segunda-feira, 8 de março de 2021

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 35) Como a esperança do amor em noites altas...


DONA PREGUIÇA, AO VER o seu Canário Belga pousar no beiral de sua casa, se vira para o recém-chegado e faz carinha de desconsolada. Fala:

— Que bom que apareceu. Estou com uma fome dos diabos. Não me faria um grandíssimo favor?

Seu Canário acha melhor dar uma de bom samaritano. Como tem interesse na intrigante mamífera e, sendo sabedor que, apesar de relaxada e ociosa, de quando em vez ela dá umas puladinhas de cerca, assente, pressuroso:

— Qual favor, dona Preguiça?

—Como o senhor voa rápido, corta os ares com uma velocidade indescritível buscaria algo para eu comer lá na lanchonete do seu Zé Macaco?

Num primeiro momento o impulso da ave foi o de mandar dona Preguiça lamber sabão. Todavia, se agisse desta forma, cairia por terra qualquer possibilidade de se achegar a ela e tentar alguma coisa mais “caliente”. Impossível? Jamais! Lembrou imediatamente do seu amigo distante, o Shrek, onde um burro, sem eira nem beira, se apaixona por uma dragão fêmea. Pensando firmemente nesta probabilidade, apesar de todos os prós e contras, não deixou de perguntar o que lhe veio na mente, para ver até onde a dondoca pretendia chegar:     

— E por que a senhora mesma não vai lá pessoalmente?  Aproveita a noite fresca, o céu estrelado... Sem falar que as horas ainda não se perderam à revelia do silêncio!...

Dona Preguiça, todavia, tem resposta para tudo, na ponta da língua. Rebate ladinamente esperta:

— Porque estou muito cansada, seu Canário. Quase oito da noite. Trabalhei até agora. Saio de casa às quatro da manhã para pegar no batente às nove horas em ponto. Isto de segunda a sábado. Imagine! Como ando muito devagar, o senhor tem conhecimento da minha fama. Gasto uma eternidade enorme para fazer um percurso de meio quilômetro. Até chegar no Zé Macaco... Ele já se recolheu. Hoje dei sorte... Dividi o táxi do seu Leão da juba grande com as irmãs Simone e Silmara, as  fogosas onças Pintadas.

Seu Canário vai mais fundo. Indaga:

— Ainda que mal pergunte. A senhora trabalha aonde?

— Na padaria do seu Pedro Javali.

Seu Canário fica sério e arqueia as sobrancelhas:

— Estranho!

— O que acha estranho seu Canário Belga?

— Praticamente não saio do comércio do seu Javali e nunca vi a senhora por lá. Por favor, não me entenda mal...

— De forma alguma. Espera lá. Eu sei o motivo. Fico o tempo todo na cozinha fazendo lanches e preparando pelo menos umas doze ou treze garrafas de café e outras tantas de sucos os mais diversos. Daí o senhor não me ver. Geralmente quem atende no salão são as coelhas Bia e Carol. Mas me diga aí, seu Canário... Que me recorde, das vezes em que apareci no salão, confesso, igualmente, nunca topei com o senhor sentado numa das mesas.

— Por certo dona Preguiça, por certo lhe assiste inteira razão. Eu só passo de passagem, digo, voo de passagem para pegar as refeições de meus dois pequenos Belguinhas.

— Que bacana! Então o senhor é freguês do meu patrão Javali?

— Não exatamente...

— Não entendi. Não faz compras regularmente no empório colado à padaria?

— Eu explico dona Preguiça. Eu e minha família (faço referência a meus dois filhinhos) moramos nos fundos do estabelecimento, ou mais precisamente, no topo de uma árvore enorme.

— Raios e trovões! O senhor se refere àquele carvalho nos fundos do quintal?

— Esse mesmo em carne e osso.

— Como disse...?!

— Em galhos, raízes e folhas.

— Ah, sim! Quer dizer que aquela cantoria que escuto logo cedo, vem de seus pequenos?

— Com certeza, dona Preguiça. Com certeza.

— Encantada. Não sabia que era nosso vizinho! Às vezes, seu Javali joga uns restos de comidas fora...

— Eu sei. E, quando isso acontece, eu entro em cena catando estas migalhas e distribuindo para meus bebês.

Dona Preguiça vendo seu Canário Belga falar de filhos e não mencionando esposa, questiona abelhuda:

— E sua companheira? Deve ter uma, suponho?

— Qual o quê! Bateu asas e se mandou com um periquito australiano pra bem longe...

— Verdade?

— Sim. A sem vergonha me trocou por outro...

— Já que é assim, seu Canário, posso lhe ajudar...

— Como me ajudar, dona Preguiça? Vai me pedir em casamento?

Dona Preguiça ri a boas gargalhadas:

— Pra Deus nada impossível. Quem sabe! Quando falei em ajudar, fazia referência ao invés de deixar que seu Javali jogue as sobras fora, eu as guardaria e entregaria diretamente ao senhor...

— Faria isto por mim?

— Sem problemas, seu Canário, sem problemas.

— Perfeito. Fechou. Vamos lá. O que é que a distinta quer comer?

— Uau! Iria buscar um lanche?

