sábado, 24 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 417



Eduardo Affonso (Étimo, que vem do Grego ‘etymon’, “sentido verdadeiro”)


Ele desaba para um lado, com o suor escorrendo na testa.

Ela toma fôlego, e murmura, ainda arfante.

– Uau! Você foi formidável…

– Sério? Tão ruim assim?

– Não. Foi formidável. Sensacional.

– Ah, tá. É que “formidável” vem do latim “formidabilis, e significa “o que causa medo, terrível”.

– É? Não sabia. O que eu quis dizer é que você foi bárbaro.

– Desculpe. Não quis ser grosseiro com você.

– Mas não foi!

– Você disse que fui bárbaro. E bárbaro, do grego “barbaros”, quer dizer “estrangeiro, estranho, ignorante”.

– Imagina! Eu te achei ótimo. Um homem com pegada, porém intelectualmente sofisticado…

– Como assim? Eu não sou falso!

– Não falei que você é falso!

– Falou. Disse que sou sofisticado, e “sofisticado” vem de “sophisticare”, que é o mesmo que “alterar, adulterar, modificar com má intenção”, e de onde, inclusive, vem a palavra “sofisma”.

– Não! Eu quis dizer é que você é um homem ao mesmo tempo viril e fino (no bom sentido, claro!), do tipo que a gente não pode deixar escapar.

– Mas eu não estou usando capa.

– Hã?

– “Escapar” vem do latim “excappare”, de “ex” (movimento para fora) + “cappa” (capa) e o sufixo “are” (que indica ser um verbo). Ou seja, escapar é livrar-se da capa. A menos que você se refira à camisinha…

– Não, não. Já estou até arrependida de ter pedido para você pegar essa famigerada dessa camisinha.

– Mas famigerada – que é uma palavra latina, composta de “fama” + “gerere” – quer dizer algo afamado, que goza de boa reputação. E saiba que achei você muito esquisita

– Esquisita? Eu? (Cata as roupas no chão). Tô fora!

~ Espere! “Esquisito” tem origem no latim exquisitus, “procurado com atenção”, portanto, “de escolha especial, coisa muito boa” e (ela bate a porta)...
 
-  Droga, de novo!
**************************************** 

Moral da história: nunca vá para a cama com um etimologista. Ele sempre dará um jeito de explicar a origem das palavras – e acaba por complicar tudo. Aliás, “complicar” e “explicar” têm a mesma raiz, do latim “plicare” (ato de dobrar um papel), com os prefixos “com” (em companhia de) ou “ex”(para fora de), e é de onde também viveram  suplicar, duplicar, explicitar e até de “cúmplice”, no sentido de… ok, deixa pra lá.


Fonte:
Blog do autor.

Arquivo Spina 23 (Ronnaldo de Andrade)



José Lucas de Barros (Caderno Poético) IV, décimas


AFINEI PELA PRIMA DA VIOLA
O POEMA QUE FIZ PRA MINHA PRIMA.


Adocei a toada sertaneja,
Imitando a ternura dos gorjeios;
Busquei longe a alegria dos recreios
Embalados na terra benfazeja;
Com as bênçãos do Deus de minha igreja,
Recebi lá do céu a melhor rima
E, com todos os brios da auto-estima
De um canário liberto da gaiola,
Afinei pela prima da viola
O poema que fiz pra minha prima.
****************************************

A SAUDADE ACERTOU MEU ENDEREÇO
DESDE QUANDO VOCÊ FUGIU DE MIM.


Hoje sobra um lugar em minha cama
e um talher sempre limpo em minha mesa,
Mas não há mais lugar para a tristeza
Que em meus olhos mil lágrimas derrama!
Como é dura a existência de quem ama
Na distância cruel que não tem fim!
Todos sabem que agora vivo assim,
Porque, nesta prisão que não mereço,
A saudade acertou meu endereço
Desde quando você fugiu de mim!
****************************************

COISAS GUARDADAS QUE EU TENHO
QUE ÀS VEZES VOCÊ NÃO TEM.


