD CEE ou CDC EDE ou CDE CDE.

II – Os sonetos devem ser decassílabos, escritos em versos heróicos (ritmo nas sextas sílabas) ou sáficos (ritmo nas quartas e oitavas sílabas);

III - Todos os trabalhos devem ser de autoria própria, escritos em língua portuguesa, inéditos (sem publicações seja por meio escrito, via internet ou outros).

3º - TEMA –
O tema será LIVRE, sendo que os critérios analisados serão: adequação às regras estipuladas no artigo 2º deste regulamento, normas da língua portuguesa, criatividade, originalidade, estética e exploração de recursos linguísticos;

4º - FORMA DE ENVIO e PRAZO –  
Os textos deverão ser enviados para o e-mail:

auniaocultural@gmail.com ,

no corpo do e-mail, sem arquivos anexos (devendo constar, abaixo do poema: nome, endereço completo, whatsApp, e-mail, autorização para divulgação em quaisquer meios) e minibiografia de aproximadamente 5 linhas;

– Obs.: Os trabalhos serão recebidos até o dia 10 de abril de 2021, às 23h59 (horário de Brasília-Brasil);

5º - PÚBLICO-ALVO –  
Podem participar do concurso todos os poetas, maiores de idade, pertencentes ou NÃO a Academia Internacional da União Cultural

6º - PREMIAÇÃO –  
A premiação constará de certificados, enviados de forma virtual (e-mail), outorgados a critério da Comissão Julgadora

7º - DISPOSIÇÕES FINAIS –
Casos omissos serão resolvidos pela Comissão Organizadora, sendo que, de antemão, fica resolvido que:

I - as decisões das Comissões Organizadora e Julgadora terão caráter permanente, sendo soberanas e incorrigíveis;

II - a partir do momento da inscrição, o autor autoriza a publicação (sem que perca os direitos de seu soneto) de seus textos em eventuais livretos ou blogs, ou sites, ou facebook, ou outros redes sociais e meios de divulgação, ou por meio impresso, bem como a veiculação em vídeos e áudios;

III - a divulgação dos resultados será feita aos e-mails dos participantes, bem como nos meios de divulgação da Academia até 25 de maio de 2021;

- para informações adicionais ou para dirimir eventuais dúvidas, envie e-mail para: auniaocultural@gmail.com ou
whatsApp (12) 97412-5806.

Taubaté-SP / Brasil, 10/março/2021
Academia Internacional da União Cultural
Luiz Antonio Cardoso
Presidente

sexta-feira, 19 de março de 2021

Varal de Trovas 487

 


A. A. De Assis (Maringá Gota a Gota) Ó tempos, ó costumes!


No museu da UniCesumar* há um documento deveras curioso: a carta de autorização dada por um delegado de polícia a uma senhora para que ela pudesse usar calças compridas em suas atividades cotidianas. Isso em janeiro de 1952, aqui pertinho – em Londrina. A portadora, posteriormente, veio residir em Maringá.

Parece incrível, mas a coisa era assim mesmo. Mulher de calças compridas era atentado ao pudor. Só no final da década de 1950 as moças e senhoras começaram a ganhar maior liberdade para sair às ruas em “traje masculino”... e sem necessidade de licença do delegado.

“O tempore, o mores” (ó tempos, ó costumes), bradava o velho Cícero no senado romano. Vale lembrar que de “mores” (“modas”, “costumes” em latim) é que veio a palavra “moral”. Moral então é aquilo que faz parte dos “bons costumes” de um povo numa determinada época.

Tudo o que seja consensualmente aceito como habitual por uma sociedade é “moral”. Se o costume é andar nu, isso significa que a nudez é “moral”. Se o costume é andar com o corpo coberto, a nudez passa a ser “imoral”. Se tanto faz como tanto fez, é “amoral”.

Tá na moda? Tá se usando?... Manda ver. A grande virada dos usos e costumes teve como ponto-marco o ano de 1960. Mas um pouco antes já se notavam sintomas de abertura, com a explosão do rock and roll do Elvis Presley e companhia. Depois veio o biquíni, em seguida entrou na onda a minissaia da Mary Quant. E daí por diante nem mesmo o bom latim do nobre tribuno Marco Túlio Cícero botou mais freio nos “tempores” nem nas “mores”.

O rock, aliás, foi fortemente simbólico no processo de emancipação da mulher. Até então, os casais dançavam abraçados, sempre o homem “guiando” a companheira. A partir do rock ele e ela passaram a dançar separados, cada um guiando a si mesmo.

Em 1952, quando aquela corajosa senhora ousou desfilar em Londrina vestindo calças compridas, muita coisa que hoje causaria espanto era ainda normal, costumeira, habitual, usual, consensual, moral. Por exemplo: namorada só podia ir ao baile ou ao cinema com o namorado se levasse junto um “onze” – um irmãozinho ou irmãzinha para “tomar conta” da moça e evitar eventuais avanços do moço... Nos bailes havia um personagem temível: o “fiscal de salão”. Se um par estivesse dançando muito agarradinho, ele vinha e separava. E se o rapaz resmungasse era posto pra fora.

Velhos “tempores”, velhas “mores”. Mas nos velhos “tempores” era mais fácil acompanhar a evolução dos usos e costumes, porque as “mores” eram duradouras. Foi ao longo da segunda metade do século 20 que as modas destramelaram de vez, passando a mudar muito rapidamente, de modo que as pessoas passaram a ter também que mudar bem rápido o modo de ver e de entender as coisas.

O que aconteceu quando a gente era criança já virou pré-história...
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* Unicesumar - Centro Universitário de Maringá
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 4-3-2021)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Vivaldo Terres (Poemas Escolhidos) XVII


A TIMIDEZ

Que paz e tranquilidade!
Que ela me concedeu,
Ao revelar que me ama...
Foi um presente de Deus.

Pois eu andava triste...
E até desanimado,
Queria revelar-me, somente não o fazia...
Por medo de ser rejeitado.

A timidez é terrível.
E nos deixa diminuídos,
Às vezes temos tudo para
Resolvermos questões,
Mas nos vem a maldita timidez
E nos deixa sem ação.

Agora tudo está bem...
Sinto-me realizado,
Eu amo a mulher que sonhei
E por ela sou amado.

Para mim não existe coisa mais bela!
Do que amar e ser amado,
Neste mundo complicado.
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LONGOS BEIJOS

Como podes ser tão deslumbrante e bela.
Com tanto fascínio que a todos encanta.
Queria eu ter o privilégio
De te beijar a boca.

Se assim fosse...
Um dos meus sonhos seria realizado!
Pois um beijo como o teu...
Jamais foi me dado.

Quem sabe um dia possa acontecer,
De algo maravilhoso a nos envolver.
Então terei a certeza
Que esse dia chegara,
E longos beijos iremos trocar.
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MULHER
Homenagem à mulher pelo seu dia

Mulher tu és divina, ó ser maravilhoso,
Entre a criação tu és a preferida!
Tens o dom de ser mãe e de ser amada pelo homem,
E por Deus de ser reconhecida.

Tens no coração a ternura dos santos,
E na alma o amor, nasceste para amar...
Mesmo quando não amada.
Ainda que dos teus olhos escorra uma lágrima,
Mesmo assim estás pronta para socorrer e acalmar a dor.

És tu que no ventre traz o herói ou a santa!
És tu que no simples olhar nos dá a esperança,
Querendo com isso nos dizer,
Que somos fortes, pois és valente!
Já não temes a morte.
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NOSSA VIDA É COMPLICADA

Quantas vezes me pedistes
Para eu não te deixar,
Quantas vezes prometestes...
Não mais me fazer sofrer.
Hoje vejo ser impossível
Viver contigo sem que queiras
Me compreender.

