terça-feira, 16 de março de 2021

Humberto de Campos (São Filomeno)


A estação de Carirí, na Estrada de Ferro de Sobral, no Ceará, é separada da Serra Grande, ou da Ibiapaba, por dez ou doze léguas de planície, onde se estendem as caatingas uniformes e pedregosas, ou se levantam, aqui e ali, os outeiros cinzentos, ásperos, desertos, inteiramente despidos de vegetação. A falta de açudes ou de lagoas e, mesmo, a pequena fertilidade das terras, tornou ali menos densos, e menos próximos, os núcleos humanos. As fazendas são mais raras, e os povoados mais distantes, vendo-se, apenas, quebrando aquela monotonia, de légua em légua, pequenos grupos de reses, que se disputam, melancólicas, os poucos recursos de pastagem.

Contrastando com esse panorama desolador, que a impiedade do sol torna mais triste, surge, porém, de repente, aos olhos de quem viaja, um ramalhete de verdura, um breve oásis em que as árvores se aglomeram, e que se conservam permanentemente viçosas, como aqueles plátanos da Arcádia que protegeram os primeiros amores de Zeus. É ali, nesse breve refrigério da natureza, que os vaqueiros e transeuntes repousam da travessia sertaneja, descansando na terra o bordão de caminheiro ou amarrando nos troncos, à sombra dos juazeiros e das oiticicas, as velhas alimárias fatigadas.

- Que bosque é este? - perguntei, um dia; diante dessa paisagem curiosa, à simplicidade do meu guia, um caboclo serrano, moreno, forte, de alma de criança e pescoço de touro.

- Aqui? Aqui é a mata do Nicolau.

- E esse Nicolau, mora aqui? - indaguei.

O caboclo sorriu, zombeteiro, e explicou:

- Não mora, não, senhor; já morou.

O caso, como era natural, intrigou-me, e, como eu insistisse, o caboclo sentou-se no alforje, que atirara ao chão, e contou-me, enquanto almoçava o seu pedaço de queijo fresco, a maravilhosa história daquela paragem.

- Antes da seca de 77 - começou - havia neste lugar uma povoação, que vivia, com a graça de Deus, na maior fartura. Então, não havia estas árvores. Tudo isto era campina; caatinga, chapadão, como lá fora. A gente era muito ativa e decidida, e, como a terra fosse boa, não faltava nada. Com a Seca Grande, porém, veio a fome, a miséria, um horror. O povo, fiado em Deus, e em São Filomeno, padroeiro do lugar, não queria fugir. O gado morreu. As galinhas morreram. Até bode morreu nesse ano. E começou a morrer gente. Desenganados de inverno, os moradores reuniram-se uma noite na capela e resolveram abandonar o povoado. E como não entrassem em acordo a esse respeito, ficou resolvido que o Nicolau pensasse e deliberasse por todos.

- E quem era esse Nicolau? - interrompi.

- Espere lá, já lhe digo. Esse Nicolau era o sujeito mais respeitado do lugar. Sério como ele só. A mulher, D. Felismina, era uma santa. Não perdia missa, nem novena, nem ladainha, e ia até o Carirí, sozinha, para ouvir a Santa Missão. E como era ainda o menos pobre, foi o Nicolau encarregado de resolver o caso, em nome dos companheiros de desgraça. Devoto como era, resolveu ele pedir o auxílio de São Filomeno, e meteu-se, nessa mesma noite, na capela, trancado. Trancou-se, rezou muito, e, lá pela madrugada, dormiu. E foi aí que se deu o milagre.

- Milagre?

- Sim, senhor. Diz ele que, assim que pegou no sono, viu São Filomeno descer do altar, e ir crescendo; crescendo, até que ficou do tamanho de um homem. Depois, aproximou-se dele, e disse: "Nicolau, o povoado vai ser reduzido a cinzas porque, todos nele são pecadores. As mulheres, então, já estão mais degradadas do que as galinhas do teu terreiro e do que as cabras do teu serrote!" - "É possível, senhor?!" - exclamou Nicolau, espantado. O santo não entrou, porém, em explicações, limitando-se a dizer: - "Olha, Nicolau, o momento não é para vinganças nem para derramar sangue de cristão. Mas eu vou te dar elementos para apurar a verdade. Toma, - disse, entregando-lhe dois punhados de caroços; - toma estas sementes, e distribui, uma a uma, pelos homens casados do povoado, para que eles plantem à porta da sua casa. Depois, fujam, abandonem o lugar, a capela, tudo, porque a seca vai continuar ainda por dois anos. Ao fim desse prazo, voltem, e examinem: na porta daqueles cujas mulheres os tenham traído, estas sementes terão nascido; e só não nascerão, Nicolau, na porta daquele cuja mulher nunca o tenha enganado!" O homem cumpriu a recomendação do santo, distribuiu as sementes pelos companheiros, plantaram, e fugiram para o Amazonas. Anos depois, voltaram.

- E então?

- E então? Então, encontraram este bosque verde, viçoso, que nunca mais morreu!

- Nasceu, então, até a semente da porta do Nicolau?

O caboclo sorriu, e atendeu:

- A porta do Nicolau era ali.

E indicou um pé de jatobá imenso, largo, robusto, cuja copa dominava o oásis e guiava, de longe, os viajantes que transitam, hoje, entre a frescura da Serra Grande e a estação da Estrada de Ferro, nos sertões do Carirí.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. 1925.

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