quinta-feira, 25 de março de 2021

Rachel de Queiroz (O jogador de sinuca)


Quem não tem fascinação por Minas Gerais, suas cidades históricas, o mistério de suas velhas igrejas, os milagres do Bom Jesus de Congonhas?

Mas aqui se vai falar acerca de alguém que nem é santo de pedra-sabão nem querubim banhado a ouro, mas criatura como nós, jogador de sinuca na cidade de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais.

E entre parênteses façamos um pequeno louvor ao nobre jogo de sinuca, que justamente me foi revelado pelo jogador herói desta história, num meio-dia de sol quente, à sombra do salão do Bar Campestre, na dita cidade de Lafaiete.

Vínhamos nós comendo légua e paisagem desde Juiz de Fora e paramos à porta do bar de nome tão convidativo em busca de um refrigerante. Na rua ficara o jipe (então novidade), empoeirado e de ar diligente, sofrendo uma vistoria minuciosa por parte de uma dúzia de moleques. O bar tinha tudo, ou quase tudo: cerveja gelada e telefone para o Rio, pastéis de carne de porco e duas mesas de sinuca novas em folha, com todos os seus acessórios.

Ao chegarmos estavam ambas as mesas vazias. Porém, mal nos sentáramos diante da cerveja e dos pastéis, entram salão adentro dois aficionados, combinando uma partida.

O primeiro deles era um moço alto, cara de menino, fala baixa e terno tropical cinza à moda do tempo, as calças à altura do estômago. Apesar dessas demasias de janota, dava uma impressão de timidez, quase de gaucherie, que fazia a gente sentir vontade de lhe rogar que não se atirasse com tanta inocência às goelas do leão.

E o leão era o outro: de pequeno só tinha o tamanho, as mãos e os pés. No mais era gigante — nos passos, na prosápia, na cabeleira negra ondulada, no perfil de índio americano, na voz grave e arrogante, nos sapatos cor de abóbora com solas de borracha.

Já da porta, desabotoava o jaquetão azul-marinho, como um magarefe ansioso de dar serviço à musculatura, embora musculatura não tivesse, malgrado a sugestão de Hércules que passava aos outros — Hércules magro e miúdo.

Tirando o casaco todo, exibiu a camisa de seda amarela, os suspensórios transparentes de matéria plástica, o cinturão idem; e não só essas utilidades brilhantes e inofensivas exibia, como também um revólver de verdade, metido num coldre de couro estampado, e de cano tão comprido que lhe descia quadril abaixo, quase até a coxa.

Posto em mangas de camisa, atravessou a sala, desafivelou o cinturão, retirou a arma e a depositou na caixa. Nesse gesto, como em tudo, nunca vi ninguém produzir tal impressão de eficiência. E então o cerimonial com que iniciou o jogo — a carteira de cigarros e os fósforos equilibrados à borda da mesa; as mangas da camisa magistralmente arregaçadas; o primeiro cigarro aceso com lentidão e os anéis regulares de fumaça que subiram para o forro; depois a escolha dos tacos: media-os, apalpava-os, tateava-lhes as pontas com a polpa dos dedos — só os faltava lamber. Em tudo traía o profissional ou, no mínimo, um campeão de amadores. Chegava a ser um massacre premeditado a escolha do parceiro, que, do outro lado da mesa, parecia encolher-se, depois de apanhar ao acaso um taco qualquer e o esfregar automaticamente no giz, sem tirar os olhos dos preparativos infernais do contendor.

Bem, claro que já se adivinhou o desenlace do caso: o campeão, o famanaz, acabou apanhando como um judas de capim. Apanhou de tal jeito que, na primeira partida, não fez um ponto, na segunda nenhum também, e a terceira, abandonou-a no meio, quando o escore já estava em 49 a 0.

Contudo, esta história não mereceria ser contada se não fora a atitude da criatura no decorrer daquelas três partidas. Era um fenômeno, era um teatro, era o príncipe Hamlet da Dinamarca exibindo paixões e desdéns.

Do começo jogava a bem-dizer com severidade, disposto a dar uma lição de sinuca clássica ao atrevido rapazelho que, embora o ultrapassasse quase meio metro em altura — tal a força moral do adversário —, parecia por isso mesmo ainda mais fedelho e desamparado. E toda vez em que o garoto, prudente, encestava a sua bola vermelha, marcando um triste ponto, ele dizia alto: “Sorte, hein, menino!”