Até porque não entendes
O meu modo de pensar,
Tu queres viver o presente
E o futuro nem pensar.

Mas vejo diferente, pois a vida
É complicada se hoje temos dinheiro
Amanhã poderemos estar sem nada.

Temos que viver o presente
E o futuro não esquecer,
Nossa vida é complicada
Temos que analisar tudo,
Para no futuro não sofrer.
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NOSSO AMOR NÃO ACABOU

Se eu pudesse voltaria
Àqueles tempos tão lindos,
Depois de uma noite de amor
Tu acordavas sorrindo.

E eu também satisfeito;
Lembrava do que passou,
Dessa noite tão divina...
Que selou o nosso amor.

Ah! Como a vida me sorria
Naqueles tempos floridos,
Eu te amava, tu me amavas...
Nosso lar era um verdadeiro paraíso.

Apesar de estarmos distantes
E vivermos de lembranças
Nosso amor não acabou,
Pois existe a esperança
De ainda estarmos juntos,
Para não viver só de lembranças.
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SE FAZ DURA A CAMINHADA

Como sinto tua ausência...
Sem saber onde estás
A tristeza e a angústia...
Castigam-me por isto não tenho paz.
 
Como dói no coração;
E na alma amargurada...
Quando se procura alguém.
Faz-se dura a caminhada!
 
E esta dura caminhada!
Pra procurar quem se ama...
Às vezes duram meses e anos.
E enquanto não a encontrarmos...
Não se chega ao fim da jornada.

Fonte:
Poemas enviados pelo poeta.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 19


Crônicas delícias - as cronilícias - estariam sempre habitadas por manhãs de sol, pela cantoria dos pássaros, pela música do vento. Colheríamos frutos perenes de bem-estar. E o que vemos ?

Vemos constantemente águas escuras correndo no leito das desejadas felícias duradouras. Em meio às venturas deste mundo-paraíso, flagelos de toda espécie têm rondado e agitado a vida do ser humano.

E o pensador aparece envolvido no protagonismo de tantos males com um soneto nascido há uma década.

Pelos caminhos do bom pensar
tenho estado andando,
e rimando, e escrevinhando,
filosofando a filosofar.

Ofuscam-se-me os olhos
os grandes males do mundo,
pobre mundo, moribundo,
a macular o mar de Abrolhos.

O tosco, o rude, as estultícias,  
do bicho-homem as sevícias
eis-me então a lamentar.

Protagonista de tanta maldade,  
canto as dores da humanidade,
no meu mais puro versejar.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Melo Morais Filho (Casamento na Roça) - 2, final


Imagine-se a fervura da casa, a recepção estrondosa do venturoso par na sala rescendente de flores do campo, de adornos silvestres.


A rabeca e a flauta tocavam, o reboliço era geral, notando-se instantes mais tarde a ausência da mãe da noiva, que desaparecera no tumulto.

E o quadrista inspirado não perdia o momento; e alteando a prima, tocando nos bordões, aproveitando o intervalo da música, lá ia:

Ó senhora mãe da noiva,
Saia fora da cozinha,
Venha ver a sua filha
Como está tão bonitinha.

E os “bravos” e as palmas coroavam o cantor, o violeiro do mato, nos seus repentes oportunos. Nisso as mucamas acendiam os candelabros, as velas nas mangas de vidro, ouvindo-se de dentro o barulho dos pratos e as vozes dirigentes de pôr a mesa.

O pai da noiva, previdente em tudo, mandara cuidar da cavalhada, dos bois do carro, do pessoal escravo da comitiva, que mais livremente se entregaria à noite às comezainas e ao fado. E no salão a flauta e a rabeca tocavam, dando sinal para a primeira quadrilha.

Nisso a dona da casa chegava radiante, cumprimentando novamente os seus convidados, imprimindo um beijo na fronte pura de sua filha, e pedindo a todos a fineza de a acompanharem para o jantar.

E entravam...

A lauta e extensa mesa apinhava-se de súbito, de senhoras e de homens, ficando a maior parte, entretanto, para as subsequentes, tão numerosos eram os convivas.

Os principais da festa, ocupando as cabeceiras, em seus lugares especiais, as pessoas mais gradas e de distinção da localidade, o banquete iniciava-se, e depois de servida a sopa, um trinchador poeta, tomando de um trinchante, cantava:

Estes franguinhos assados
Foram bem recheadinhos,
São presentes para os noivos
Que fizeram os padrinhos.

E um conviva, erguendo um copo de vinho acima da cabeça:

Taplã... taplã... zabumba,
Bravo a vida militar;
Defender as moças belas
E depois rir e folgar.

O soldado, que é valente,
Passa a vida a batalhar;
O soldado, que é mofino,
Passa a vida a namorar.

Hip!... hip!... urrah!...

E as saúdes aos noivos, aos pais do ditoso par, a todos e a cada um de per si estrondavam à porfia; e um outro convidado, puxando para perto um peru assado, desarticulava-o, entoando:

Este peru que aqui está,
Ontem morreu empapado;
Eu aviso ao senhor noivo
Que o coma com cuidado...

Um segundo repentista:

Da leitoa que aqui está,
Desconfiem, tenham medo,
O trinchador que a trinchar
Olhe que lhe morde o dedo.

E todos, erguendo-se e empunhando copos:

Azeitonas bem curtidas
Têm um singular sabor,
Só me lembro dos amigos
Quando bebo este licor.

Hip!... hip!... urrah!...

Caloroso e animadíssimo corria o festim; o entusiasmo transbordava das expansões dos convivas como o vinho das taças cheias; a alegria e a felicidade transpareciam do sorriso dos noivos e das meiguices da família.

Mas o complicado jantar demorava o baile roceiro e as danças tradicionais.

Então o violeiro obscuro, transpondo a sala do banquete, pedia a palavra, empunhava a viola e improvisava gaiato:

Sinhá noiva e sinhô noivo,
Deus lhes dê um bom estado:
Que daqui a nove meses
Haja um rico batizado.

E dos circunstantes, que se levantavam em massa, bradava um:

É a última saúde! A saúde de honra! É de virar! Vivam os noivos!...

Gato amarrado
Dá para miar,
A boa champanha
Dá para dançar!

Este é o gato,
Que matou o rato
Que roeu a corda
Que amarrava a bota...

Bota vinho! Bota!
Vira, vira, vira!...
Hip!... hip!... urrah!...

E aos sons da música, que preludiava a quadrilha, contratavam-se os pares, o noivo e a noiva figuravam, as primas e os primos tomavam parte, cada qual com seu botão de flor de laranjeira como distintivo na abotoadura do paletó e no corpinho.

Findas as primeiras quadrilhas, as primeiras valsas, o elemento nacional e dominante – o chiba – campeava absoluto, lânguido, peneirado, buliçoso, como a volúpia das nossas noites mornas e estreladas.

E aos tinidos das violas, aos arpejos quentes dos menestréis pátrios, a trova deslizava sonora, a cantiga brotava plangente, encantando a noite do noivado e a sorte futura do nascente lar.

Então a noiva e o noivo, os padrinhos e madrinhas, os convidados em chusma, às toadas das violas, ao canto sonoro dos violeiros, caíam na chula, requebravam na fieira, aos epitalâmios dos trovadores em suas cantigas a esmo:

Sinhô noivo, dê-me um doce,
Sinhá noiva manda dá;
Pois pela noite adiante
Sinhá noiva pagará.

Dança o fado, minha gente,
Que uma noite não é nada;
Se eu não for dormir agora,
Dormirei de madrugada.

