quinta-feira, 11 de março de 2021

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 17, 18 e 19

A MUDANÇA


O homem voltou à terra natal e achou tudo mudado. Até a igreja mudara de lugar. Os moradores pareciam ter trocado de nacionalidade, falavam língua incompreensível. O clima também era diferente.

A custo, depois de percorrer avenidas estranhas, que se perdiam no horizonte, topou com um cachorro que também vagava, inquieto, em busca de alguma coisa. Era um velhíssimo animal sem trato, que parou à sua frente.

Os dois se reconheceram: o cão Piloto e seu dono. Ao deixar a cidade, o homem abandonara Piloto, dizendo que voltaria em breve, e nunca mais voltou. O animal inconformado procurava-o por toda parte. E conservava uma identidade que talvez só os cães consigam manter, na Terra mutante.

Piloto farejou longamente o homem, sem abanar o rabo. O homem não se animou a acariciá-lo. Depois, o cão virou as costas e saiu sem destino. O homem pensou em chamá-lo, mas desistiu. Afinal, reconheceu que ele próprio tinha mudado, ou que talvez só ele mudara, e a cidade era a mesma, vista por olhos que tinham esquecido a arte de Ver.
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ANDORINHAS DE ATENAS

As andorinhas de Atenas são descendentes em linha direta daquelas que viviam no tempo de Anacreonte e que pousavam no ombro do poeta quando ele libava nas tavernas.

Esta informação, ministrada ao turista pelo guia, não mereceu crédito. Anacreonte (ponderou o visitante) não era de frequentar tavernas. Sentava-se à mesa dos poderosos e gozava de alta cotação social.

O guia não se impressionou com os conhecimentos biográficos:

— Pois olhe. Essas andorinhas foram trazidas de Samos pelo próprio Anacreonte, que por sinal selecionava as mais gordinhas para almoço.
Era doido por andorinha no espeto.

— Como pode saber disto? — objetou o turista.

— Bem se vê que o senhor não conhece a Antologia palatina.

— Conheço-a, foi objeto da minha tese de mestrado, e não vi no texto uma linha que conte essa fábula.

— Meu caro senhor, peço licença para me retirar. Quem não acredita nas minhas histórias dificilmente levará uma boa impressão de Atenas.

E afastou-se com a maior dignidade.
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A NOITE

Há tantas coisas germinando na noite, que nem sei como enumerá-las. À noite nascem as revoluções, tanto as que vão triunfar como as que só se realizam em pensamento, e são quase todas. Os revolucionários viram-se, inquietos, na cama. E também os que se converterão, pela manhã, a religiões novas. E os amorosos. Análises emocionais levadas ao extremo da tortura arrastam-se pelas horas lentas da noite. Como a noite é rica! A noite é o tempo de não dormir; é o de velar e procurar; de criar mundos.

Demétrio quis prolongar a noite obturando todas as frestas do quarto, para que não entrasse a luz. Luz não entrou. Demétrio gozou da noite plena, continuada, e todos os pensamentos lhe floresciam. Construiu sistemas filosóficos. A escuridão era propícia a teorias políticas. Nenhum crítico foi mais perspicaz do que Demétrio, na literatura e nas artes. Aquela noite era fantástica. Demétrio quis experimentar as sensações de horror, êxtase, humilhação, glória, poder e morte. Morreu, mesmo, no escuro. Tendo sentido a morte em seu interior físico, não pôde mais tirá-la de si. É o único morto, conscientemente morto, de que já ouvi falar nesta vida. A noite é Fantástica.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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