Saía do Hospital da Ressurreição, que fica em Valladolid, depois da Porta do Campo, um soldado que, por usar a espada como cajado, pela magreza de suas pernas e pela palidez de seu rosto, demonstrava claramente - embora não estivesse fazendo muito calor - que deveria ter transpirado em vinte dias tudo o que, com toda certeza, adquirira numa hora. Caminhava cambaleando, tropeçando a todo momento, como um convalescente e, ao transpor a porta da cidade, percebeu vindo em sua direção um amigo que não via fazia mais de seis meses. Este, benzendo-se como se tivesse visto alguma assombração, aproximou-se e lhe disse:
- Que aconteceu, senhor alferes Campuzano? É possível que esteja nesta terra? Eu o imaginava em Flandres, empunhando a lança, e não por estes lados, arrastando a espada. Que palidez, que fraqueza é essa?
Campuzano respondeu:
- Se estou ou não nesta terra, senhor licenciado Peralta, minha presença pode lhe dizer. Quanto às outras perguntas, nada tenho a responder, a não ser que estou saindo do hospital, onde suportei quarenta suadouros, por causa de uma mulher que escolhi para esposa, coisa que jamais deveria ter feito.
- Vossa mercê se casou? - perguntou Peralta.
- Sim, senhor - respondeu Campuzano.
- Se foi por amor - disse Peralta, acrescentando - tais casamentos trazem sempre junto o arrependimento.
- Não saberei dizer se foi ou não por amor - respondeu o alferes -, embora possa garantir que foi por amargor, pois do meu casamento, ou cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que as do corpo, para curá-las, me custaram quarenta suadouros, mas para as da alma não encontro um remédio que possa aliviá-las. Mas vossa mercê vai me perdoar: eu não posso manter conversas longas na rua. Em outro dia, mais comodamente, lhe contarei minhas aventuras, as mais diferentes e originais que vossa mercê já terá ouvido em todos seus longos dias.
- Não há de ser assim - disse o licenciado -, pois desejo que venha até minha morada; ali comeremos à vontade. Além disso, tenho comida própria para convalescentes, preparada para dois. Meu criado se contentará com um pastel. Se a sua convalescença permitir, umas fatias de presunto cordobês servirão para nos abrir o apetite. E ofereço isso de boa vontade, agora e todas as vezes que vossa mercê desejar.
Campuzano agradeceu-lhe, aceitou o convite e os oferecimentos. Foram ambos até San Llorente, onde assistiram à missa. Depois, Peralta levou o amigo até sua casa, dando-lhe o prometido e insistindo para que repetisse. Tendo ele acabado de comer, Peralta lhe pediu para narrar os acontecimentos que tanto o haviam mortificado. Campuzano não se fez de rogado e começou a falar:
- Vossa mercê deve se lembrar, senhor licenciado Peralta, como fui, nesta cidade, amigo do capitão Pedro de Herrera, que agora está em Flandres.
- Lembro bem - respondeu Peralta.
- Pois um dia - prosseguiu Campuzano -, quando mal terminávamos a refeição na pousada da Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de elegante aspecto, acompanhadas por duas criadas; uma delas logo se pôs a falar com o capitão, ambos encostados num canto da janela; a outra sentou-se numa cadeira junto à minha, cobrindo-se com o xale até o pescoço, não deixando ver do seu rosto mais do que a transparência do xale permitia. Embora eu lhe solicitasse gentilmente que se descobrisse, nada consegui.
“Para completar a história, seja de propósito ou por acaso, ela exibiu uma mão muito branca, coberta de magníficas joias. Eu me sentia importantíssimo com aquela grande corrente que vossa mercê talvez tenha conhecido, com meu chapéu de plumas e cordões, com o traje de cores e a arrogância de um soldado, tão imponente diante de minha própria vaidade que me sentia flutuar. Com tudo isso, roguei-lhe que se descobrisse, ao que ela respondeu:
- Não seja importuno. Tenho minha casa. Faça com que um pajem me siga, pois, embora eu seja mais honrada do que faz achar esta resposta, quero ver se sua discrição corresponde a sua galhardia; permitirei que me veja.
“Beijei-lhe as mãos pelo grande favor que me fazia e em troca lhe prometi montes de ouro. O capitão concluiu a sua conversa e elas se foram seguidas por meu criado. O capitão me disse que a dama lhe pedira para levar cartas a outro capitão, em Flandres. Dizia que eram para um primo, mas ele sabia que eram para seu amante. Eu fiquei abrasado pela mão de neve que havia visto e ansioso pelo rosto que desejava ver. Assim, no dià seguinte, guiado por meu pajem, fui visitá-la. Encontrei uma bela residência e uma mulher de quase trinta anos, a quem reconheci pelas mãos. Não era excepcionalmente bela, mas podia prender pelo trato, com conversa familiar, pois possuía um tom de voz tão suave e penetrante que chegava até a alma. Mantivemos longos e amorosos colóquios; alardeei, garganteei, prometi; dei enfim todas as demonstrações que me pareceram necessárias para tornar-me querido, mas ela parecia ter sido feita para ouvir maiores oferecimentos e razões. Ouvia, mas parecia não me acreditar. Para concluir, nossos colóquios passaram-se em banalidades durante quatro dias.