Ao passo que o chiba recrudescia bamboleado, macio, palmejado, sapateado, os que não dançavam conservavam-se de costas para as janelas, sentados nas cadeiras enfileiradas; e do belo sexo duas ou três representantes, levantando-se sorrateiras, entravam no quarto dos noivos, admirando o bom gosto, pegando nos cortinados, lavando as mãos no jarro, bisbilhotando adiantadas.

Antigamente era de costume botar-se espinhos de roseira debaixo dos lençóis, atar-se guizos e campainhas nas extremidades das colchas, esconder-se mesmo um indivíduo debaixo da cama, para latir, miar, cantar como galo, fazendo desapontar os noivos, que disparavam do quarto entre gargalhadas e alegre alarido dos que lhes armavam a peça.

E cansados os dançadores, ofegantes as bailarinas, descansavam um pouco, iam tomar café e refrescos, ficando a mesa posta e constantemente renovada para os que quisessem servir-se.

De repente a desafinada rabeca anunciava fanhosa outra valsa e o bródio prosseguia ainda.

No terreiro, os escravos batucavam, quebravam na chula e cantavam suas trovas.

E quando as danças estrangeiras paravam, o fado rompia nas violas, ponteadas pelos tocadores da roça, no salão que começava a aclarar-se das barras longínquas do amanhecer.

E os convidados, na maior parte, não resistindo à tentação que lhes bulia na alma, pulavam no meio, o noivo e a noiva despencavam-se no rodopio, e o cantador trigueiro lavava o peito dos circunstantes com suas cantigas variadas:

O fado veio no mundo
Para amparo da pobreza,
Quando me vejo num fado
Não me importo com a riqueza.

A viola pela prima,
A prima pelo bordão,
O homem pela palavra
Leva a mulher pela mão.

Um casamento na roça era, com poucas variantes, o que aí fica descrito; e essas festas, que entravam sempre pela noite adiante, duravam por dias, na plenitude da abastança e da felicidade.

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Júlia Lopes de Almeida (A alma das flores)


A Lúcio de Mendonça


– Em ótima ocasião vieste, Adolfo, exclamou o Sales, vendo-me ao portão do seu jardim; tenho agora uma esplêndida coleção de rosas. Entra.

De fato, as roseiras estavam com uma deliciosa carga de flores: umas brancas como a neve, outras amarelas, outras rosadas, outras cor de sangue, rajadas, lisas, crespas, folhudas, simples; de todos os tamanhos, de todas as cores e de todos os feitios, elas bailavam à doce viração da manhã, sacudindo entre a folhagem escura as cristalinas gotinhas d’água, com que ou o regador do jardineiro ou o orvalho da noite as tinha pulverizado.

– Encantador! realmente! disse eu sentando-me num banco, enquanto o Sales ia e vinha, explicando a origem desta rosa, a história complicada daquela outra, o romance de amor ligado a uma assim e assim, o trabalho que tal floricultor tivera para conseguir uma rosa tão perfeita como era a que eu via junto a mim, na haste curva de uma roseira sem espinhos.

O Sales dizia de cor tudo aquilo, mais de quatrocentos nomes, um catálogo vivo, que ele desfiava muito ufano.

– No Rio já há gosto! – repetia ele de vez em quando, impando de orgulho em frente às suas formosíssimas flores.

Eu ouvia-o, sentindo-me bem ali, embebido naquele doce aroma e com tal espetáculo diante dos olhos.

De repente, enquanto o Sales externava os seus conhecimentos de jardineiro apaixonado, eu vi, em um extenso gramado verde, aveludado, que havia junto ao lago, aparecerem, como por encanto, umas vinte raparigas formosíssimas, pés descalços, túnicas rosadas mal seguras nos ombros, erguidas de um lado, deixando ver a perna torneada e roliça, cabelos negros suspensos na nuca por travessas de ouro, olhos negros também, cheios de alegria e de malícia, dentes brancos resplandecentes, sorriso aberto, faces frescas como a aurora!

Elas dançavam em rondas, mãos dadas, beijando-se, aparecendo ora aqui ora ali, sempre alegres e saltitantes.

O Sales continuava a descrever a astúcia de um tal floricultor inglês, que roubara a um belga um importante segredo da esquisita formação de uma nova rosa:

– Biltre! clamava ele, vermelho de cólera.

Nesse momento, uma das raparigas, destacando-se do grupo, correu para mim e deu-me ingenuamente um beijo no pescoço; voltei-me rápido e vi que me roçava no ombro a tal rosa muito perfeita, inclinada da haste de uma roseira sem espinhos.

O Sales convidou-me para o almoço e eu segui-o, julgando que aquela esplêndida visão me havia de acompanhar; mas na sala, em frente às costeletas de carneiro e dos bifes, nada mais vi.

Passou-se algum tempo. Um dia o Sales, entrando-me pelo escritório, exclamou:

– Homem! consegui ter aqui, no Rio, cravos tão belos como os de S. Paulo; se quiseres vê-los vai amanhã cedo ao meu jardim.

Fui. Sentei-me no mesmo banco; o Sales começou a fazer a história dos cravos; falou-me de um amigo seu da província, que chegara a obter cento e tantas qualidades deles! narrou a propósito uma viagem e meia dúzia de anedotas; eu escutava-o, procurando no extenso gramado as vinte raparigas da manhã das rosas; mas não as encontrava!

Olhando sempre, principiei a divisar, ao longe, umas pontas de lanças douradas, uns capacetes de cintilações metálicas e uns penachos flutuantes, de cores vistosas.

Era um exército de cavalaria que subia uma encosta?...

Eram uns comparsas de teatro, ensaiando-se para o espetáculo.

Eu ia definir a coisa, quando o Sales disse:

– Vem cá! Vou mostrar-te uma parede da minha horta, que está literalmente coberta de madressilva; aquilo é uma flor vulgar, mas é bonita... anda daí.

Entramos na horta.

Borboletinhas cor de palha voavam por sobre as couves; havia um ar ingênuo em tudo aquilo. Chegando em frente ao tal muro fiquei atônito! Como uma cascata de flores, amarelas, rosadas e brancas, os cachos da madressilva pendiam de entre a folhagem; zumbiam-lhe as vespas em torno; e o Sales explicou:

– Esta trepadeira fornece muito mel às abelhas. Que cheiro agradável... hein?

Já então umas mãozinhas curtas e gordas afastavam a folhagem, e eu vi a cara redonda e graciosa de uma moça surgir detrás da verdura, olhar para a direita e para a esquerda, estender o pescoço roliço, mostrar o busto coberto por uma camisa de linho e um colete de veludo negro, de aldeã.

Logo depois veio de fora um camponês, vestuário galante, rapaz altivo e alegre; e ela, debruçando-se na folhagem, como quem se debruça à janela, sorriu, mostrando as covinhas das faces, e os seus lábios encontraram-se com os do campônio, num longo beijo de amor.

As abelhas zumbiam, e a camponesa enfeitava de flores o chapéu de feltro cinzento do namorado. E agora já não eram só eles! Em vários pontos do muro, camponeses e camponesas segredavam, abraçando-se; uma delas chegou a ter a ousadia de saltar para fora, e mostrou assim as suas meias em riscas e a saia vermelha barrada de preto; o noivo aparou-a nos braços, e lá se foram os dois saltando por sobre as ervas, e rindo às gargalhadas!

O Sales convidou-me a ir ao pomar.

– Tenho lá uma magnólia esplêndida. Eu sou tão doido por flores, que as planto em toda a parte! – dizia-me ele, dando-me o braço.

O pomar era pequeno, mas tratado com muito capricho; tinha de notável uma mangueira de enormes dimensões, e já não me lembra que variedades de frutas. A magnólia lá estava, com as suas grandes flores pálidas emergindo da rama escura da árvore.