Quero mostrar-lhe o desenho
Da vida, desde menino,
Um traçado do destino,
Coisas guardadas que eu tenho:
Carrego o peso de um lenho
Que Deus transforma num bem,
E quando a descrença vem,
O Mestre de Nazaré
Me devolve aquela fé
Que às vezes você não tem.
****************************************

É PRECISO SABER ENVELHECER.

– É tranquilo viver a juventude
No remanso febril dos verdes anos,
Sem sentir o amargor dos desenganos
Nem as dores da falta de saúde;
Mas não é permanente essa virtude,
Porque o tempo interfere no viver,
Muitas vezes trazendo desprazer,
Com o peso enfadonho da canseira.
Quem quiser ser feliz a vida inteira,
É preciso saber envelhecer.

– Há um modo de vida em cada idade
Por desígnio da própria natureza.
Ninguém pode guardar toda a beleza
Nem a graça da eterna mocidade;
Entretanto, pra ter felicidade,
Não precisa estressar-se nem correr,
Basta o amor no trabalho e no lazer
Pra manter a alegria da existência,
Pois, de acordo com as leis da Providência,
É preciso saber envelhecer.
****************************************

FUTURO É QUASE PRESENTE,
PRESENTE É QUASE PASSADO.

 
Até parecem mentira
Certas coisas deste mundo:
Numa fração de segundo,
A roda do tempo gira;
Quando um instante se retira,
Outro encosta no tablado.
O tempo é tão apressado
Que passa pisando a gente...
Futuro é quase presente,
Presente é quase passado.
****************************************

O POETA TAMBÉM CHORA,
MAS CHORA COMO QUEM CANTA.


Todo poeta se inspira
Na vibração de seu canto,
Embora, às vezes, o pranto
Em seu caminho interfira;
Afeito ao toque da lira,
O som das canções o encanta,
Mas, se um dia a musa santa
De seus sonhos vai embora,
O poeta também chora,
Mas chora como quem canta.
****************************************

OS MEUS SONHOS DE POETA
JÁ FORAM REALIZADOS.


Nunca fui um bom esteta,
Mas fiz da forma uma lei
E na trova não frustrei
Os meus sonhos de poeta;
O que falta. Deus completa
Pra redimir os pecados
Dos versos desengonçados
Que discrepam dos demais,
Por isso meus ideais
Já foram realizados.
****************************************

POESIA VEM DE ALGUM CANTO
QUE EU NUNCA SOUBE EXPLICAR.


Coisa tão simples... Deus cria,
Dá de graça a qualquer pobre,
Mas nenhum gênio descobre
Os mistérios da poesia;
Filha da noite e do dia,
Tem luz de estrela e luar;
Percorre os caminhos do ar
E nos bafeja; entretanto,
Poesia vem de algum canto
Que eu nunca soube explicar.

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014

Jerônimo Mendes (O Homem da Mochila Verde)


Sábado, dia de sol. Seis horas da manhã. Reunidos na pracinha da Lagoa, à espera do ônibus, quarenta super atletas.

Vida tranquila essa de jogador. Futebol de segunda a domingo, sem reclamação, viagens, festas, hotéis.

O adversário esperava por nós a cem quilômetros de distância, na vizinha Ponta Grossa. Um misto de amadores e peladeiros, mais dispostos à festa do que o jogo em si.

Duas horas de viagem, muito samba, cerveja, piadas e gozações no trajeto. Nessa hora fazemos de conta que não temos pai, mãe ou irmão e todos entram na dança.

O local, meio retirado e fora do perímetro urbano da cidade, mas diga-se de passagem, agradável ao extremo. Uma bela represa, água cristalina, muito verde e o ar da maior pureza.

O anfitrião, veterinário gente boníssima, vêm logo ao nosso encontro. Apesar de todo aquele patrimônio, muito educado, simples e camarada. De bolsa esportiva na mão, seguimos em frente formando fila pela mesma ordem de desembarque, a fim de atravessarmos a ponte sobre a represa, ligando a entrada da fazenda ao local da recepção, na outra margem do rio.