“Continuei a visitá-la, sem chegar, porém, a colher o fruto desejado. Nos momentos em que a visitei, sempre encontrei a casa livre; jamais notei traço de parentes fingidos ou amigos verdadeiros. Servia-a uma moça mais astuta do que ingênua.
“Tratando meus amores como soldado em vésperas de partida, apressei, finalmente, a senhora dona Estefânia de Caicedo - pois esse é o nome de quem me deixou assim -, que respondeu:
- Seria ingenuidade, alferes Campuzano, se eu quisesse vender-me a vossa mercê como santa; tenho sido pecadora e ainda sou, embora não dê motivos para que os vizinhos murmurem e os empregados comentem. Nem herdei coisa alguma de meus parentes, mas apesar disso o que tenho aqui em casa vale, bem contados, 2500 escudos; e isso em coisas que, vendidas, haverão de se converter em bom dinheiro. Com essa fortuna, procuro marido para me entregar, para obedecer e a quem, juntamente com o vínculo de minha vida, entregarei uma enorme solicitude em agradar e servir. Príncipe nenhum terá cozinheiro mais cuidadoso ou que melhor saiba acertar nos guisados.
"Sei ser um bom mordomo, um ótimo cozinheiro e melhor senhora na sala; na verdade, sei mandar e sei fazer com que me obedeçam. Nada desperdiço e economizo muito. O dinheiro não vale menos e sim mais quando é gasto sob minha orientação. A roupa branca que tenho, que é muita e da melhor qualidade, não foi adquirida em lojas ou com vendedores ambulantes; foi feita com estes dedos e com os das minhas criadas e, se fosse possível tecê-la em casa, assim o teríamos feito. Digo essas coisas sem modéstia, pois não há mal algum quando a necessidade nos obriga a dizê-las. Acrescento, finalmente, que procuro marido que me ampare, dirija e honre, e não amante que se aproveite e depois me injurie. Se vossa mercê souber apreciar, neste momento, a prenda que lhe é oferecida, estou a sua disposição, sujeita a tudo quanto vossa mercê obrigar, e isso sem colocar-me à venda, que é a mesma coisa que andar na língua dos casamenteiros. Não há nada melhor para se chegar a um acordo do que uma conversa entre as próprias partes.
"Eu, que estava com o juízo não na cabeça, mas sim nos calcanhares, julgando a felicidade ainda maior do que a imaginação me pintava, e sendo-me oferecida tamanha quantidade de bens - eu já os contemplava convertidos em dinheiro -, sem fazer mais comentários do que aqueles a que dava lugar a ventura, que me enfraquecia o raciocínio, respondi que me sentia muito alegre e afortunado por ter o céu me dado, quase que por milagre, tal companheira para fazê-ia senhora de minha vontade e dos meus bens, não tão poucos que não valessem junto com aquela corrente que usava no peito e outras pequenas jóias que estavam em casa, além das minhas galas de soldado, mais de dois mil ducados, que com os 2500 dela, somavam quantia mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e onde possuía alguma terra; tais haveres, convertidos em dinheiro, renderiam seus frutos com o tempo, permitindo-nos uma vida alegre e descansada. Em suma, naquela noite acertamos o casamento e nos despedimos de nossas vidas de solteiros; nos três dias de festas que vieram na Páscoa fizeram-se as declarações e no quarto dia nos casamos, estando presentes dois amigos meus e um rapaz que dizia ser primo dela. Tratei-o como a um parente, com palavras amáveis, como o foram as que ele dirigira a minha nova esposa; mas ele falava com intenção tão falsa e hipócrita que eu prefiro calar, porque, embora esteja dizendo somente verdades, não são verdades de confessionário, dessas que não podem deixar de ser ditas.
"O criado levou meu baú da minha morada para a casa de minha mulher. Encerrei ali, diante dela, a minha esplêndida corrente, mostrando-lhe outras três ou quatro, não do mesmo tamanho, porém da melhor qualidade, assim como três ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-lhe também as roupas e os chapéus, entregando-lhe, para as despesas da casa, os quatrocentos reais que possuía. Seis dias desfrutei calmamente a lua-de-mel, feito genro pobre em casa de sogro rico. Pisei caros tapetes, dormi sobre colchas de holanda, estive à luz de candelabros de prata.
"Almoçava na cama, levantando-me às onze horas, comendo de novo às doze e fazendo a sesta às duas. Dona Estefânia e sua criada excediam-se em cuidados e agrados. Meu criado, que até então fora lerdo e preguiçoso, se transformou num cervo.
"Nos momentos em que dona Estefânia não estava ao meu lado, era fácil achá-la na cozinha, solícita em preparar guisados que me despertassem o gosto e avivassem o apetite. Minhas camisas, colarinhos e lenços, pelo perfume que exalavam, pareciam um novo jardim de Aranjuez, banhados como eram em água perfumada por flor de laranjeira.
"Esses dias passaram voando como passam os anos sob o império do tempo. Por ver-me tão regalado e bem servido, se transformara em boa a má intenção com que iniciara aquela história. No fim deles, certa manhã, quando ainda estava no leito com dona Estefânia, bateram fortemente à porta. A criada surgiu à janela e disse:
- Oh! Seja bem-vinda! Veio antes do que esperávamos!
- Quem é que chegou, criatura? - perguntei.
