domingo, 14 de março de 2021

Paulo Mendes Campos (Os velhos)

Um professor criou um neologismo para uma arte (ou ciência) nova: eugeria, velhice feliz. Os gregos não tiveram o otimismo de juntar os dois elementos dessa palavra.

Andam a mexer muito com os velhos ultimamente. Que a ciência procure dar-lhes os meios efetivos de preservar a saúde, que as leis assentem os recursos que lhes poupem penúrias e humilhações, que as famílias os tratem com respeito e carinho. Mas querer iludi-los com estimulantes psíquicos, ficar a discutir suas tristezas em público, isso me parece impertinência. Cuidá-los como criança, engambelá-los, isso lhes ofende a dignidade.

Envelhecer é ruim. Meu mestre, frade franciscano, dizia-nos que mesmo o Papa mais santo não gostava de envelhecer. Mas a criatura humana tem o orgulho preliminar de poder aguentar a verdade. Só um velho palerma, indigno da verdade, iria acreditar que não é velho, que a velhice não existe, que a vida é um sorriso incessante. Os velhos honrados sabem como se arrumar no seu canto, com pudor e gravidade. Deixá-los. Não precisam de nós, que os aborrecemos com as nossas vãs consolações. Respeitemos o silêncio da idade avançada, e que nos respeitem mais tarde. Ou daqui a pouco. A velhice é um sentimento íntimo, que não devemos violar com frioleiras sentimentais. O sentimentalismo dos parentes jovens diante dos velhos é doloroso. Pretender reanimar um espírito mais vivido, mais experiente e mais amargado que o nosso, é quase sempre de uma inoportunidade impiedosa.

Tantos gestos afetivos lesam mais do que confortam, tantas solicitudes inábeis estão sempre a reabrir feridas. Nosso amor pela pessoa velha não deve ser uma opressão, uma tirania a inventar cuidados chocantes, temores que machucam. Deixemos que façam o que bem entendam, cometam as suas imprudências, desobedeçam os conselhos médicos. Libertemos os velhos de nossa fatigante bondade. Que exagerem, se lhes der vontade, na comida e na bebida, durmam fora de hora, se esqueçam de tomar o remédio, fumem, apanhem sol, chuva, sereno. Não chatear demais os velhos, que ainda têm nas pequenas imprudências um gosto de vida. Não ter muito juízo é um dos prazeres da velhice. Mesmo que de vez em quando brinquem um pouco com a vida, poupemos a eles a nossa aflição. É porque não ignoram as manhas desta vida nossa, é por sabedoria que proporcionam a si mesmos um pico de insensatez. E é por egoísmo que os moços, sobretudo os filhos, vigiam os velhos como se vingassem da infância.

Não se diz ao velho, por exemplo, “está na hora de dormir, papai, o senhor deve estar exausto”; “amanhã eu levo a senhora ao médico à força”; "a senhora fique sabendo que está proibida de ajudar a cozinheira"; “o senhor parece uma criança, onde já se viu deitar no ladrilho”; “olhe bem antes de atravessar a rua”; “tome o seu remedinho direitinho, viu”; “a senhora não está mais na idade de ficar nessa agitação que não para, que coisa horrorosa”; “cuidado com o degrau”; “quantas vezes já lhe disse para não sair sem agasalho”; “a senhora não precisa fazer nada, que eu sei fazer tudo sozinha”.

Impertinências que ferem os velhos e os desamparam mais do que a velhice. Palavras más, nascidas de um sentimento de amor muito mal administrado. Mostram sempre que não basta ser bom neste mundo, é preciso distinguir as bondades que não doam. A alma do homem não é tão simples que só o exercício do afeto seja suficiente para satisfazê-la. E gostar de alguém não confere privilégios tirânicos.

Respeitemos os velhos sem sentimentalidades enjoadas, sem antipatia, sem o sadismo de certos tipos de ternura.

Mas a verdade é que o mundo está cheio desses sentimentalões estabanados, que entram na intimidade dos outros derrubando e quebrando tudo.


Fonte:
Paulo Mendes Campos. O anjo bêbado. Publicado em 1969.

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