Rodeando uma jaqueira vizinha, havia um banco de pau. Sentamo-nos um pouco. O Sales começou a ferir-lhe o tronco com o canivete. Estávamos silenciosos, e eu meditava na estranheza das minhas visões em casa do meu amigo, quando vi, positivamente vi, uma encantadora mulher, já na segunda mocidade, mas, apesar disso, linda, arrastando-se de joelhos, com os cabelos em desalinho, os olhos castanhos cheios de paixão, os lábios trêmulos, o vestido a envolvê-la numas rendas sombrias, pospontadas por uns pequenos raios de ouro, as mãos erguidas suplicemente. Transbordava de tal maneira a paixão do seu olhar, havia tal contenção de amor no seu peito, que me chegou a ser doloroso vê-la assim! Com quem falava? a quem dizia com tanta veemência o amo-te sagrado? Não sei: o peito arquejava-lhe, saltavam lágrimas grossas dos seus olhos, e espalhava-se-lhe pela fisionomia uma palidez de luar... Fiquei muito nervoso e despedi-me do Sales.

Meses depois tive de lá voltar a instâncias dele, para ver uma pequena coleção de lírios. Estivemos perto do lago, vendo os lírios d’água, cor de marfim e aromáticos; a nosso lado havia dos outros, cor de violeta e dos brancos, muito poéticos.

O Sales nunca oferecia as flores do seu jardim; era zeloso em excesso, e pôs-se a contar-me a razão disso. Entretanto, eu via através de umas névoas uns vultos indistintos, tocando em liras e em harpas de prata. Era um quadro vago, branco, nublado, aéreo.

Saí e jurei nunca mais voltar à casa do meu amigo, para não correr o risco de ficar doido!

Tive por esse tempo de mudar-me. Fui habitar o primeiro andar de uma casa de pensão. Pela janela de sacada do meu quarto eu via o quintal da minha senhoria, uma boa burguesa econômica, que em vez de jardim tinha um coradouro para a roupa lavada, e, a um canto, um único canteiro para tomates e salsa. Havia, porém, na vizinhança, um quintalito de iguais dimensões, mas onde a dona, igualmente prática, mas de sentimentos mais tocados por uns laivos de poesia, plantara, além da grama para o coradouro, e da salsa para a panela, um canteirinho de angélicas, que estavam então em flor.

No verão tive sempre por hábito ir fumar um cigarro à janela, antes de me deitar. Puxei a minha poltrona para a sacada, na primeira noite da estada na minha nova habitação, e pus-me a cogitar em um negócio sério, quando de súbito vi uma coluna singular, movediça, que se alava para o firmamento infinitamente azul e infinitamente calmo!

A pouco e pouco fui distinguindo formas humanas, figuras quase apagadas de mulheres, como se aquela coluna fosse a bíblica escada de Jacó, por onde as recatadas virgens iam subindo ao céu! À proporção que eu as fixava ia-as divisando melhor, até que as vi distintamente!

Eram todas alvas, eram todas loiras; os cabelos flutuavam-lhes em grandes ondas flexíveis, levavam os braços erguidos e nas pontas dos dedos das mãos, juntas acima da cabeça, uma pequena açucena, onde iria talvez a essência divina da maior dor da terra!

Dos seus olhos azuis, úmidos de pranto, caía o orvalho para as ervas, e elas subiam, sucediam-se, sempre formosas, sempre loiras, sempre a erguerem acima da cabeça a pequena açucena cor de leite!

Aquele quadro tinha uma magia estranha, de que eu não me podia desprender! ficava horas inteiras a contemplá-lo, até que, cansado, adormecia. O criado fechava com estrondo a janela e eu ia tonto para a cama.

Esta cena repetiu-se por umas cinco ou seis noites. Apesar do meu protesto, apresentei-me no fim de alguns dias em casa do Sales. Levando-me através do jardim, ele mostrou-me de passagem umas camélias brancas. Eu olhei detidamente para essas bonitas flores, que me pareciam, na sua mudez, pequenas virgens mortas: nada me feriu nem abalou a imaginação. Bem! calculei eu, agora as minhas visões só vêm à noite!

Mas exatamente nessa noite, debalde esperei a coluna humana, que subia da terra a perder-se nas constelações da Via Láctea! Em vão olhei para o espaço vazio, azul, iluminado pela luz da lua; no céu acinzentado luziam as estrelas como pequeninos pontos de ouro; mais nada!

Por que não viriam? onde estariam elas, as encantadoras filhas da noite? Cansado de procurá-las no espaço, debrucei-me da janela para procurá-las na terra. Tudo silencioso! tudo como na véspera... unicamente, do canteiro do quintal vizinho tinham desaparecido as angélicas brancas...

Só então percebi que via o que os outros sentem – o aroma!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. 
Brasília : Senado Federal, 2020. 
Publicada originalmente em 1903.

Alvitres do Professor Renato Alves - 1 -

1.
Já reparou que as pessoas dinâmicas, que estão sempre em atividade, são as que mais recebem críticas? Sempre há os "engenheiros de obras feitas" a condenar os erros do irmão que produz. Pois bem! Veja como este aspecto da conduta humana foi bem captado na trova abaixo!
    
Quem não faz, risco não corre.
Erro...engano...quem não falha?
Só pode errar quem socorre,
age, executa, trabalha!
(Maria Thereza Cavalheiro+)


 2.
"Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe!" – Esta sucessão de momentos bons e momentos maus, quase sempre efêmeros, que ocorrem durante toda a vida, foi flagrada de forma magistral nessa metáfora trovada de Waldir Neves, nosso saudoso irmão.
    
Ao longo da caminhada
em que a vida nos conduz,
vão-se alternando, na estrada,
luz e treva... treva e luz...
 (Waldir Neves+)
 
3.

A trova, ordinariamente leve e sutil, às vezes envereda pelo terreno das trágicas paixões que assolam a alma humana. Veja como, em quatro versos apenas, é possível criar-se um clima de tragédia que mexe com a nossa sensibilidade.
    
Achado morto em seu leito,
o anão do circo da esquina
apertava contra o peito
a foto da bailarina...
(Waldir Neves+)
 
4.

Observe o clima de  intimidade  e aconchego que esta trova  cria!
    
Eu me rendo, abaixo o tom,
te abraço e logo me apego...
Tranco a porta, ligo o som,
fecho a cortina e me entrego!
 (Ailto Rodrigues)
 
5.
Será que todo mundo é mesmo tão rigoroso em sua auto-avaliação? Eu acho que não!... Os homens, em geral, são até generosos demais no julgamento de seus atos. Como disse Fernando Pessoa:

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo...
São todos uns príncipes... "

 
Caso, um dia, o homem consiga
a si mesmo conhecer,
eu duvido que ele diga
que teve "muito prazer".
(Miguel Russowsky+)

 
6.

Sendo a língua o meio de expressão da arte literária e, por consequência, da trova, um de seus gêneros, a correção gramatical é uma preocupação constante de alguns trovadores, servindo-lhes, às vezes, até  de  tema:

Ao ler, na fábrica, o aviso
dizendo:  "VAGAS NÃO Á",
comenta alguém, num  sorriso:
– Nem para o emprego do "H"?
(Waldir  Neves+)
 
Dois ladrões, num intervalo,
foram juntos almoçar.
Um deles pediu... "roubalo"!
e o outro... "furtos do mar"!
(Edmar Japiassú Maia/RJ)
    
Sempre contando lorota,
diz que fala até chinês,
e, ao dizer-se poligrota,
assassina o português.
(Maria Nascimento/RJ)
 
"Cuidado com os degrais!"
– dizia o aviso ao freguês.
E ninguém tropeçou mais...
(A não ser no português!)
(Renato Alves/RJ)

7.
Trova é cultura:

Por mais simples que seja, a trova, às vezes, contém imagens que exigem um conhecimento específico para serem apreciadas plenamente. Por ex: O diamante é o estágio mineral mais puro do carbono, um elemento químico que forma milhares de compostos. É muito  brilhante, mas, um dia,  já  foi um negro carvão...
 