- Quem? - ela respondeu. - Minha senhora, dona Clementa Bueso, acompanhada pelo senhor Lope Meléndez de Almendárez, dois criados e a ama Hortigosa.
- Corra, mulher, abra a porta, que já vou! - disse dona Estefânia à criada. - E você, meu senhor, pelo amor que tem por mim, não se assuste e nem responda em meu lugar a coisa alguma que ouvir contra mim.
- Mas quem é que vai se atrever a ofendê-la em minha presença? Diga que gente é essa que lhe causa tanta perturbação!
- Não tenho tempo para lhe responder - disse dona Estefânia. - Saiba apenas que tudo o que acontecer é fingimento e visa a certo objetivo, o qual saberá depois.
"Eu quis replicar, mas a senhora dona Clementa Bueso não permitiu, pois entrou no quarto arrastando a cauda do longo vestido verde todo enfeitado com cordões de ouro, capinha da mesma espécie, chapéu de plumas verdes, brancas e vermelhas e rico cinto de ouro. Metade do seu rosto estava oculto por um leve véu. Em sua companhia entrou o senhor Lope Meléndez de Almendárez, não menos elegante nem menos ricamente vestido.
"Dona Hortigosa, que foi a primeira a falar, exclamou:
- Jesus! Que é isto? Ocupando o leito da senhora Clementa e além do mais com um homem? Que milagres vejo nesta casa! Não há dúvida de que dona Estefânia trocou os pés pelas mãos, abusando da amizade de minha senhora.
- Tem razão, dona Hortigosa, mas a culpa é minha. Que nunca mais eu me aborreça novamente por arranjar amigas que só sabem ser amigas quando precisam!
"A tudo isso, dona Estefânia respondeu:
- Não se aborreça, dona Clementa Bueso, e acredite que não é sem mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa; quando souber da verdade, sei que serei desculpada e vossa mercê não terá motivo nenhum para queixa.
"A essa altura eu já havia vestido a calça e a camisa. Dona Estefânia, pegando-me pelo braço, levou-me a outro quarto e ali me disse que aquela sua amiga desejava enganar o senhor Lope, com o qual pretendia se casar, e que precisava fazer com que ele acreditasse que aquela casa e tudo o que havia nela lhe pertencia, pois ela pretendia fazer disso o seu dote. Depois do casamento realizado, pouco importava que descobrissem a artimanha, pois dona Clementa confiava no grande amor que lhe tinha o senhor Lope.
- Logo ela vai me devolver tudo. Não se deve levá-la a mal e nem a qualquer outra mulher que procure marido honrado, ainda que por meio de um ardil.
"Eu lhe respondi que era prova de uma grande amizade o que desejava fazer e que primeiro pensasse bem, porque depois poderia precisar, sem ter necessidade, recorrer à justiça para reaver seus bens. Ela, porém, respondeu com tantas e tais razões, mostrando quantas coisas a obrigavam a servir a dona Clementa, coisas de pouca importância na verdade, que, embora de má vontade e com remorso, concordei com seu desejo. Ela me garantiu que o plano duraria somente oito dias, durante os quais ficaríamos em casa de outra amiga sua. Acabamos de nos vestir e ela, despedindo-se de dona Clementa Bueso e do senhor Lope Meléndez de Almendárez, disse ao meu criado que carregasse o baú e a seguisse. Eu também a segui, sem me despedir de ninguém.
"Dona Estefânia parou em casa de uma amiga e, antes que entrássemos, passou lá dentro um bom tempo falando com ela. Depois apareceu uma criada mandando que entrássemos, eu e o criado. Ela nos levou a um pequeno aposento, onde havia duas camas tão juntas que pareciam ser uma só; não havia espaço para separá-las e as cobertas pareciam beijar-se. Ali ficamos por seis dias e em todos eles não houve uma única hora em que não tivéssemos alguma discussão. Eu lhe falava da loucura que fizera em ter deixado a casa e seus bens, ainda que fosse para sua própria mãe. Durante as discussões, eu ia e vinha pelo quarto, tanto que a dona da casa, num dia em que dona Estefânia fora ver como andavam as coisas, quis saber qual era a razão que me levava a discutir tanto com ela e por que tanto a ofendia ao lhe dizer que o que fizera era mais idiotice do que amizade perfeita. Eu lhe contei toda a história, falei que havia me casado com dona Estefânia e falei do dote que ela trouxera.
"Quando lhe falei da grande bobagem de deixar a casa para dona Clementa, embora fosse com a intenção de conseguir um marido da importância do senhor Lope, ela começou a se benzer e a persignar-se com rapidez e com tantos "ai, Jesus!, que mulher!" que eu não pude deixar de ficar muito preocupado. Ela então me disse:
- Senhor alferes, não sei se vou contra minha consciência ao lhe contar o que também me pesaria se ficasse calada. Mas, por Deus e pelo destino, seja lá o que for, que viva a verdade e morra a mentira! E a verdade é que dona Clementa Bueso é a verdadeira dona da casa e dos bens que lhe deram como dote; e mentira foi tudo o que lhe contou dona Estefânia. Ela não possuía casa, nem bens, nem outro vestido a não ser aquele que carrega no corpo. E, para tornar viável tudo isso, dona Clementa resolveu visitar um parente em Plasencia e dali foi fazer uma novena para Nossa Senhora de Guadalupe. Nesse espaço de tempo deixou dona Estefânia cuidando de sua casa, pois elas são realmente boas amigas.
"Claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois afinal soube arranjar como marido uma pessoa como o senhor alferes.
"Aqui terminou a conversa dela e começou meu desespero. E, sem dúvida, ele teria se prolongado se meu anjo da guarda não acorresse dizendo-me para não esquecer que era cristão e que o maior pecado dos homens era o desespero, por ser pecado dos demônios. Essa boa inspiração me confortou um pouco, mas não impediu que apanhasse a capa e a espada e saísse à procura de dona Estefânia, com intenção de lhe dar um exemplar castigo; mas o acaso, que não saberei dizer se piora ou melhora as coisas, quis que eu não a encontrasse em lugar nenhum onde pensava encontrá-la.
"Fui a San Llorente e encomendei-me à Nossa Senhora; sentei num banco e o desgosto me fez cair num sono tão pesado que não despertaria dele tão cedo se não me sacudissem. Fui cheio de pensamentos e de aflição à casa de dona Clementa; encontrei-a tão à vontade como senhora que era de sua casa, e não ousei dizer-lhe nada porque o senhor Lope estava presente. Voltei à casa de minha hospedeira, que me disse haver contado a dona Estefânia como eu já sabia de toda a sua falsidade e que ela lhe havia perguntado que cara eu fizera com a notícia. A criada havia lhe respondido que uma cara muito má e que, ao que lhe parecia, eu saíra para procurá-la com péssimas intenções. Disse, finalmente, que dona Estefânia levara tudo o que estava no baú, sem deixar nele uma só peça de roupa.
"Aí é que foram elas! Deus me tinha outra vez em suas mãos. Fui ver o baú e achei-o aberto, como um túmulo à espera de um cadáver, que poderia muito bem ter sido o meu se não tivesse calma para sentir e ponderar tamanha desgraça.
- Foi bem esperta - disse nesse momento o licenciado Peralta -, por ter levado tantos cintos e correntes, pois como se diz, todas as dores são dores... etc., etc.
- Não me importei com isso - respondeu o alferes -, pois também poderei dizer: "Senhor Simueque pensou que me enganava com sua filha vesga, mas pela vontade de Deus eu sou coxo".
- Não sei por que vossa mercê está dizendo isso - respondeu Peralta.
- Acontece - disse o alferes - que aquele embrulho, aquele conjunto de correntes, cintos e brincos poderia valer quando muito dez ou doze escudos.
- Isso não é possível - exclamou o licenciado -, só a corrente que o senhor usava no pescoço parecia valer mais de duzentos ducados.
- Assim seria - respondeu o alferes -, se a verdade correspondesse à aparência; porém, como nem tudo o que reluz é ouro, as correntes, os cintos, os brincos e outras joias eram apenas imitações. Estavam tão bem-feitas que somente o toque ou o fogo poderiam revelar sua qualidade.
- Dessa forma - disse o licenciado -, houve empate nesse jogo entre vossa mercê e a senhora dona Estefânia?
- E de tal maneira - respondeu o alferes -, que poderia voltar a baralhar as cartas. Mas o principal problema, senhor licenciado, é que ela poderá se desfazer de minhas joias e eu não poderei sair do laço em que cai, pois, embora me pese muito, ela é minha mulher.
- Dê graças a Deus, Campuzano - disse Peralta -, pois ela foi embora pela própria vontade e vossa mercê não tem a obrigação de ir buscá-la.
- Verdade - respondeu o alferes -, mas com tudo isso, embora não a procure, a tenho sempre no pensamento, e onde quer que eu vá, a afronta vai estar presente.
- Não sei o que responder - disse Peralta -, a não ser trazer a sua memória dois versos de Petrarca, que dizem:
Che chi prende diletto di far frode,
non s'ha di lamentar s'altro I'inganna.
O que em nossa língua quer dizer: "Aquele que tem o costume e gosto de enganar os outros não deve se queixar quando é enganado".
- Não me queixo - respondeu o alferes -, apenas me lastimo, pois o culpado não deixa de sentir a pena do castigo somente por reconhecer a culpa. Tentei enganar, bem sei, e fui enganado. Feriram-me com minhas próprias armas, mas não posso evitar que esses sentimentos me assaltem. Finalmente, o que mais importa na minha história, se é que posso chamar assim as minhas aventuras, é ter sabido que dona Estefânia partiu com o primo, o mesmo que se encontrava em nosso casamento e que tempos atrás havia sido seu amigo para qualquer coisa. Eu não quis procurá-la para não completar minha desgraça. Mudei de casa e de cabelo em poucos dias, pois começaram a cair os pelos de minhas sobrancelhas, dos chios e pouco a pouco eles se foram; tornei-me calvo antes do tempo: tive uma doença chamada alopecia, conhecida por outro nome mais claro, que é calvície. Encontrei-me verdadeiramente liso: não possuía cabelos para pentear nem dinheiro para gastar. A doença caminhou ao lado da minha miséria e, como a pobreza atropela a honra e leva uns à forca, outros ao hospital e ainda faz outros bater às portas dos inimigos com súplicas e submissões, o que é uma das maiores desgraças que podem acontecer a um infeliz, e por não ter podido garantir as roupas que me haveriam de proteger e assegurar a saúde, ao chegar o tempo em que se dão os suadouros no Hospital da Ressurreição, me dirigi para lá e tomei quarenta suadouros. Dizem que sararei se me tratar; espada ainda possuo, o resto ficará nas mãos de Deus.