Pontezinha danada, toda bamba, construída sobre o apoio de tambores vazios, flutuantes na água. O pelotão futebolístico vai aglomerando-se, comandado pelos mais afoitos. Entra um, dois, trás, quatro . . . do décimo em diante foi um tombo apenas. A ponte não suportou o peso e mandou todos para a água, sem direito à troca de calção de banho.

Foi um Deus nos acuda. Alguns nadam, outros riem. Ninguém quer perder a bolsa, o relógio e aquele ray-ban polido especialmente para o passeio. Pares e pares de sapatos sobem à tona rapidamente e deslizam correnteza abaixo. A festa começou apimentada. Um susto e nada mais. Nenhum ferido ou afogado. O pior está por vir, depois de uma recepção fria e descontraída.

Segue o almoço, churrasco e chope à vontade. A partida, marcada para as quatro da tarde, parecia impossível de ser realizada. Imaginem um jogo depois de se devorar um boi e ingerir alguns barris de chope. Tudo em nome da alegria e confraternização.

Após o almoço fomos intimados a trocar de roupa. Cada um procura o local mais propício. Vestiário, nem pensar.

Na pressa de aprontar-me antes dos demais, entrei no único banheiro disponível na fazenda. Antigo, do tipo casinha. Quando a gente passava as férias na casa da avó havia sempre uma no fundo do quintal. Pequena, apertada, sem muita claridade, sem vaso, apenas aquela abertura em forma de losango concebida, única e exclusivamente, para o encaixe do traseiro.

Deixei a mochila de lado e fui logo tirando a roupa. Tinha devorado parte do boi e tomado um bom banho na represa, restava o futebol. Estava doido para colocar o uniforme e bater uma bolinha. Metido a zagueiro, queria ser o primeiro da fila e garantir uma vaga no time.

Depois de ter ficado nu por inteiro senti falta da mochila verde e branca que comprei com orgulho somente para viagens de futebol. Tinha o símbolo do nosso clube, o Araucária, custou caro na época, poucos foram os felizardos que conseguiram uma. Será que deixei fora da casinha ? Hesitei, embora soubesse de antemão que entrei com a danada na mão.

- Lúcio, vê se minha mochila ficou aí por fora.

- Aqui não ! Lá dentro também não . . .

- Meu Deus, será ? Imaginei o pior .

Em pânico, desloquei os dois globos oculares lentamente para dentro daquela figura geométrica, o losango apertado onde mal cabia um traseiro. Jamais caberia uma mochila cheia de roupas e pertences, pensei, com os olhos marejados de raiva.

Recusei-me a crer, mas era verdade. Minha bolsa, verde e branca, agora mais verde do que branca, repousava no fundo do vale, velejando sobre os excrementos acumulados ao longo de anos. Entreaberta, via-se apenas a perna direita da minha calça boca-de-pito bege suspensa do lado de fora, parcialmente rebocada. Algumas centenas de moscas a contemplam feito prótons e elétrons ao redor do núcleo.

Disfarçadamente, saí da casinha, à cata de um galho ou um pedaço de pau qualquer. Apanhei o primeiro que apareceu e voltei afoito, havia de recuperar a mochila. Documentos, tênis, roupas, dinheiro e o meu ray ban do Paraguai. Deus do céu !!!

De cima para baixo eram mais ou menos uns dois metros. Desci o galho calmamente e consegui enroscá-lo na alça. Tentei trazer a mochila com cautela e, ao aproximá-la da boca do losango, despencou novamente, de ponta cabeça. É demais . . . os urubus estão a meu favor.

Meu desejo é chorar e acabo rindo. Nesse momento havia uma plateia de gozadores assistindo ao evento. Um barril de chope triplica o riso, pode crer. Com muito jeitinho consegui retirá-la. A notícia se espalha, alguns colegas rolam no chão, outros gritam : - Dá-lhe, verdão!!!