Se o erro ficou distante
seja pleno o teu perdão
Não se cobra ao diamante
seu passado de carvão!
(Pedro Ornellas/SP)


8.

Na poesia simbolista (escola literária do final do séc.XIX, tendo, no Brasil, como seu maior representante, o poeta Cruz e Sousa) uma das características é a  "sugestão": o poeta não exprime diretamente o que sente, mas sugere, insinua, apela para os sentidos. Prefere criar um clima sugestivo, de formas vagas, em vez de dizer diretamente.

Às vezes,  percebo por  trás da beleza de algumas trovas, este mesmo efeito do Simbolismo, uma certa atmosfera de insinuação...

    
Este teu corpo de miss
me deixa o coração tenso...
Imagina se eu te visse
daquele jeito que eu penso!
(Clarindo Batista/RN)
 
De meu pai, em mim gravada,
guardo a imagem, rotineira,
de uma camisa suada
sobre as costas da cadeira...
(Edmar Japiassú Maia/RJ)

 
9.
Coincidência na Trova:


Conforme nos alertou Luiz Otávio em "Meus irmãos os Trovadores":
 
"Nas trovas, como em todos os gêneros, podemos encontrar identidade de inspiração, semelhança de ideias, igualdades nas estruturas. Geralmente sem maldade... Assim, aconselho aos poetas que lerem alguma trova muito idêntica a uma sua, que não atirem a primeira pedra... Muitas vezes, a que você está lendo e julga ter sido plagiada da sua,  foi feita e publicada muitos anos antes."
 
Para ilustrar os comentários do mestre, cito abaixo 5 trovas iguais na temática (dupla visão do bêbado) e estruturas semelhantes. Da minha parte, posso garantir que nunca tinha lido qualquer uma das outras três.

 
Que genrinho inteligente!
Bebeu uma vez na vida,
viu duas sogras na frente,
nunca mais topou bebida!
(Élton Carvalho)
 
De fogo, o goleiro Armando,
enfurecendo a galera,
viu duas bolas entrando,
e pulou na que não era!
 (Pedro Ornellas/SP)
 
Chegou tarde, vista torta,
do boteco o Zé Morais,
viu duas sogras na porta
e não bebeu nunca mais!
(Pedro Ornellas/SP)

O pileque faz das suas!
Pra mim, porre nunca mais!
– Minha sogra virou duas...
castigo assim é demais!
(Josué de Vargas Ferreira)

Tomou "todas" – Que exagero!
Ficou com dupla visão...
Foi pra casa e... Oh! desespero!
Duas sogras no portão!
(Renato Alves/RJ)

 
Observem, agora, a semelhança de temas nos versos muito conhecidos em "Chão de Estrelas" na trova abaixo:
 
"A porta do barraco era sem trinco,
e a lua furando nosso zinco
salpicava de estrelas nosso chão..."
(Orestes Barbosa)

Dos pingos que a lua espalha
ficava o chão pontilhado...
É que meu rancho de palha
tinha furos no telhado
(Pedro Ornellas)

___________________________________
continua...

Melo Morais Filho (Casamento na Roça) - 1


Nos costumes nativos de nossas populações campesinas há uma face tão amena e pitoresca, que verdadeiramente delicia o artista que se ocupa desses assuntos.

É na intimidade desse povo inculto, na convivência direta com essa gente que conserva os seus usos adequados, que melhor se pode estudar a nossa índole, o nosso caráter nacional, deturpado nos grandes centros por uma pretendida e extemporânea civilização que tudo nos leva, desde as noites sem lágrimas até os dias sem combate.

E nem se diga que somos um povo que não tem passado e nem tradições; que não tivemos costumes próprios como qualquer outro, só porque o pedantismo medra nos centros mais populosos, à sombra da tolerância que tudo desvirtua e aniquila.

Em todos os atos de sua vida particular e pública, o Brasil possui o cabedal distinto de usanças, notas discordantes de costumes, pouco variáveis, alguns deles, no Sul e no Norte.

Daí a diferenciação que nos separa de povos estranhos, e o que dá a medida de nosso caráter, de harmonia com os nossos meios.

Errante de vila em vila, de cidade em cidade, de província em província, em busca de nossas tradições que se extinguem, sem um reflexo sequer na história nacional, os casamentos na roça ressaltam à descrição de nossa pena, tão originais nos parecem as suas peripécias e os seus detalhes, como quadros da vida brasileira no interior.

Na província do Rio de Janeiro, em lugares como Boa Esperança, Rio Bonito, etc., os casamentos em geral dividiam-se em três categorias. A primeira compreendia o de pessoas da classe rica e elevada; a segunda, o de indivíduos da mediana local; a terceira, o da gente baixa, seguindo-se logo após o dos escravos de fazendas, de que mais tarde trataremos.

Embora esses atos religiosos, essas festas nupciais apresentassem entre si pontos de contato, o tipo do segundo plano, isto é, os casamentos em que o noivo e a noiva saíam da cama da intermediária, nos parecem definir melhor os costumes roceiros, por isso que exornavam com mais largueza o cenário daqueles noivados ruidosos, e imprimiam um cunho mais tradicional na constituição da família.

Depois das preliminares do namoro e do pedido em casamento, a boa nova não tardava a ser espalhada por toda a localidade, por toda a povoação, acompanhada habitualmente das participações e convites. Desde logo, se o dia ficava determinado, os preparativos começavam, as encomendas do vestido da noiva, das luvas, da grinalda e do véu faziam-se com urgência e isso ao mesmo tempo que as primas, os vizinhos, as moças conhecidas mandavam comprar na cidade ou nas lojas próximas cortes de chita ou de caça para vestidos, fitas em profusão, flores de pano e enfeites para a toalete a capricho e de acordo com a moda.

A dona da casa e as escravas antecipavam-se na confecção dos doces saborosíssimos, na lufa-lufa dos arranjos domésticos, recomendando ao marido a provisão necessária de vinhos, queijos, lombo de porco, e mais extraordinários para o banquete.

A casa era varrida e vasculhada, as serpentinas e os castiçais ficavam gessados até a véspera, as mangas de vidro desempoeiradas e cobertas com ramos de flores artificiais; e as mucamas e os molequinhos, olhando para as suas roupas novas, espichavam o beiço, arregalavam as sobrancelhas, murmurando ao passar: “Chi!... tão boni to!...”

A noiva, sempre desconfiada, assistia a tudo isso, suspirando a instantes pelo delicado noivo que, entregue a outros afazeres, bem como ao de entender-se com o alfaiate sobre a roupa do casório, convidar os amigos, prevenir os tocadores de rabeca e de flauta, emprazar para o dia os violeiros de fama, rareava as suas visitas, no que era desculpável.

Concluídos os aprestos, e depois que corriam os proclamas, na manhã de um sábado a porta da noiva já se achava guarnecida de povo e da magna comitiva, que acompanharia os noivos à matriz da vila, que às vezes demorava a longa distância.

Do interior da casa, repleta de gente e de algazarra, lá vinham as madrinhas e os padrinhos, as damas do séquito, a noiva, enfim, com véu e grinalda de flores de laranjeira, sustentando-lhe a comprida cau da do vestido branco dengosa mucama, penteada e risonha, trajada também de branco, permanecendo todos alguns instantes na saída, à espera dos velhos que grazinavam lá dentro.

