Na botica do Segadas — Farmácia Esperança — que pompeava a sua enorme tabuleta, na principal rua de Itaçaraí, cidade do estado de..., cabeça da respectiva comarca, reuniam-se todas as tardes um grupo seleto dos habitantes do lugarejo, para discutir letras, filosofia e artes.
Era esse grupo formado das seguinte pessoas: doutor Aristogen Tebano das Verdades, promotor público; doutor Joaquim Petronilho, médico clínico na comarca; Sebastião Canindé, sacristão da matriz; e o doutor Francisco Carlos Kauffman, austríaco e alveitar de uma grande fazenda de criação nos arredores. Dele, também fazia parte o proprietário da botica — o Segadas.
O espanhol Santiago Ximénez, principal barbeiro da localidade, proprietário do Salão Verdun, aparecia, às vezes, na tertúlia; recitava um pouco de Campoamor ou citava Escrich; mas despedia-se logo, a fim de ir para o botequim do Cunha, onde podia unir o útil ao agradável, isto é, juntar o parati ou a genebra ao poeta de sua paixão — Campoamor — ou ao romancista de sua admiração — Pérez Escrich. Na botica, não havia disso e a sua literatura necessitava de um acompanhamento de beberiques.
O presidente do grupo era espontaneamente o promotor que sempre tinha versos a recitar e questões literárias a propor. A bem querida dele era indagar se mais valia a forma que o fundo ou vice-versa; inclinava-se pelo último, por isso gostava muito de Casimiro de Abreu e de Fagundes Varela.
O doutor Petronilho não tinha opinião segura sobre o caso, tanto mais que, a não ser Bilac, ele não suportava outro poeta; entretanto, vivia possuído de particular admiração por Aristogen e a sua versalhada desenxabida. Coisas...
Sebastião Canindé era, pela forma, parnasiano da gema; mas os versos que publicava no jornal da localidade eram horrivelmente errados e rimados a martelo; eram piores do que os de Aristogen. Tinha as charadas por especialidade.
O austríaco não sabia nada dessas coisas. Lera os poetas de sua pátria, alguns alemães e italianos, a Bíblia, Shakespeare e o Dom Quixote.
Não percebia nada dessa história de épocas e escolas literárias. Ia à reunião para distrair-se.
Um belo dia, Aristogen lembrou aos companheiros:
— Vamos fundar uma Academia de Letras?
Canindé indagou:
— Daqui, do município?
— Sim, respondeu Aristogen. Vamos?
O doutor Petronilho observou:
— Quantos membros?
Aristogen acudiu logo:
— Quarenta, por certo!
O doutor Kauffman refletiu:
— Oh! Eu acho muito.
Aristogen objetou:
— Muito! Não há tal! Há, além dos residentes aqui nascidos ou não no lugar, muito filho do município ilustre que anda por aí. Olhe: o doutor Penido Veiga, nosso representante na Câmara Federal, é um fino intelectual; pode, portanto, fazer parte dela. O tenente Barnabé, que aqui nasceu, acaba de fazer com brilho o curso de aviação; pode também fazer parte. O Jesuíno, filho do Inácio, ali do "armazém", vive em destaque no tribunal de contas, para onde entrou depois de um concurso brilhante: está naturalmente indicado a ser um dos membros. E, assim, muitos outros.
Com sujeitos portadores de semelhantes títulos literários, Aristogen organizou a sua academia de letras de quarenta membros, porque ela não podia ficar por baixo das outras, inclusive a brasileira, tendo menos imortais que elas.
Veio o dia da instalação solene que, em falta de local mais adequado, teve lugar na barraca de lona do circo de cavalinhos que trabalhava na cidade, por aquela ocasião.
Os acadêmicos presentes, inclusive o barbeiro Ximénez e o austríaco Kauffman, que eram do número deles, sentaram-se ao redor de uma longa mesa, que fora colocada no centro do picadeiro.
Os convidados especiais tomaram lugar nas cadeiras, arrumadas na linha da circunferência que fechava o circulo das acrobacias, peloticas e correrias de cavalos. As arquibancadas, para o povo miúdo, entrada franca.
Uma charanga, a Banda Flor das Dores de Nossa Senhora, tocava à entrada da barraca, dobrados estridentes e polcas chorosas.
Aristogen tomou a presidência, tendo ao lado direito o presidente da câmara, coronel Manuel Pafúncio; e, à esquerda, o secretário geral, o sacristão Canindé.
