Nos costumes nativos de nossas populações campesinas há uma face tão amena e pitoresca, que verdadeiramente delicia o artista que se ocupa desses assuntos.
É na intimidade desse povo inculto, na convivência direta com essa gente que conserva os seus usos adequados, que melhor se pode estudar a nossa índole, o nosso caráter nacional, deturpado nos grandes centros por uma pretendida e extemporânea civilização que tudo nos leva, desde as noites sem lágrimas até os dias sem combate.
E nem se diga que somos um povo que não tem passado e nem tradições; que não tivemos costumes próprios como qualquer outro, só porque o pedantismo medra nos centros mais populosos, à sombra da tolerância que tudo desvirtua e aniquila.
Em todos os atos de sua vida particular e pública, o Brasil possui o cabedal distinto de usanças, notas discordantes de costumes, pouco variáveis, alguns deles, no Sul e no Norte.
Daí a diferenciação que nos separa de povos estranhos, e o que dá a medida de nosso caráter, de harmonia com os nossos meios.
Errante de vila em vila, de cidade em cidade, de província em província, em busca de nossas tradições que se extinguem, sem um reflexo sequer na história nacional, os casamentos na roça ressaltam à descrição de nossa pena, tão originais nos parecem as suas peripécias e os seus detalhes, como quadros da vida brasileira no interior.
Na província do Rio de Janeiro, em lugares como Boa Esperança, Rio Bonito, etc., os casamentos em geral dividiam-se em três categorias. A primeira compreendia o de pessoas da classe rica e elevada; a segunda, o de indivíduos da mediana local; a terceira, o da gente baixa, seguindo-se logo após o dos escravos de fazendas, de que mais tarde trataremos.
Embora esses atos religiosos, essas festas nupciais apresentassem entre si pontos de contato, o tipo do segundo plano, isto é, os casamentos em que o noivo e a noiva saíam da cama da intermediária, nos parecem definir melhor os costumes roceiros, por isso que exornavam com mais largueza o cenário daqueles noivados ruidosos, e imprimiam um cunho mais tradicional na constituição da família.
Depois das preliminares do namoro e do pedido em casamento, a boa nova não tardava a ser espalhada por toda a localidade, por toda a povoação, acompanhada habitualmente das participações e convites. Desde logo, se o dia ficava determinado, os preparativos começavam, as encomendas do vestido da noiva, das luvas, da grinalda e do véu faziam-se com urgência e isso ao mesmo tempo que as primas, os vizinhos, as moças conhecidas mandavam comprar na cidade ou nas lojas próximas cortes de chita ou de caça para vestidos, fitas em profusão, flores de pano e enfeites para a toalete a capricho e de acordo com a moda.
A dona da casa e as escravas antecipavam-se na confecção dos doces saborosíssimos, na lufa-lufa dos arranjos domésticos, recomendando ao marido a provisão necessária de vinhos, queijos, lombo de porco, e mais extraordinários para o banquete.
A casa era varrida e vasculhada, as serpentinas e os castiçais ficavam gessados até a véspera, as mangas de vidro desempoeiradas e cobertas com ramos de flores artificiais; e as mucamas e os molequinhos, olhando para as suas roupas novas, espichavam o beiço, arregalavam as sobrancelhas, murmurando ao passar: “Chi!... tão boni to!...”
A noiva, sempre desconfiada, assistia a tudo isso, suspirando a instantes pelo delicado noivo que, entregue a outros afazeres, bem como ao de entender-se com o alfaiate sobre a roupa do casório, convidar os amigos, prevenir os tocadores de rabeca e de flauta, emprazar para o dia os violeiros de fama, rareava as suas visitas, no que era desculpável.
Concluídos os aprestos, e depois que corriam os proclamas, na manhã de um sábado a porta da noiva já se achava guarnecida de povo e da magna comitiva, que acompanharia os noivos à matriz da vila, que às vezes demorava a longa distância.
Do interior da casa, repleta de gente e de algazarra, lá vinham as madrinhas e os padrinhos, as damas do séquito, a noiva, enfim, com véu e grinalda de flores de laranjeira, sustentando-lhe a comprida cau da do vestido branco dengosa mucama, penteada e risonha, trajada também de branco, permanecendo todos alguns instantes na saída, à espera dos velhos que grazinavam lá dentro.
Nisso o noivo, a cavalo, os padrinhos e a comitiva de cavaleiros, que se achavam a seus postos, se aproximavam, dando sinal aquele a um carro de bois com toldo de esteira coberto de chita, que chegasse, para que embarcassem a noiva e as madrinhas, as primas e convidadas, evitando destarte a demora do padre na igreja, que os aguardava à hora certa.
– Eh! boi!...
E o carro, rangendo nos eixos, parava à porta; e quando a noiva subia em um banco para entrar, das janelas abertas entornavam-lhe sobre a fronte salvas de flores, ao que o noivo e os cavaleiros saudavam tirando o chapéu, empinando os cavalos e seguindo o carro.
O noivo, geralmente vexado, sacudindo o fraque bonito, alisava de quando em quando as crinas de seu ginete branco, sorrindo amarelo a alguma pilhéria importuna que lhe viesse roçar-lhe ao ouvido.
Durante o trânsito, as roceiras do carro e o séquito dos cavaleiros entretinham-se em conversas banais, em provocações maliciosas, sendo vulgar um ou outro dos acompanhadores levar algum tombo na estrada, o que despertava gargalhadas, correspondidas pela curiosidade das senhoras que botavam a cabeça de fora e aplaudiam por sua vez.
Chegado o casamento à matriz, o povaréu abria alas: os escravos que tinham partido adiante seguravam os cavalos, a noiva, as madrinhas e o mulherio apeavam-se, formando o grupo da frente as madrinhas e a noiva, com a sua mucama, que lhe levantava a cauda do vestido, entrando na igreja.
A estas seguiam-se o noivo, os padrinhos e a turba de convidados, que iam assistir ao ato e compartilhar do regozijo da família.
Depois de casados, como é comum, a noiva ressabiada dava o braço ao noivo que a conduzia ao carro, e o préstito, na ordem estabelecida, regressava, chegando a casa ao escurecer.
Apenas vistos de longe, os pais – os sogros e sogras –, se não os acompanhavam, ficavam às janelas, para receber os recém-casados; os abençoavam e abraçavam, espargindo-lhes à entrada perfumosas flores, e aclamando-lhes a futura felicidade.
E um tocador de viola, sapateando na rua, retorcendo-se em momices, antepondo-se aos noivos acanhados, cantava:
Tirana, minha tirana,
Tirana de lá debaixo;
Você vai cortar bananas,
Queira me trazer um cacho.
Tirana, minha tirana,
Ai! tirana de Irajá!
Aquilo que nós falamos
Tomara que fosse já.
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Continua….
Fonte:
Melo Morais Filho. Festas e Tradições Populares do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002.
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