Nisso o noivo, a cavalo, os padrinhos e a comitiva de cavaleiros, que se achavam a seus postos, se aproximavam, dando sinal aquele a um carro de bois com toldo de esteira coberto de chita, que chegasse, para que embarcassem a noiva e as madrinhas, as primas e convidadas, evitando destarte a demora do padre na igreja, que os aguardava à hora certa.

– Eh! boi!...

E o carro, rangendo nos eixos, parava à porta; e quando a noiva subia em um banco para entrar, das janelas abertas entornavam-lhe sobre a fronte salvas de flores, ao que o noivo e os cavaleiros saudavam tirando o chapéu, empinando os cavalos e seguindo o carro.

O noivo, geralmente vexado, sacudindo o fraque bonito, alisava de quando em quando as crinas de seu ginete branco, sorrindo amarelo a alguma pilhéria importuna que lhe viesse roçar-lhe ao ouvido.

Durante o trânsito, as roceiras do carro e o séquito dos cavaleiros entretinham-se em conversas banais, em provocações maliciosas, sendo vulgar um ou outro dos acompanhadores levar algum tombo na estrada, o que despertava gargalhadas, correspondidas pela curiosidade das senhoras que botavam a cabeça de fora e aplaudiam por sua vez.

Chegado o casamento à matriz, o povaréu abria alas: os escravos que tinham partido adiante seguravam os cavalos, a noiva, as madrinhas e o mulherio apeavam-se, formando o grupo da frente as madrinhas e a noiva, com a sua mucama, que lhe levantava a cauda do vestido, entrando na igreja.

A estas seguiam-se o noivo, os padrinhos e a turba de convidados, que iam assistir ao ato e compartilhar do regozijo da família.

Depois de casados, como é comum, a noiva ressabiada dava o braço ao noivo que a conduzia ao carro, e o préstito, na ordem estabelecida, regressava, chegando a casa ao escurecer.

Apenas vistos de longe, os pais – os sogros e sogras –, se não os acompanhavam, ficavam às janelas, para receber os recém-casados; os abençoavam e abraçavam, espargindo-lhes à entrada perfumosas flores, e aclamando-lhes a futura felicidade.

E um tocador de viola, sapateando na rua, retorcendo-se em momices, antepondo-se aos noivos acanhados, cantava:

Tirana, minha tirana,
Tirana de lá debaixo;
Você vai cortar bananas,
Queira me trazer um cacho.

Tirana, minha tirana,
Ai! tirana de Irajá!
Aquilo que nós falamos
Tomara que fosse já.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =
Continua….

Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.

Aparecido Raimundo de Souza (Coriscando) 13: Radicalmente eficaz


CHAMBRÓSIO BOITORADO, foi visitar seu amigo Parreira, que mora no Leme. Chamou um Uber, se aboletou no banco traseiro e, nele, se deslocou da Rua Sá Ferreira, até o prédio onde o rapaz residia, na Gustavo Sampaio. Assim que chegou no apartamento dele, percebeu que a dorzinha de cabeça que viera, de contrapeso, desde que saíra de casa, seguiu dando sinais de que não pretendia  lhe dar um segundo de paz.

A certa altura, enquanto jogavam xadrez, incomodado com a chateação que não o largava,  indagou do companheiro, se  ele não tinha algum remédio do qual pudesse fazer uso para se livrar do desconforto irritante que não o permitia  que se  concentrasse nas peças do tabuleiro.

—  Qualquer coisa serve, Parreira.

—  Credo, mano. Relaxa.

Parreira, todavia, antes de se levantar para ir buscar  o analgésico pedido, discorreu sobre uma receita diferente, segundo ele, mais rápida e objetiva. Quando se via acossado por alguma indisposição que teimava em deixa-lo em maus lençóis, saia à cata dela.

— Se me permite, amigo Chambrósio, vou lhe falar de um santo remédio que considero por demais porreta, embora não seja médico, mas que, tenho certeza, se você pudesse fazer uso dele, certamente sairia depressa, como um rato assustado,  deste seu sufoco impertinente.

— E qual é este milagroso, amigo Parreira?

— Seguinte: toda vez que me atormenta uma indisposição momentânea,  uma dor de cabeça, enxaqueca, ou sei lá mais o quê, vou até a casa de Luciana, minha ex-mulher. Fico por lá uma hora, uma hora e meia e, quando percebo que estou sarado, levanto acampamento...

— Interessante...

— Muito. Escuta só. Ainda não acabei, mano. Esta semana, me vi umas três vezes em palpos de aranha. Na terça, uma dor forte veio me bolinar as medidas, assim do nada, chegando a me embaralhar as ideias. Falei com minha secretária observando a ela que não voltaria e, de lá mesmo, do escritório, corri direto para a casa da Luciana...

— Uau...!

— Na quinta e na sexta, precisei repetir a façanha. Bati desesperado nos calcanhares da Luciana, e, como num passe de mágica, cara, uma hora depois, eu estava novinho em folha.

— A Luciana, sua ex, deveria ser uma boa enfermeira, ou médica, se não tivesse escolhido ser juíza de direito.

— Verdade, meu brother. Tem toda razão. Se ela tivesse optado pela medicina... Apesar disto, a danadinha sabe como fazer um sujeito estressado e cheio de problemas voltar à sua tranquilidade. Bastou uma hora, Chambrósio, uma hora e eu me vi renovado e pronto para outra.

— Folgo em saber. Cá entre nós. Acho que você ainda gosta dela. Vejo isto em seus olhos. Eles brilham, quando você toca no nome dela e seu tom de voz muda literalmente... Por que não tenta reatar?

— Sem chance, Chambrósio. De mais a mais, estou em outra. Ei, antes que me esqueça: você precisa conhecer a Ariranha.

— Quem?!

— Minha nova namorada. Daqui a pouco ela pinta aqui no pedaço. Ariranha é um mulherão, uma cavala para homem nenhum botar ou ver defeito. É a tal da ‘Perfeitinha’, aquela música cantada pelo Enzo Rabelo, filho do Bruno, da dupla sertaneja Bruno&Marrone.  

— Sei a qual se refere.  Só o nome da graciosa — , me perdoe a observação —, é meio estranho. Você não concorda? Ariranha?

— Eu gosto, Chambrósio. Não acho nada fora da normalidade. Eu rotularia o patronímico dela, de diferente, de exótico...

— De qualquer  forma, apesar destes predicados todos que você enumerou, sei que ainda ama a Luciana.

— Sai, fora, mano. Luciana já era.

— Se você está dizendo...

Em resposta, Parreira se levantou, foi até a cozinha pegou um copo de água, passou no banheiro, onde tinha uma farmacinha particular, e de lá voltou com um comprimido.

— Tome.

— Qué isto?

— Torcilax. Um relaxante muscular que logo deixará você se sentindo como se estivesse dentro do paraíso... Com uma Eva a sua disposição...

— Ok. Parreira, obrigado... Estava aqui pensando...

—... Em que, meu amigo?

—  Raciocina comigo. Se funciona com você, certamente daria certo para mim também...

— Não entendi. Seja mais objetivo. Do que você está falando?

— Da Luciana, sua ex.  Se quando você está mal, se entrega aos cuidados dela, me responda, sem mais delongas... Neste momento, caso a minha cabeça não passe... Onde eu poderia  encontrar Luciana, a sua ex?!      

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Arquivo Spina 31: Antonio Queiroz

 


Luís da Câmara Cascudo (A Lenda de Itararé)


EM TEMPOS IDOS a nação indígena que vivia às margens do Paranapanema resolveu abandonar a região, escapando assim às atrocidades praticadas pelos brancos invasores.