Segurando-a na ponta dos dedos disparei em direção à represa. Uma legião de moscas tentou acompanhar-me e lembro apenas de ter sido mais rápido do que elas. A torcida aplaude, se diverte. A bolsa ficou submersa na água durante toda a tarde, presa por uma pedra enorme que encontrei no fundo do riacho. Tive pena dos peixes. Nem preciso contar o resto do dia. Do jogo, soube apenas o resultado, derrota na certa.

À noite, o time inteiro foi para o restaurante dançante, exceto o bocó da mala que acabou dançando sozinho e permaneceu dentro do ônibus meditando, sob um cheirinho nada convidativo. Pelo menos trouxe a mochila de volta, sem perder a pose nem o meu curto e rico dinheirinho.

O homem da mochila verde. Quem viu vai lembrar, isso foi há mais de vinte anos.

Fonte:
Jerônimo Mendes. Muito além do cotidiano: crônicas. Curitiba/PR, 2001.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 416

 


Carina Bratt (Escuridão)


De repente me vi presa no amorfo estranho da falta de luz. Acorrentada aos escombros de um pretume encarcerado, denso e pesado, me senti neófita. De olhos arregalados, abertos até as orelhas, apesar disso não via nada. Nem um palmo enxergava adiante do nariz. Veio então, me acudir à mente, instantes passados da minha vida. Momentos bons e alegres, outros tristes e de profunda melancolia.

O que mais me deixou num vazio pior que o tenebroso das trevas. Meu pai. Recordei dele num momento azedo, virulento, avinagradamente amargo. E que momento foi esse? Meu velho herói no leito de morte, para ser mais precisa, poucas horas antes de nos deixar de vez. Papai Francisco (que o Eterno o tenha em sua santa misericórdia), sabia que não voltaria para casa.

Desde que fora internado às pressas, carregava na consciência a afixação de que não regressaria. E aos poucos, com a sua paciência de Jó, foi nos preparando o espírito, como se quisesse aliviar a nossa dor maior. A do seu recuo da vida, da sua deserção de continuar lutando pela existência que se esvaia em passos tartarugados. Militar linha dura, seu Francisco não dava o braço a torcer.

Suas palavras, como diziam os antigos, não faziam curvas. O que ele falava podia se escrever. Era como assinar com um fio de bigode. Com seu passamento, a rotina em casa mudou. Bem sabíamos, não ouviríamos mais as suas risadas, os seus comentários sarcásticos, as suas turras com mamãe, a implicância com as futilidades, a dinheirama que eu gastava com produtos caros para meus cabelos.

Foi papai quem me liberou para viajar com meu primeiro patrão, o Aparecido, quando eu ainda tinha dezessete para dezoito anos. Por dona Marcela, minha mãe, eu jamais arredaria os pés de suas saias. Mas papai viajava na maionese. Entendia meus sonhos e achava que “o filho depois que cresce e cria asas, quer voar ao sabor do seu próprio vento”. Recordo como se fosse hoje, das palavras de meu velho ao Aparecido: “Seu moço, minha filha está indo uma, não quero que volte duas”. Papai, esperto, arisco, sinalizava uma possível gravidez.

E eu fui, alegre, feliz, saltitante na inocência virginal, ansiosa do meu primeiro emprego, voluteando nas alças da minha imaginação. Desde pequena, o incerto me obstinava me embirrava me seduzia como um passo impensado em direção ao abismo. Apesar do buraco à frente, que se abria enorme, vasto, eu não me importava em cair. Queria dar causa aos meus próprios erros e me levantar dos infortúnios, me fortalecer, me reestruturar sem a ajuda de quem quer que fosse.

O desconhecido me fascinava, o forasteiro me extasiava, o oculto me enceguecia e eu via nesse passo ao acaso, ao não sei para onde, algo que não pressentia no corriqueiro da vida sob o teto da proteção familiar. Desde pequena queria ir além do portão da rua. Desde menina (ainda em tempo do grupo escolar) necessitava descobrir as novidades das outras artérias que se juntavam aquém da esquina que eu via todos os dias. Me sentia entalada, minguada, aperturada.

