DEPOIS DO JANTAR, o Linguado Cara Mal lavada, se acomoda, mais a esposa Mimice, num sofá de canto da sala enorme (um retrátil recentemente adquirido que fica, evidentemente, numa rebarba da peça) e ligam a televisão tela plana na Netflix. Ali, agarradinhos, ambos passam a assistir, ora a uma série nova que acabara de entrar no ar, ora para terminarem os episódios derradeiros de uma trama antiga que ficara pela metade. Era praxe, esta mudança repentina de diversão.
Mandam a Zefa (Zefa é a empregada) para seus aposentos descansar por algumas horas, só voltando à cozinha tempos depois, para o preparo de uma baciada de pipocas regada a copos de refrigerantes estupidamente gelados. Todo santo dia, a mesma cena comum se repete. Mimice, nos braços do amado, aos beijos e dezenas de outras mimosidades, de quando em sempre, renova os carinhos mais acentuados.
Nestes momentos apimentados, ela fecha os olhos, abre os lábios, murmura palavras melosas e, novamente, se prende e se perde, as atenções voltadas à tela do aparelho. De súbito, entretanto, assim do nada, um fato estranho e alheio ao clima, cotidiano se faz gigantesco. Linguado muda os hábitos costumeiros sem prévio aviso e, ato contínuo, pula, como um tarado, na garganta da esposa e começa a lhe apertar o cachaço, ao tempo em que manda, cheio de ira, um aviso à infeliz, coitadinha, totalmente desprevenida e pega de surpresa:
— Meu amor, preste atenção no que vou lhe falar. Se um dia você resolver me trair, se achar um carinha mais novo e melhor que eu, pelo amor de Deus, me avisa. Me avisa, entendeu? Não vou suportar viver com um par de chifres enfeitando a minha testa. Estamos de acordo?
Mimice, num primeiro ímpeto, consegue dar um grito de espanto e terror e custa a se livrar, por mais que tente, das mãos fortes do companheiro. Ele quase a leva às raias do desespero, em face do modo como segue lhe pressionando a frágil goela. Depois de se refazer do susto repentino, e do medo de passar o resto de seus dias comendo capim pela raiz, aos prantos, a metade abundante do Linguado consegue encarar o seu pé de chinelo faltoso e, ainda segurando a cervical, balbucia, quase afônica:
— Que foi que houve, amor? Está desconfiada de mim? Só temos seis meses de casados e já está me tratando como se eu fosse uma rameira vagabunda? Que é isto, amor? Por que trairia você?
Linguado, de repente, volta a apertar, ainda com mais pressão o cangote da sua linda e adorada:
— Só lhe dei um aviso. Passei a visão... Você sentiu a visão? Se ligou na visão? Se um dia resolver me enfeitar a testa, me avisa, me avisa...
Libertada, finalmente dos modos raros e extravagantes do encolerizado e encarniçado cidadão com o qual se unira em matrimônio, a infeliz responde quase num fio de voz:
— Meu bem, por que está agindo assim?
O sujeito, com ar de quem está disposto a levar avante o que dissera e, à sério, no tocante a repetir os carinhos desamorosos e inopinados na gasnate da inimitável criatura, suspira e vocifera:
— Só lhe dei um aviso, minha querida. Fica, portanto, ligada.
Mimice, as vistas arregaladas, o medo ainda tomando conta do rosto, segurando a gorja (nesta altura, mais vermelha que olho de pinguço), solta a voz, ou o que restou dela, e o faz claro, literalmente embargada:
— Amor... Por... Por que... Não me... Por que... Não me disse... Isto mais... Mais cedo?!
Fonte:
Texto enviado pelo autor.
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