- Que aconteceu, senhor alferes Campuzano? É possível que esteja nesta terra? Eu o imaginava em Flandres, empunhando a lança, e não por estes lados, arrastando a espada. Que palidez, que fraqueza é essa?
Campuzano respondeu:
- Se estou ou não nesta terra, senhor licenciado Peralta, minha presença pode lhe dizer. Quanto às outras perguntas, nada tenho a responder, a não ser que estou saindo do hospital, onde suportei quarenta suadouros, por causa de uma mulher que escolhi para esposa, coisa que jamais deveria ter feito.
- Vossa mercê se casou? - perguntou Peralta.
- Sim, senhor - respondeu Campuzano.
- Se foi por amor - disse Peralta, acrescentando - tais casamentos trazem sempre junto o arrependimento.
- Não saberei dizer se foi ou não por amor - respondeu o alferes -, embora possa garantir que foi por amargor, pois do meu casamento, ou cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que as do corpo, para curá-las, me custaram quarenta suadouros, mas para as da alma não encontro um remédio que possa aliviá-las. Mas vossa mercê vai me perdoar: eu não posso manter conversas longas na rua. Em outro dia, mais comodamente, lhe contarei minhas aventuras, as mais diferentes e originais que vossa mercê já terá ouvido em todos seus longos dias.
- Não há de ser assim - disse o licenciado -, pois desejo que venha até minha morada; ali comeremos à vontade. Além disso, tenho comida própria para convalescentes, preparada para dois. Meu criado se contentará com um pastel. Se a sua convalescença permitir, umas fatias de presunto cordobês servirão para nos abrir o apetite. E ofereço isso de boa vontade, agora e todas as vezes que vossa mercê desejar.
Campuzano agradeceu-lhe, aceitou o convite e os oferecimentos. Foram ambos até San Llorente, onde assistiram à missa. Depois, Peralta levou o amigo até sua casa, dando-lhe o prometido e insistindo para que repetisse. Tendo ele acabado de comer, Peralta lhe pediu para narrar os acontecimentos que tanto o haviam mortificado. Campuzano não se fez de rogado e começou a falar:
- Vossa mercê deve se lembrar, senhor licenciado Peralta, como fui, nesta cidade, amigo do capitão Pedro de Herrera, que agora está em Flandres.
- Lembro bem - respondeu Peralta.
- Pois um dia - prosseguiu Campuzano -, quando mal terminávamos a refeição na pousada da Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de elegante aspecto, acompanhadas por duas criadas; uma delas logo se pôs a falar com o capitão, ambos encostados num canto da janela; a outra sentou-se numa cadeira junto à minha, cobrindo-se com o xale até o pescoço, não deixando ver do seu rosto mais do que a transparência do xale permitia. Embora eu lhe solicitasse gentilmente que se descobrisse, nada consegui.
“Para completar a história, seja de propósito ou por acaso, ela exibiu uma mão muito branca, coberta de magníficas joias. Eu me sentia importantíssimo com aquela grande corrente que vossa mercê talvez tenha conhecido, com meu chapéu de plumas e cordões, com o traje de cores e a arrogância de um soldado, tão imponente diante de minha própria vaidade que me sentia flutuar. Com tudo isso, roguei-lhe que se descobrisse, ao que ela respondeu:
- Não seja importuno. Tenho minha casa. Faça com que um pajem me siga, pois, embora eu seja mais honrada do que faz achar esta resposta, quero ver se sua discrição corresponde a sua galhardia; permitirei que me veja.
“Beijei-lhe as mãos pelo grande favor que me fazia e em troca lhe prometi montes de ouro. O capitão concluiu a sua conversa e elas se foram seguidas por meu criado. O capitão me disse que a dama lhe pedira para levar cartas a outro capitão, em Flandres. Dizia que eram para um primo, mas ele sabia que eram para seu amante. Eu fiquei abrasado pela mão de neve que havia visto e ansioso pelo rosto que desejava ver. Assim, no dià seguinte, guiado por meu pajem, fui visitá-la. Encontrei uma bela residência e uma mulher de quase trinta anos, a quem reconheci pelas mãos. Não era excepcionalmente bela, mas podia prender pelo trato, com conversa familiar, pois possuía um tom de voz tão suave e penetrante que chegava até a alma. Mantivemos longos e amorosos colóquios; alardeei, garganteei, prometi; dei enfim todas as demonstrações que me pareceram necessárias para tornar-me querido, mas ela parecia ter sido feita para ouvir maiores oferecimentos e razões. Ouvia, mas parecia não me acreditar. Para concluir, nossos colóquios passaram-se em banalidades durante quatro dias.
“Continuei a visitá-la, sem chegar, porém, a colher o fruto desejado. Nos momentos em que a visitei, sempre encontrei a casa livre; jamais notei traço de parentes fingidos ou amigos verdadeiros. Servia-a uma moça mais astuta do que ingênua.