Meus olhos se assemelhavam a um depósito de coisas sobrenaturais, prontos para ver o mundo lá fora, de perto, como também viver longe do teto de casa consanguínea. Tinha uma carência enigmática, coberta de hera e loucura, loucura essa quase assombrada de pegar o bonde da minha vida, de abraçar coisas novas. O calor materno me tolhia soltar as amarras e viver plenamente a vida, como eu desejava.

O apetite aguçado de cortar o cordão umbilical me obcecava me hipnotizava, me enfeitiçava. E de fato, me desalgemei, me desaferrolhei e fui. Segui. Sai da comodidade do meu quarto me desprendi das bonecas das amiguinhas e, claro, dos meus pais, numa sexta-feira por volta de vinte e duas horas, levando meia dúzia de calcinhas, duas calças jeans e quatro blusas que mamãe comprara de última hora. Com a morte de meu pai tantos anos depois... Nada mudou de forma. Ou mesmo de cor.

As minhas viagens se tornaram mais constantes e espaçosas. Hoje, aqui, amanhã acolá, aeroportos cheios e com problemas na hora de embarcar. Dependendo da rota a ser cumprida, chego a ficar fora por quase trinta dias seguidos. Com papai nos braços de Deus, dona Marcela, minha querida mãe, coitada, acabou sozinha de vez, estudando novas formas de fazer blusinhas de crochê para recém-nascidos.

Desamparada (não desprezada, isso jamais), todavia, sacrificada, postergada, desajudada, desfavorecida, envolta com as malhas de uma solidão imensa e insana, que não só ela, mas eu igualmente, passei a deixar como meu papito em pequenas gotas de uma estranha contribuição, como longos passeios noturnos sobre telhados adormecidos.

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza

Fabiano Wanderley (Baú de Trovas) 2


Abraçado a uma criança
chora o pai, vendo a enxurrada.
Sem seca, volta a esperança,
o verde, a terra molhada!
- - - - - -
A palavra proferida,
o seixo após atirado
e uma ocasião perdida,
não retornam; são passado!
- - - - - -
A vida é compreendida,
olhando-se para trás.
Porém, para ser vivida,
mire em frente, nada mais...
- - - - - -
Com mãos e pés, calejados,
revelando ardores seus,
em prece, os pobres coitados
procuram ajuda em Deus.
- - - - - -
Com todas limitações
que lhes cercam as crianças,
buscam sempre nas lições,
seu futuro de esperanças...
- - - - - -
Defronte a um jardim em flores,
à sombra dos arvoredos,
oh varanda, céu de amores,
és clausura de segredos!
- - - - - -
Desfez-se tudo e a saudade
se fez presente, ao dispor
e num bilhete, a verdade:
As cinzas do nosso amor.
- - - - - -
De um sentimento inerente
ao riso, à dor e a paixão,
há na lágrima premente
impulsos de um coração.
- - - - - -
És a flor que no alto aflora,
nativa essência, fagueira,
a aquarela que se arvora,
ornando a montanha inteira.
- - - - - -
Na roça, a feia Arabela,
seu calor aflora a pelos.
Roça tanto na janela,
que tem dor nos cotovelos.
- - - - - -
Neste instante divinal,
de raro e puro candor,
eu vivencio, afinal,
a lauta ceia do amor.
- - - - - -
O enigma de nossas vidas
traz razões, que aos olhos meus,
são teses indefinidas:
— Mistério! Coisas de Deus!
- - - - - -
O meu destino eu aceito,
por que ele me foi legado,
tal qual um rio no leito,
eu sigo o curso traçado.
- - - - - -
O passado é um doce-amargo,
é o retrato de uma vida;
é o ontem que passa ao largo,
dessa estrada, hoje, vivida.
- - - - - -
Paquerando a dona Bela,
não sai da sorveteria,
esfriando o calor dela
e pondo o marido em fria.
- - - - - –
Para a vida, um furo traz
transtornos, não muito amenos:
Na camisinha: – Um, a mais!
no paraquedas: – A menos!
- - - - - -
Para teres, certamente,
um viver com distinção,
faze conscientemente,
do trabalho uma oração!
- - - - - -
Parece até que é piada,
mas é vero o conteúdo,
pobre diz que não tem nada,
mas, se chove, perde tudo!
- - - - - -
Pode parecer bizarro,
mas são coisas do Senhor.
Com a argila, o João-de-Barro,
constrói seu ninho de amor.
- - - - - -
Por que Senhor, conceber
desigualdades no estar:
- Na feira, o pobre vai ver
o que não pode comprar!
- - - - - -
Quando a lua em seu açoite,
unge o céu com seu brilhar,
no plenilúnio da noite
Deus se esconde pra rezar...
- - - - - -
Quando à noite, o véu recua,
ornando um clarão disperso,
majestosa, sai a lua,
da varanda do universo!
- - - - - –
Que bom fazer mais um ano
nessa estrada prometida,
sentindo o calor humano,
estando de bem com a vida.
- - - - - -
Sua voz me consolida
e em seus gestos me alicerço.
Ele é a luz que rege a vida:
— O Arquiteto do Universo!
- - - - - -
Tudo que houve no passado,
quiçá, futuro premente,
não pode ser postulado
como augúrio do presente.
- - - - - –
Um sorriso de criança
transporta a paz para um lar.
Com ele, há luz e esperança,
contidas num doce olhar...
 
Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

I Concurso Virtual Relâmpago da ABT - Academia Brasileira de Trova (Prazo: 5 de Novembro)


Com o intento de celebrar os 60 anos da Academia Brasileira de Trova (ABT) no dia 26 de dezembro vindouro e considerando o atual quadro pandêmico em que infelizmente nos encontramos, temos o prazer de lançar o I Concurso Literário Virtual da ABT (2020).

Entende-se por TROVA a composição poética (poema) de quatros versos setissilábicos (em sílabas poéticas, não meramente gramaticais), rimando o primeiro com o terceiro e o segundo com o quarto, expressando um sentido completo.

Poderão participar do presente certame até as 23:59 (do horário de Brasília) do dia 5 de novembro de 2020:

1. Na CATEGORIA "ACADÊMICO": membros efetivos e correspondentes da ABT em dia com a anuidade, além dos membros honoríficos;

2. Na CATEGORIA "ESPECIAL": brasileiros maiores de 18 anos que não pertençam aos quadros da ABT.

Todos podem se inscrever em ambas as categorias, mas no máximo com duas trovas em cada uma delas, a saber:

- TROVA LÍRICO-FILOSÓFICA - tema: Adelmar Tavares (o Rei da Trova e patrono da ABT);

- TROVA HUMORÍSTICA - tema: Barriga.

Enviar os trabalhos para o seguinte e-mail:
academiabrasileiradetrova@gmail.com


Quem se inscrever em ambas as categorias deverá adotar o mesmo pseudônimo em ambas.

Os vencedores receberão no mês de dezembro, respectivamente, certificados virtuais de:

1º a 3º lugar;
3 menções honrosas;
3 menções especiais.

ATENÇÃO: Em nenhuma hipótese poderá aparecer o nome do concorrente no texto. Ademais, o pseudônimo utilizado não poderá permitir que o concorrente seja reconhecido.

Logo, no corpo do e-mail informe:
- pseudônimo;
- nome completo;
- e-mail; cidade e estado onde reside;
- a(s) trova(s).

A participação neste concurso significará a aceitação irrestrita do regulamento presente, sendo irrecorrível e soberana a decisão do júri no que tange a dirimir quaisquer dúvidas não esclarecidas neste mesmo regulamento.