Depois de lido o expediente, começou a pronunciar o seu discurso em linguagem castigada, porque, se não o era no verso, na prosa ele era parnasiano e clássico.
Começou:
— Senhoras: Após longo decurso de tempo, lamentavelmente riçado por dificuldades, impedimentos, estorvos grandes, que adversaram a instituição definitiva desta Academia — é possível, afinal, realizar o ato de posse de sua diretoria, e eu procurarei salientar a determinante fundamental deste Instituto.
Logo neste período, o doutor Petronilho observou baixinho ao austríaco:
— É castiço. Fala que nem o Aluísio. Não achas?
O austríaco respondeu em voz baixa também:
— Oh! Eu não sape essas coisas.
Aristogen continuou:
— Basta que, à fé sincera, eu vo-lo afirme: há, dentre os eleitos para esta Egrégia Companhia, os que desalentaram em meio da jornada; há os que se deixaram empolgar de tanta vaidade que já se sentem sobrelevados aos que lhes foram pares na eleição; há os que do alto do seu valor, gozando a convicção própria de serem olímpicos, supremos, sorriram, num sorriso complacente de superior condescendência, aos pigmeus que lhes buscaram a honra eminente do convívio. E, pois, urgente, inadiável detergir esta Academia.
Petronilho, ainda cochichando, confidenciou aos ouvidos do alemão:
— Não te dizia? É mais que o Aluisio; é o próprio Rui.
A assistência estava embasbacada com fraseado tão bonito, que, na sua maioria, ela mal compreendia.
Chegava ao final com este período:
— Se procedermos concorde ao padrão que ora vos proponho, embora fosse ele discutido às rebatinhas, estou certo que ganharão timbre de verdade as palavras refregentes de Canindé, de Barnabé, de Kauffman e outros, quando, d'alma inspirada, anteviram no apogeu, esta Academia, qual nem eu quisera!
Não teve tempo de sentar-se o orador, porque, no exato momento em que acabava a sua oração, os cavalos do circo, livrando-se das prisões que os subjugavam, invadiram a arena em que estavam os acadêmicos, e os afugentaram a todos eles, unicamente por ação de presença.
Nunca mais a Academia de Letras de Itaçaraí se reuniu.
Era esse grupo formado das seguinte pessoas: doutor Aristogen Tebano das Verdades, promotor público; doutor Joaquim Petronilho, médico clínico na comarca; Sebastião Canindé, sacristão da matriz; e o doutor Francisco Carlos Kauffman, austríaco e alveitar de uma grande fazenda de criação nos arredores. Dele, também fazia parte o proprietário da botica — o Segadas.
O espanhol Santiago Ximénez, principal barbeiro da localidade, proprietário do Salão Verdun, aparecia, às vezes, na tertúlia; recitava um pouco de Campoamor ou citava Escrich; mas despedia-se logo, a fim de ir para o botequim do Cunha, onde podia unir o útil ao agradável, isto é, juntar o parati ou a genebra ao poeta de sua paixão — Campoamor — ou ao romancista de sua admiração — Pérez Escrich. Na botica, não havia disso e a sua literatura necessitava de um acompanhamento de beberiques.
O presidente do grupo era espontaneamente o promotor que sempre tinha versos a recitar e questões literárias a propor. A bem querida dele era indagar se mais valia a forma que o fundo ou vice-versa; inclinava-se pelo último, por isso gostava muito de Casimiro de Abreu e de Fagundes Varela.
O doutor Petronilho não tinha opinião segura sobre o caso, tanto mais que, a não ser Bilac, ele não suportava outro poeta; entretanto, vivia possuído de particular admiração por Aristogen e a sua versalhada desenxabida. Coisas...
Sebastião Canindé era, pela forma, parnasiano da gema; mas os versos que publicava no jornal da localidade eram horrivelmente errados e rimados a martelo; eram piores do que os de Aristogen. Tinha as charadas por especialidade.
O austríaco não sabia nada dessas coisas. Lera os poetas de sua pátria, alguns alemães e italianos, a Bíblia, Shakespeare e o Dom Quixote.
Não percebia nada dessa história de épocas e escolas literárias. Ia à reunião para distrair-se.
Um belo dia, Aristogen lembrou aos companheiros:
— Vamos fundar uma Academia de Letras?
Canindé indagou:
— Daqui, do município?