“Tratando meus amores como soldado em vésperas de partida, apressei, finalmente, a senhora dona Estefânia de Caicedo - pois esse é o nome de quem me deixou assim -, que respondeu:
- Seria ingenuidade, alferes Campuzano, se eu quisesse vender-me a vossa mercê como santa; tenho sido pecadora e ainda sou, embora não dê motivos para que os vizinhos murmurem e os empregados comentem. Nem herdei coisa alguma de meus parentes, mas apesar disso o que tenho aqui em casa vale, bem contados, 2500 escudos; e isso em coisas que, vendidas, haverão de se converter em bom dinheiro. Com essa fortuna, procuro marido para me entregar, para obedecer e a quem, juntamente com o vínculo de minha vida, entregarei uma enorme solicitude em agradar e servir. Príncipe nenhum terá cozinheiro mais cuidadoso ou que melhor saiba acertar nos guisados.
"Sei ser um bom mordomo, um ótimo cozinheiro e melhor senhora na sala; na verdade, sei mandar e sei fazer com que me obedeçam. Nada desperdiço e economizo muito. O dinheiro não vale menos e sim mais quando é gasto sob minha orientação. A roupa branca que tenho, que é muita e da melhor qualidade, não foi adquirida em lojas ou com vendedores ambulantes; foi feita com estes dedos e com os das minhas criadas e, se fosse possível tecê-la em casa, assim o teríamos feito. Digo essas coisas sem modéstia, pois não há mal algum quando a necessidade nos obriga a dizê-las. Acrescento, finalmente, que procuro marido que me ampare, dirija e honre, e não amante que se aproveite e depois me injurie. Se vossa mercê souber apreciar, neste momento, a prenda que lhe é oferecida, estou a sua disposição, sujeita a tudo quanto vossa mercê obrigar, e isso sem colocar-me à venda, que é a mesma coisa que andar na língua dos casamenteiros. Não há nada melhor para se chegar a um acordo do que uma conversa entre as próprias partes.
"Eu, que estava com o juízo não na cabeça, mas sim nos calcanhares, julgando a felicidade ainda maior do que a imaginação me pintava, e sendo-me oferecida tamanha quantidade de bens - eu já os contemplava convertidos em dinheiro -, sem fazer mais comentários do que aqueles a que dava lugar a ventura, que me enfraquecia o raciocínio, respondi que me sentia muito alegre e afortunado por ter o céu me dado, quase que por milagre, tal companheira para fazê-ia senhora de minha vontade e dos meus bens, não tão poucos que não valessem junto com aquela corrente que usava no peito e outras pequenas jóias que estavam em casa, além das minhas galas de soldado, mais de dois mil ducados, que com os 2500 dela, somavam quantia mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e onde possuía alguma terra; tais haveres, convertidos em dinheiro, renderiam seus frutos com o tempo, permitindo-nos uma vida alegre e descansada. Em suma, naquela noite acertamos o casamento e nos despedimos de nossas vidas de solteiros; nos três dias de festas que vieram na Páscoa fizeram-se as declarações e no quarto dia nos casamos, estando presentes dois amigos meus e um rapaz que dizia ser primo dela. Tratei-o como a um parente, com palavras amáveis, como o foram as que ele dirigira a minha nova esposa; mas ele falava com intenção tão falsa e hipócrita que eu prefiro calar, porque, embora esteja dizendo somente verdades, não são verdades de confessionário, dessas que não podem deixar de ser ditas.
"O criado levou meu baú da minha morada para a casa de minha mulher. Encerrei ali, diante dela, a minha esplêndida corrente, mostrando-lhe outras três ou quatro, não do mesmo tamanho, porém da melhor qualidade, assim como três ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-lhe também as roupas e os chapéus, entregando-lhe, para as despesas da casa, os quatrocentos reais que possuía. Seis dias desfrutei calmamente a lua-de-mel, feito genro pobre em casa de sogro rico. Pisei caros tapetes, dormi sobre colchas de holanda, estive à luz de candelabros de prata.
"Almoçava na cama, levantando-me às onze horas, comendo de novo às doze e fazendo a sesta às duas. Dona Estefânia e sua criada excediam-se em cuidados e agrados. Meu criado, que até então fora lerdo e preguiçoso, se transformou num cervo.
"Nos momentos em que dona Estefânia não estava ao meu lado, era fácil achá-la na cozinha, solícita em preparar guisados que me despertassem o gosto e avivassem o apetite. Minhas camisas, colarinhos e lenços, pelo perfume que exalavam, pareciam um novo jardim de Aranjuez, banhados como eram em água perfumada por flor de laranjeira.
"Esses dias passaram voando como passam os anos sob o império do tempo. Por ver-me tão regalado e bem servido, se transformara em boa a má intenção com que iniciara aquela história. No fim deles, certa manhã, quando ainda estava no leito com dona Estefânia, bateram fortemente à porta. A criada surgiu à janela e disse:
- Oh! Seja bem-vinda! Veio antes do que esperávamos!
- Quem é que chegou, criatura? - perguntei.
- Quem? - ela respondeu. - Minha senhora, dona Clementa Bueso, acompanhada pelo senhor Lope Meléndez de Almendárez, dois criados e a ama Hortigosa.
- Corra, mulher, abra a porta, que já vou! - disse dona Estefânia à criada. - E você, meu senhor, pelo amor que tem por mim, não se assuste e nem responda em meu lugar a coisa alguma que ouvir contra mim.