— Uma mão lava a outra, dona Preguiça.

— Eu sei seu Canário, eu sei. E as duas, o rosto. Aguarde um minuto que vou lá dentro buscar o dinheiro.

Assim foi. Uma hora e meia depois dona Preguiça volta com o dinheiro. Seu Canário, de posse dele, corre... Corre... Corre  não, voa, até a lanchonete de seu Macaco e traz o pedido para dona Preguiça, que se deleita com a guloseima. Estava com uma fome dos diabos e aquele sanduíche de folhas de embaúba e brotos de árvores frutíferas, com queijo derretido lhe caiu como um quitute de primeira ordem.

Seu Canarinho não aceitou nenhum naco da iguaria que lhe fora oferecida. Estava de papo cheio e seu interesse maior seria o de cantar aquela preguiça de hábitos requintados, dona de grandes garras e que, igualmente aos demais da sua cadeia familiar, dormia catorze ou dezoito horas por dia. Isso não importava. Desde que ele lavasse a égua, ela poderia dormir quantas horas lhe desse na telha. Aquela lindeza de corpo cinza claro, com manchas pretas lhe deixava em estado desesperador. Precisava dar um jeito de ser mais contundente em suas cantadas e chegar aos finalmente com a menor brevidade possível.

Desde que sua adorada esposa, dona Passarinha lhe colocara um belo par de chifres, seu Canário se fechara para o mundo. Todavia, com o passar dos dias e dos meses, começou a se sentir triste e macambúzio. Precisava reagir. Sair do ostracismo e seguir a sua vida. Arranjar um novo cobertor de orelha, alguém para dividir seus medos e receios e, claro, uma nova esposa que ajudasse a criar seus dois filhotes. Os meninos estavam crescidinhos, mas, sem o amparo da visão materna necessária e indispensável. Dona Passarinha, de fato, se fora de vez e jamais voltara a dar as caras, sequer para rever os filhotes que orfaram sem saber o verdadeiro motivo daquele triste abandono.

— Pois então, seu Canário — diz dona Preguiça após se fartar com o lanche. — A partir de amanhã começarei a recolher, eu mesma, o que seu Javali, meu patrão, jogar fora e guardarei para o senhor, digo para seus filhotinhos...

— Obrigado, dona Preguiça. Ficarei imensamente grato pela sua ajuda e compreensão. A propósito: como farei para pegar estas “guloseimas?”.

— O senhor poderá vir aqui em minha casa ou diretamente ter comigo em meu horário de saída...

— Não será muito incômodo para a sua pessoa, dona Preguiça?

— Que é isto, seu Canário! Incômodo é doença. Farei com maior prazer. De mais a mais, pense em seus pequenos...

— Por certo, dona Preguiça. Por certo. Bem, vou deixa-la em paz. Hora de ir embora. Meus bichinhos estão sozinhos, lá em casa, e eu preciso me fazer presente. Sabe como é, né. A noite vai alta. Daqui percebo a sua escuridão se achegando com um tremor inesperado. Hora de partir. Tenha bons sonhos, querida. Durma com os anjos.

— O senhor também, seu Canário Belga. Deposite em seus “gatinhos” beijos do coração aqui da tia Preguiça.

Seu Canarinho Belga vira as costas e sai de cena num rasante espetacular, deixando dona Preguiça acabando de se fartar com as migalhas finais do sanduíche. Em casa, agasalhado aos filhos, seu Canarinho Belga pensa com suas penas: “Aquela Preguiça vai acabar aqui em cima aconchegada comigo... Ah, isto vai”.

Por sua vez, enquanto se recolhe, dona Preguiça ainda lambendo os beiços em face do lanche devorado, não deixa de ter pensamentos pecaminosos:

— Apesar de toda a minha fama de bambeza e atonia, ainda trarei para a minha humilde moradia, ou melhor, para a minha alcova aquele passarinho com cara de safadinho. Quer saber? Vou investir. Essa história das iguarias que o velho Javali joga fora me servirá de ponte para atingir, em cheio, o coração desse Canário de voos majestosos. Que diabo daria o casamento de uma folívora placentária igual a mim com um ser da família dos fringilídeos de plumagem compacta e sem frisos? Amanhã, quando sair da padaria, consultarei a senhora dona Coruja.

Seu Canarinho, mais esperto, dia seguinte, sai cedo depois de deixar os filhotinhos devidamente alimentados. Bate às portas de dona Coruja, tida na floresta como a simbolizadora ou a guardiã da inteligência, do mistério e do misticismo, entre outras variantes. Paga a consulta e entra direto no assunto:

— Senhora dona Coruja, me mata uma curiosidade. Do relacionamento de um Canarinho Belga com uma simpática de uma certa Preguiça, o que resultaria?

Dona Coruja responde de primeira, na lata, sem pestanejar:

— Certamente, meu caro senhor Canário Belga, uma linda ninhada de pilosas voadoras.    

Fonte:
Parte integrante do livro de crônicas de Aparecido Raimundo de Souza, ‘COMÉDIAS DA VIDA NA PRIVADA’ – Editora AMC-GUEDES - Rio de Janeiro. 2021.
Texto enviado pelo autor.

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