— Sim, respondeu Aristogen. Vamos?
O doutor Petronilho observou:
— Quantos membros?
Aristogen acudiu logo:
— Quarenta, por certo!
O doutor Kauffman refletiu:
— Oh! Eu acho muito.
Aristogen objetou:
— Muito! Não há tal! Há, além dos residentes aqui nascidos ou não no lugar, muito filho do município ilustre que anda por aí. Olhe: o doutor Penido Veiga, nosso representante na Câmara Federal, é um fino intelectual; pode, portanto, fazer parte dela. O tenente Barnabé, que aqui nasceu, acaba de fazer com brilho o curso de aviação; pode também fazer parte. O Jesuíno, filho do Inácio, ali do "armazém", vive em destaque no tribunal de contas, para onde entrou depois de um concurso brilhante: está naturalmente indicado a ser um dos membros. E, assim, muitos outros.
Com sujeitos portadores de semelhantes títulos literários, Aristogen organizou a sua academia de letras de quarenta membros, porque ela não podia ficar por baixo das outras, inclusive a brasileira, tendo menos imortais que elas.
Veio o dia da instalação solene que, em falta de local mais adequado, teve lugar na barraca de lona do circo de cavalinhos que trabalhava na cidade, por aquela ocasião.
Os acadêmicos presentes, inclusive o barbeiro Ximénez e o austríaco Kauffman, que eram do número deles, sentaram-se ao redor de uma longa mesa, que fora colocada no centro do picadeiro.
Os convidados especiais tomaram lugar nas cadeiras, arrumadas na linha da circunferência que fechava o circulo das acrobacias, peloticas e correrias de cavalos. As arquibancadas, para o povo miúdo, entrada franca.
Uma charanga, a Banda Flor das Dores de Nossa Senhora, tocava à entrada da barraca, dobrados estridentes e polcas chorosas.
Aristogen tomou a presidência, tendo ao lado direito o presidente da câmara, coronel Manuel Pafúncio; e, à esquerda, o secretário geral, o sacristão Canindé.
Depois de lido o expediente, começou a pronunciar o seu discurso em linguagem castigada, porque, se não o era no verso, na prosa ele era parnasiano e clássico.
Começou:
— Senhoras: Após longo decurso de tempo, lamentavelmente riçado por dificuldades, impedimentos, estorvos grandes, que adversaram a instituição definitiva desta Academia — é possível, afinal, realizar o ato de posse de sua diretoria, e eu procurarei salientar a determinante fundamental deste Instituto.
Logo neste período, o doutor Petronilho observou baixinho ao austríaco:
— É castiço. Fala que nem o Aluísio. Não achas?
O austríaco respondeu em voz baixa também:
— Oh! Eu não sape essas coisas.
Aristogen continuou:
— Basta que, à fé sincera, eu vo-lo afirme: há, dentre os eleitos para esta Egrégia Companhia, os que desalentaram em meio da jornada; há os que se deixaram empolgar de tanta vaidade que já se sentem sobrelevados aos que lhes foram pares na eleição; há os que do alto do seu valor, gozando a convicção própria de serem olímpicos, supremos, sorriram, num sorriso complacente de superior condescendência, aos pigmeus que lhes buscaram a honra eminente do convívio. E, pois, urgente, inadiável detergir esta Academia.
Petronilho, ainda cochichando, confidenciou aos ouvidos do alemão:
— Não te dizia? É mais que o Aluisio; é o próprio Rui.
A assistência estava embasbacada com fraseado tão bonito, que, na sua maioria, ela mal compreendia.
Chegava ao final com este período:
— Se procedermos concorde ao padrão que ora vos proponho, embora fosse ele discutido às rebatinhas, estou certo que ganharão timbre de verdade as palavras refregentes de Canindé, de Barnabé, de Kauffman e outros, quando, d'alma inspirada, anteviram no apogeu, esta Academia, qual nem eu quisera!
Não teve tempo de sentar-se o orador, porque, no exato momento em que acabava a sua oração, os cavalos do circo, livrando-se das prisões que os subjugavam, invadiram a arena em que estavam os acadêmicos, e os afugentaram a todos eles, unicamente por ação de presença.
Nunca mais a Academia de Letras de Itaçaraí se reuniu.
Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama.
Lima Barreto. Histórias e sonhos. Belém/PA: Unama.
Publicado originalmente em 1920.
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