- Mas quem é que vai se atrever a ofendê-la em minha presença? Diga que gente é essa que lhe causa tanta perturbação!
- Não tenho tempo para lhe responder - disse dona Estefânia. - Saiba apenas que tudo o que acontecer é fingimento e visa a certo objetivo, o qual saberá depois.
"Eu quis replicar, mas a senhora dona Clementa Bueso não permitiu, pois entrou no quarto arrastando a cauda do longo vestido verde todo enfeitado com cordões de ouro, capinha da mesma espécie, chapéu de plumas verdes, brancas e vermelhas e rico cinto de ouro. Metade do seu rosto estava oculto por um leve véu. Em sua companhia entrou o senhor Lope Meléndez de Almendárez, não menos elegante nem menos ricamente vestido.
"Dona Hortigosa, que foi a primeira a falar, exclamou:
- Jesus! Que é isto? Ocupando o leito da senhora Clementa e além do mais com um homem? Que milagres vejo nesta casa! Não há dúvida de que dona Estefânia trocou os pés pelas mãos, abusando da amizade de minha senhora.
- Tem razão, dona Hortigosa, mas a culpa é minha. Que nunca mais eu me aborreça novamente por arranjar amigas que só sabem ser amigas quando precisam!
"A tudo isso, dona Estefânia respondeu:
- Não se aborreça, dona Clementa Bueso, e acredite que não é sem mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa; quando souber da verdade, sei que serei desculpada e vossa mercê não terá motivo nenhum para queixa.
"A essa altura eu já havia vestido a calça e a camisa. Dona Estefânia, pegando-me pelo braço, levou-me a outro quarto e ali me disse que aquela sua amiga desejava enganar o senhor Lope, com o qual pretendia se casar, e que precisava fazer com que ele acreditasse que aquela casa e tudo o que havia nela lhe pertencia, pois ela pretendia fazer disso o seu dote. Depois do casamento realizado, pouco importava que descobrissem a artimanha, pois dona Clementa confiava no grande amor que lhe tinha o senhor Lope.
- Logo ela vai me devolver tudo. Não se deve levá-la a mal e nem a qualquer outra mulher que procure marido honrado, ainda que por meio de um ardil.
"Eu lhe respondi que era prova de uma grande amizade o que desejava fazer e que primeiro pensasse bem, porque depois poderia precisar, sem ter necessidade, recorrer à justiça para reaver seus bens. Ela, porém, respondeu com tantas e tais razões, mostrando quantas coisas a obrigavam a servir a dona Clementa, coisas de pouca importância na verdade, que, embora de má vontade e com remorso, concordei com seu desejo. Ela me garantiu que o plano duraria somente oito dias, durante os quais ficaríamos em casa de outra amiga sua. Acabamos de nos vestir e ela, despedindo-se de dona Clementa Bueso e do senhor Lope Meléndez de Almendárez, disse ao meu criado que carregasse o baú e a seguisse. Eu também a segui, sem me despedir de ninguém.
"Dona Estefânia parou em casa de uma amiga e, antes que entrássemos, passou lá dentro um bom tempo falando com ela. Depois apareceu uma criada mandando que entrássemos, eu e o criado. Ela nos levou a um pequeno aposento, onde havia duas camas tão juntas que pareciam ser uma só; não havia espaço para separá-las e as cobertas pareciam beijar-se. Ali ficamos por seis dias e em todos eles não houve uma única hora em que não tivéssemos alguma discussão. Eu lhe falava da loucura que fizera em ter deixado a casa e seus bens, ainda que fosse para sua própria mãe. Durante as discussões, eu ia e vinha pelo quarto, tanto que a dona da casa, num dia em que dona Estefânia fora ver como andavam as coisas, quis saber qual era a razão que me levava a discutir tanto com ela e por que tanto a ofendia ao lhe dizer que o que fizera era mais idiotice do que amizade perfeita. Eu lhe contei toda a história, falei que havia me casado com dona Estefânia e falei do dote que ela trouxera.
"Quando lhe falei da grande bobagem de deixar a casa para dona Clementa, embora fosse com a intenção de conseguir um marido da importância do senhor Lope, ela começou a se benzer e a persignar-se com rapidez e com tantos "ai, Jesus!, que mulher!" que eu não pude deixar de ficar muito preocupado. Ela então me disse:
- Senhor alferes, não sei se vou contra minha consciência ao lhe contar o que também me pesaria se ficasse calada. Mas, por Deus e pelo destino, seja lá o que for, que viva a verdade e morra a mentira! E a verdade é que dona Clementa Bueso é a verdadeira dona da casa e dos bens que lhe deram como dote; e mentira foi tudo o que lhe contou dona Estefânia. Ela não possuía casa, nem bens, nem outro vestido a não ser aquele que carrega no corpo. E, para tornar viável tudo isso, dona Clementa resolveu visitar um parente em Plasencia e dali foi fazer uma novena para Nossa Senhora de Guadalupe. Nesse espaço de tempo deixou dona Estefânia cuidando de sua casa, pois elas são realmente boas amigas.
"Claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois afinal soube arranjar como marido uma pessoa como o senhor alferes.