Que ele só se passava para as bolas de cinco pontos para cima — a azul, a cor-de-rosa, a preta. E falhava, infalivelmente. Parecia um sortilégio: o homem ensaiava as jogadas mais sensacionais; fazia cálculos, dormindo na pontaria, punha o taco vertical, horizontal e oblíquo; punha-o às costas, jogando com os braços para trás; dava a tacada com a mão esquerda, com os olhos fechados, com os olhos abertos. E, fosse de que jeito fosse, o resultado era sempre este: zero. Aliás, não só zero, porque era também menos que zero — sete, cinco, três pontos a menos, inúmeras vezes. Nem também lhe valia o jogar normal — o escore não variava nunca a seu favor.

E pelo meio da primeira partida, já a mais dos 40 a 0, o herói começou a se enfezar. Fumava incendiariamente e uma nuvem de fumo o envolvia como a Jeová no alto do monte. Xingava o taco, o pano e as bolas, explicava ao público assistente que na véspera surrara em cinco partidas consecutivas um sujeito que tinha a fama de campeão em Barbacena — nem empate tinha havido. Agora era aquela sorte mesquinha...

Pegou então do taco, que lhe chegara a vez, apontou modestamente para a bola marrom (só quatro pontos) e o que conseguiu foi meter a própria bola branca no buraco.

Aí, não só nós, por trás dos nossos óculos escuros, como inclusive o homem da caixa, atrás da registradora, soltamos um risinho irreprimível. O grande jogador nos encarou de fito, como se fosse reagir; mas decerto leu nos nossos olhos a covardia e o arrependimento e resolveu nos desprezar, como nos desprezou efetivamente.

E continuou sem dar uma dentro, enquanto o menino das calças altas ia encestando de uma em uma, até que engoliu a preta, a última.

Da segunda partida em diante a gente só sentia uma vontade: levantar, chegar à mesa de sinuca e convidar o herói para ser nosso inimigo, figadal e por toda a vida.

Desvairado, de orgulho ferido, o homem parecia um vulcão querendo explodir, papocando as crostas de lama seca, ploc-ploc, e deitando fumaça venenosa. Que miséria esta fraca pena ser incapaz de descrever espetáculo tão singular, embora repulsivo!

De repente, parece que o atacou um acesso de masoquismo, porque ele arrancou o giz do parceiro, que até então vinha fazendo as marcações no quadro, e passou a registrar as próprias derrotas. Menos dez para si, mais quatorze para o outro, era de mal a pior, só variava para aumentar. Se arranjava um pontinho, logo o perdia numa jogada atrevida e o outro, como sempre, de grão em grão ia encestando.

Começada a terceira partida, o ambiente já ficara dramático. Da porta, um moleque de “sereno” arriscou um assobio. O homem do bar pôs-se a abrir e a fechar as gavetas da registradora, assanhando campainhas nervosas. E até o mocinho, parceiro do herói, começava a descontrolar-se — tanto que, em vez de jogar na bola amarela, que era a da vez, jogou na azul — e acertou. Acertou em seguida a saltada amarela, depois a verde, e só foi errar na marrom.

Então o herói pegou do taco como se empunhasse uma lança de guerra; afiou-o no giz, cuspiu no dedo, fechou um olho, fez pontaria na bola preta, que era a sua favorita e, pela segunda vez, suicidou-se, atirando a bola branca no buraco.

Um silêncio de mau agouro nos envolveu; ele cuspiu no ladrilho e correu o olhar desvairado pela assistência. Depois, no seu passo forte, encaminhou-se à caixa e pediu o revólver.

O adversário, muito branco, apagava no quadro-negro os últimos sete pontos que o parceiro perdera, como se quisesse considerar o dito por não dito.

Mas o herói dava-lhe as costas. Lentamente enfiou o coldre com a arma no seu cinturão de plástico. Depois se dirigiu ao cabide, de olhar sombrio, enfiou a manga da mão direita, errou a esquerda, enquanto todos o contemplávamos fascinados; por fim, saiu para o sol da rua, pisando duro, sem se despedir de ninguém, como um conquistador.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do morro branco. RJ: José Olympio, 2012.

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