Uma noite, porém, já em viagem, quando despertaram, estavam os índios completamente cercados e só à força de tacape conseguiram abrir caminho por entre os adversários; mas, na fuga, uma das mulheres mais formosas da aldeia - Jaíra - caiu sob o poder do chefe do bando contrário, homem forte e valoroso.

Reuniram-se as nações indígenas convocadas, e durante uma lua inteira se prepararam para a guerra. Efetuaram a festa do preparo do curare, também chamado uirari. Era a mulher mais velha da aldeia quem tinha a honra de preparar o veneno; vestia-se com penas vermelhas, escutava o canto dos pajés e partia para o mato, de onde voltava carregada de ervas. Quando o curare ficava pronto, os vapores da panela subiam; ela os aspirava e caía morta. Assim se fez.

Depois de esfriado o curare, começou a dança em torno à panela, ervando todos os guerreiros as suas flechas. Antes de se iniciar a batalha, chegou um velho de muito longe e entrou a aconselhar, secretamente, os pajés: na guerra contra os brancos, que usavam armas de fogo, só deviam esperar a morte; eles eram muitos e sabiam
defender-se; o que deviam fazer era o seguinte:

– Um dos nossos ocultará, perto do acampamento inimigo, filtros de amor que conhecemos, a fim de o chefe ficar apaixonado por Jaíra, e após deverá apresentar-se aos brancos como desertor da aldeia, para trabalhar com eles. Assim terá oportunidade de falar com ela e entregar-lhe drogas preparadas. E um dia, quando todos estiverem adormecidos pelo ariru, servido no banquete, os guerreiros indígenas, em massa, atacarão subitamente os inimigos, de tacape em punho. Não escapará nenhum dos brancos, cujos cadáveres serão lançados aos corvos.

Tal plano foi aceito pelos pajés.

No dia seguinte partiu o guerreiro, levando os filtros de amor, mas os índios em vão esperaram (como estava combinado) pelo canto da saracuara, três vezes em noite de lua nova. É que o chefe se apaixonara pela linda bugra, e Jaíra também se apaixonara pelo moço, de modo que o guerreiro enviado regressou sem nada haver conseguido.

O tenente Antônio de Sá (assim se chamava o chefe) era casado e residia em Santos, e quando sua esposa soube do amor que o ligava a Jaíra, fez que seu pai a conduzisse ao acampamento dos brancos, onde ela chegou, uma tarde, com muitos pajens e comitiva luzida.

Houve disputa entre os esposos, e, no dia seguinte, Jaíra, muito desgostosa, resolveu partir, dizendo ao tenente que ia esperá-lo à beira do rio Itararé, a fim de fugirem, à noite, pela floresta. E rematou:

- Quando a lua for descendo pelos morros azuis eu cantarei três vezes como a araponga branca, e, se você não comparecer ao lugar da espera, ligarei os pés com um cipó e me atirarei ao rio.

E pôs-se a caminho, deixando, em lágrimas, o moço. À noite, ouviu-se três vezes o canto da araponga branca, mas o chefe dos brancos não foi procurar Jaíra.

Medonha e súbita tempestade revolucionou, então, aquela região, caindo raios numerosos que vitimaram muitos bois, reduzindo bastante os animais do tenente Antônio de Sá.

Ao amanhecer, o chefe foi a cavalo, acompanhado por um pajem, à pedra indicada por Jaíra, mas só achou ali a roupa da infeliz criatura, com uma coroa de flores de maracujá do mato, em cima. O tenente soltou um grito de desespero, e ficou tão alucinado, que se lançou à corrente e não veio mais a terra.

A senhora branca soube do ocorrido, dirigiu-se a cavalo ao rio, onde só viu a roupa de Jaíra e o lugar em que sucumbira o esposo, e em pranto, a vociferar, amaldiçoou o rio em que cuspiu três vezes. Então as águas cavaram o solo e se esconderam no fundo da terra, os peixes ficaram cegos, a mata fanou-se e morreu!...

Contam que quem descia, de noite, à gruta de Itararé veria Jaíra, vestida de branco, com a grinalda de flores de maracujá, tendo ao colo o corpo do moço que morrera por ela. Às vezes, a sua sombra vinha à beira da estrada, matava os viajantes, tirava-lhes o sangue e com ele ia ver se reanimava o seu morto querido.

Dizem, em época mais recente, que a penitência já se acabou; e um dia, quando menos se esperar, as águas do rio hão de abrir de novo as suas margens e hão de espalhar-se pela terra, para refletir, à noite, o fulgor de todas as estrelas.

Fonte:
Luís da Câmara Cascudo. Lendas brasileiras para jovens. Projeto Livro para Todos.

Professor Garcia (Mourão em sete pés) – 1


Esse é um dos estilos poéticos cantados pelos nossos magníficos repentistas, que nos proporcionam momentos de rara beleza e encantamento, porque prova a velocidade do raciocínio e da inteligência dos cantadores. Via de regra, quem começa já imagina o fechamento da estrofe; mas o oponente, ao perceber, muda essa ideia na tentativa de deixar o colega em dificuldade.

Alguns exemplos a seguir entre Prof. Garcia (PG) e Zé Lucas (ZL)


PG - Todo mourão me enternece
seja do jeito que for.

ZL - Eu vibro quando ele cresce
na voz de um bom cantador.

PG - Mourão que é bem feito em sete,
verso nenhum se repete
na lira de um trovador!
= = = = = = = = = = =

PG - A abelha da jandaíra
é uma operária sofrida.

ZL - Na natureza se inspira,
fabricando o mel da vida.

PG - Meu Deus! e o que faço agora,
se a jandaíra de outrora,
já foi de morte, ferida!
= = = = = = = = = = =

ZL - No piso de meu curral,
só quero vaca leiteira.

PG - E eu quero no meu quintal
o canto da cachoeira.

ZL - Quando a cachoeira canta
o rio, que se levanta,
vem de barreira a barreira.
= = = = = = = = = = =

PG - Me lembro da bordadeira
na varanda da fazenda.

ZL - E uma cabocla faceira
tecendo bico de renda,

PG - Esse passado tão lindo
pouco a pouco foi sumindo;
no meu sertão, virou lenda!
= = = = = = = = = = =

ZL - Espremida na moenda,
virava bagaço a cana.

PG - E o bagaço era oferenda
no terreiro da choupana.

ZL - No sabor da rapadura
concentrava-se a doçura
do mel da cana caiana.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

PG - O engenho de moer cana,
referência do passado,

ZL - Hoje é saudade tirana
de um sonho desmoronado.

PG - Para falar a verdade,
é meu mundo de saudade
dentro do peito guardado!
= = = = = = = = = = =

ZL- Eu defendo a virgem mata,
onde a paz ainda habita.

PG — Onde a lua cor de prata
deixa a noite mais bonita.

ZL - Se, ali, alguém que não presta,
ferir de morte a floresta,
até o silêncio grita!
= = = = = = = = = = =

PG - Quem usa a foice maldita
para uma planta cortar.

ZL - Com a lei divina se atrita,
pisoteia o verbo amar!

PG - Quem queima e que tudo corta,
deixa a natureza morta
e a terra triste a chorar!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Marcelo Spalding (Gota D’Água)


Pai, talvez você continue sem querer notícias, mas precisa saber que estou bem. A cidade é um grande cartão postal, me recebeu de luzes acessas. Você, que sempre gostou das águas paradas, adoraria conhecer o Guaíba, um lago tão grande que aqui chamam de rio. E não tem dono, qualquer um pode sentar à margem e namorar, conversar, escrever, pensar, sonhar. Eu, quando sinto falta do mato, do milho crescido, da casinha que não temos mais, venho pra cá. E lembro daquela tua frase: o que é uma gota de lágrima diante dum rio grande? Lembra o dia em que me disse isso? É, mas eu não achei que fosse sentir tanta falta dela. Nem que nossa vida mudaria assim.