"Aqui terminou a conversa dela e começou meu desespero. E, sem dúvida, ele teria se prolongado se meu anjo da guarda não acorresse dizendo-me para não esquecer que era cristão e que o maior pecado dos homens era o desespero, por ser pecado dos demônios. Essa boa inspiração me confortou um pouco, mas não impediu que apanhasse a capa e a espada e saísse à procura de dona Estefânia, com intenção de lhe dar um exemplar castigo; mas o acaso, que não saberei dizer se piora ou melhora as coisas, quis que eu não a encontrasse em lugar nenhum onde pensava encontrá-la.
"Fui a San Llorente e encomendei-me à Nossa Senhora; sentei num banco e o desgosto me fez cair num sono tão pesado que não despertaria dele tão cedo se não me sacudissem. Fui cheio de pensamentos e de aflição à casa de dona Clementa; encontrei-a tão à vontade como senhora que era de sua casa, e não ousei dizer-lhe nada porque o senhor Lope estava presente. Voltei à casa de minha hospedeira, que me disse haver contado a dona Estefânia como eu já sabia de toda a sua falsidade e que ela lhe havia perguntado que cara eu fizera com a notícia. A criada havia lhe respondido que uma cara muito má e que, ao que lhe parecia, eu saíra para procurá-la com péssimas intenções. Disse, finalmente, que dona Estefânia levara tudo o que estava no baú, sem deixar nele uma só peça de roupa.
"Aí é que foram elas! Deus me tinha outra vez em suas mãos. Fui ver o baú e achei-o aberto, como um túmulo à espera de um cadáver, que poderia muito bem ter sido o meu se não tivesse calma para sentir e ponderar tamanha desgraça.
- Foi bem esperta - disse nesse momento o licenciado Peralta -, por ter levado tantos cintos e correntes, pois como se diz, todas as dores são dores... etc., etc.
- Não me importei com isso - respondeu o alferes -, pois também poderei dizer: "Senhor Simueque pensou que me enganava com sua filha vesga, mas pela vontade de Deus eu sou coxo".
- Não sei por que vossa mercê está dizendo isso - respondeu Peralta.
- Acontece - disse o alferes - que aquele embrulho, aquele conjunto de correntes, cintos e brincos poderia valer quando muito dez ou doze escudos.
- Isso não é possível - exclamou o licenciado -, só a corrente que o senhor usava no pescoço parecia valer mais de duzentos ducados.
- Assim seria - respondeu o alferes -, se a verdade correspondesse à aparência; porém, como nem tudo o que reluz é ouro, as correntes, os cintos, os brincos e outras joias eram apenas imitações. Estavam tão bem-feitas que somente o toque ou o fogo poderiam revelar sua qualidade.
- Dessa forma - disse o licenciado -, houve empate nesse jogo entre vossa mercê e a senhora dona Estefânia?
- E de tal maneira - respondeu o alferes -, que poderia voltar a baralhar as cartas. Mas o principal problema, senhor licenciado, é que ela poderá se desfazer de minhas joias e eu não poderei sair do laço em que cai, pois, embora me pese muito, ela é minha mulher.
- Dê graças a Deus, Campuzano - disse Peralta -, pois ela foi embora pela própria vontade e vossa mercê não tem a obrigação de ir buscá-la.
- Verdade - respondeu o alferes -, mas com tudo isso, embora não a procure, a tenho sempre no pensamento, e onde quer que eu vá, a afronta vai estar presente.
- Não sei o que responder - disse Peralta -, a não ser trazer a sua memória dois versos de Petrarca, que dizem:
Che chi prende diletto di far frode,
non s'ha di lamentar s'altro I'inganna.
O que em nossa língua quer dizer: "Aquele que tem o costume e gosto de enganar os outros não deve se queixar quando é enganado".
- Não me queixo - respondeu o alferes -, apenas me lastimo, pois o culpado não deixa de sentir a pena do castigo somente por reconhecer a culpa. Tentei enganar, bem sei, e fui enganado. Feriram-me com minhas próprias armas, mas não posso evitar que esses sentimentos me assaltem. Finalmente, o que mais importa na minha história, se é que posso chamar assim as minhas aventuras, é ter sabido que dona Estefânia partiu com o primo, o mesmo que se encontrava em nosso casamento e que tempos atrás havia sido seu amigo para qualquer coisa. Eu não quis procurá-la para não completar minha desgraça. Mudei de casa e de cabelo em poucos dias, pois começaram a cair os pelos de minhas sobrancelhas, dos chios e pouco a pouco eles se foram; tornei-me calvo antes do tempo: tive uma doença chamada alopecia, conhecida por outro nome mais claro, que é calvície. Encontrei-me verdadeiramente liso: não possuía cabelos para pentear nem dinheiro para gastar. A doença caminhou ao lado da minha miséria e, como a pobreza atropela a honra e leva uns à forca, outros ao hospital e ainda faz outros bater às portas dos inimigos com súplicas e submissões, o que é uma das maiores desgraças que podem acontecer a um infeliz, e por não ter podido garantir as roupas que me haveriam de proteger e assegurar a saúde, ao chegar o tempo em que se dão os suadouros no Hospital da Ressurreição, me dirigi para lá e tomei quarenta suadouros. Dizem que sararei se me tratar; espada ainda possuo, o resto ficará nas mãos de Deus.
Fonte:
Contos Universais (coleção Para gostar de ler vol. 11). 2005.
Contos Universais (coleção Para gostar de ler vol. 11). 2005.
(Tradução de Mustafa Yazbek)
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