Rosa, os dias aqui são curtos e o tempo parece que passa mais rápido. Por isso não escrevi antes. Mas saiba que a cada dia levanto, lavo as mãos, olho para o espelho e nele está nossa foto. É por ti que vim, por ti que trabalho. Não peça prazo, não tenha pressa. Está próximo o dia em que voltarei para ti buscar. Aqui você vai trabalhar numa loja muito fina, atender madames e ganhar altas gorjetas. Nunca mais vai precisar tirar leite, carnear boi, correr atrás das galinhas, ouvir aquele grosso te dando ordens e te explorando. Nem você nem a mana.

Carlos, sei que nesse mês vence a primeira prestação. Nem parece que há tanto tempo deixei o campo, o pai, a Rosa, os manos. Confesso ter ficado triste com tua carta, mas é a dificuldade que eles passam aí o que me dá forças para esta loucura. E, claro, tua ajuda. Aquele dinheiro foi fundamental nos primeiros meses, e mais ainda quando precisei comprar roupas. Para que roupas? As coisas na capital são muito diferentes, não se pode sair de camisa rasgada, velha, cabelos despenteados. As pessoas nos olham como se fôssemos bandidos e nos dão no máximo moedas, nunca trabalho.

Mana, que saudades! O Carlos contou das dificuldades que têm passado com o pai. Coitado, ao invés de chorar, ele bebe a falta da mãe. Assim acaba mal, mana, acaba mal, não esquece o que o padre disse. Bem, mas a verdade é que daqui não te mando notícias muito melhores. Pelamordedeus, não conte pro pai, mas a cidade e o campo sofrem do mesmo mal: tem gente demais e espaço de menos. Ou gente de menos com todo o espaço para si, não sei. O fato é que tive problemas com nossos pães. Até capinei, tirei pedras da casa duma madame, derrubei uma árvore, tudo que odiava fazer aí só para não passar fome. Pior quando olho o rio e lembro dos nossos planos. A gente fazia tantos...

Dra. Marisa, só a senhora pode me ajudar nesse momento difícil. Vim para a cidade com a roupa do corpo, alguns pães feitos pela mana e um dinheiro emprestado pelo Carlos. Aluguei um quarto, vendi uns pães, comprei os ingredientes para fazer mais pães. Só que onde moro não deixaram usar a cozinha, e me sugeriram alugar a da padaria do Seu Manoel. Fui lá e combinei de trabalhar de graça para ele de dia e fazer meus próprios pães de noite. Venderia ali mesmo. Só que ontem cheguei lá e ele tinha me demitido! Nunca fui empregado dele, levei meus pães, única riqueza que eu tinha, e ajudei o cretino a fabricar outros. Como posso ter sido demitido? Calculo que ficaram mais de cem dos meus pães para serem vendidos.

Mano velho, não sei nem o que responder. Esta tua carta me cai como mais uma bomba. Imagina que hoje de manhã mesmo fui expulso do quartinho. Agora essa, que a Rosa está de casamento marcado. E com o Carlos! O sem vergonha nunca respondeu às minhas cartas, nem pra cobrar ele me escreveu. Só podia ter coisa errada. Agora, mano, não sei o que faço. O pai cada vez mais doente, a Rosa não me espera mais, o dinheiro acabou. Voltar, talvez voltar. Mas voltar para onde? Para o acampamento? Levar a mana e o pai comigo e tentar de novo? Sabemos como funciona, não é solução. Nem ficar esperando outro explorador e suas migalhas. Não, voltar eu não vou. Que a Rosa case, faz bem. Não sei quando poderia buscá-la mesmo. No fundo fiz tudo isso pela mana. Ela não pode ser a vida inteira empregada daquele porco imundo. E quando morrer a patroa, a Dra. Marisa, nem respeito o filho da mãe vai ter. Deus me livre.

Padre, lamento não estar aí no campo para falar com o senhor. Tentei os padres aqui da cidade, mas poucas igrejas ficam abertas para alguém como eu. Não, padre, não sou mais o mesmo. Primeiro perdi os pães, depois as roupas ficaram trancadas no meu quartinho como pagamento dos atrasados, e hoje nem esperanças tenho mais. Sobrevivo graças a um senhor que me alimenta, me deixa dormir em sua garagem e em troca capino um terreno para ele. Isso não é vida. Não ganho nada, só comida, caneta e papel. Ele já disse para eu voltar, o mano também. Mas é por isso que escrevo, não posso voltar. Não existe mais a minha terra. Desde que a mãe morreu ela não existe mais. E o pai sabe disso, tanto que nunca mais viveu. Foi o senhor, padre, quem me explicou o perigo que era a cabeça de um viúvo, a força da tristeza mesmo nas almas mais nobres. Foi o senhor, padre, quem pediu para eu vender todas as facas afiadas demais, esconder cordas e navalhas. Foi o senhor, padre, quem pediu para eu acompanhar ele no rio. E foi no rio que eu entendi o porquê, padre. Ele não chorou, nunca chorou. Só olha para aquelas águas paradas, tristes, quietas. Um dia me perguntou o que é uma lágrima diante do rio grande. Não sabia, padre, não sabia mas aquelas palavras me cortaram. Verdade que não percebi isso naquele instante, precisei atravessar o estado, me arriscar neste cartão postal, perder pães, roupas e sonhos para descobrir a tristeza do rio. Do pai.

Agora eu entendo.

Que o senhor me perdoe, padre. E que a mana pense ter sido um acidente. Ela ainda merece ser feliz.

Fonte:
Marcelo Spalding.

terça-feira, 16 de março de 2021

Adega de Versos 4: José Lucas de Barros

 


Stanislaw Ponte Preta (O boateiro)


Esta historinha — evidentemente fictícia — corre em Recife, onde o número de boateiros, desde o movimento militar de 1.° de abril, cresceu assustadoramente, embora Recife já fosse a cidade onde há mais boateiro em todo o Brasil, segundo o testemunho de vários pernambucanos hoje em badalações cariocas.

Diz que era um sujeito tão boateiro, que chegava a arrepiar. Onde houvesse um grupinho conversando, ele entrava na conversa e, em pouco tempo, estava informando: "Já prenderam o novo Presidente", "Na Bahia os comunistas estão incendiando as igrejas", "Mataram agorinha o Cardeal", enfim, essas bossas. O boateiro encheu tanto, que um coronel resolveu dar-lhe uma lição. Mandou prender o sujeito e, no quartel, levou-o até um paredão, colocou um pelotão de fuzilamento na frente, vendou-lhe os olhos e berrou: "Fogoooo!!!". Ouviu-se aquele barulho de tiros e o boateiro caiu desmaiado.

Sim, caiu desmaiado porque o coronel queria apenas dar-lhe um susto. Quando o boateiro acordou, na enfermaria do quartel, o coronel falou pra ele:

—    Olhe, seu pilantra. Isto foi apenas para lhe dar uma lição. Fica espalhando mais boato idiota por aí, que eu lhe mando prender outra vez e aí não vou fuzilar com bala de festim não.

Vai daí soltou o cara, que saiu meio escaldado pela rua e logo na primeira esquina encontrou uns conhecidos:

—    Quais são as novidades? — perguntaram os conhecidos.

O boateiro olhou pros lados, tomou um ar de cumplicidade e disse baixinho: — O nosso exército está completamente sem munição.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996.