Academia Brasileira de Trova
Presidente: Paulo Roberto de Oliveira Caruso
Vice-Presidente: Tito de Abreu Fialho (in memoriam)
Diretora cultural: Marilza Terezinha de Abreu Fialho
Diretora jurídica: Messody Ramiro Benoliel
Comissão de Pareceres: Alba Helena Correa (Presidente)
Maria do Carmo Zerbinato (in memoriam)
Abílio Kac
Diretor Financeiro: Salvador Pereira Matos
Secretária-geral: Suely Saad

Informações:
academiabrasileiradetrova@gmail.com

Fonte:
Paulo R. O. Caruso

Concurso Literário Relâmpago Virtual da ALAP (Prazo: 5 de Novembro)

Promovido pela Academia de Letras e Artes de Paranapuã

Poderão participar do presente certame até as 23:59 (do horário de Brasília) do dia 5 de novembro de 2020:

Gêneros:
Trova Lírico-Filosófica; Trova Humorística; Haicai; Soneto; Cordel; Aldravia; Poetrix; Poesia Livre; Acróstico; Conto; Microconto; Crônica E Ensaio.

1. Na CATEGORIA "ACADÊMICO": membros efetivos da ALAP EM DIA COM A ANUIDADE, além dos membros correspondentes e honoríficos;

2. Na CATEGORIA "ESPECIAL": escritores de prosa e verso, todos maiores de 18 anos provenientes de qualquer nação, desde que se expressem em língua portuguesa (incluindo os membros honoríficos).

Enviar os trabalhos para o seguinte e-mail:
alap.paranapua@gmail.com


Não haverá pagamento de taxa de inscrição.

Em cada categoria todos podem se inscrever em todas as modalidades, mas no máximo com um trabalho apenas em cada uma delas.

Quem se inscrever em diversas modalidades deverá adotar o mesmo pseudônimo em todas elas (independentemente de se inscrever em literatura e/ou artes plásticas).

Se algum(a) concorrente utilizar mais de um pseudônimo no certame, será imediatamente desclassificado.

Os vencedores serão classificados, respectivamente, com certificados virtuais de 1º a 3º lugar, e, a critério da organização, menção honrosa (4º lugar) e menção especial (5º lugar) e receberão no mês de dezembro os respectivos certificados.

O tema de cada modalidade será o seguinte:

Em literatura:

1. Para Trova humorística: CUECA;

2. Para Trova lírico-filosófica; Haicai, Soneto, Cordel, Aldravia, Poetrix, Poesia Livre e Crônica: ESPERANÇA;

3. Para Conto: o cenário que você imagina no pós-pandemia;

4. Para Microconto: qualquer tema, desde que seja humorístico;

5. Para Ensaio: João Cabral de Melo Neto, que em 9 de janeiro de 2020 celebraria 100 anos de idade.

Como Enviar
 
 Em WORD, o limite de laudas / versos para cada modalidade que não tem tamanho específico será o seguinte:


1. Para Ensaio e Conto: 5 laudas, Times New Roman ou Arial 12, espaçamento 1,5, margens superior e inferior 2,5 cm, margens direita e esquerda 3 cm.

2. Para Microconto: 140 caracteres (com espaços).

3. Para Crônica: 3 laudas, Times New Roman ou Arial 12, espaçamento 1,5, margens superior e inferior 2,5 cm, margens direita e esquerda 3 cm.

4. Para Poesia Livre: 30 versos.

ATENÇÃO: Em nenhuma hipótese poderá aparecer o nome do concorrente no texto. Ademais, o pseudônimo utilizado não poderá permitir que o concorrente seja reconhecido.

Logo, solicita-se que a participação seja feita da seguinte maneira:

- no corpo do e-mail informe seus DADOS:
modalidade (se for mais de uma, o(a) concorrente pode fazer uma listagem); pseudônimo;
nome completo;
e-mail;
cidade e estado onde reside;

- em anexo, num arquivo de WORD, o(s) texto(s).
Se houver mais de um, eles poderão vir juntos no mesmo arquivo de Word ou separados (a critério do(a) autor(a)). De qualquer forma, na página do texto deve aparecer respectivamente: o título do texto seguido do pseudônimo e, abaixo, o teor do texto.

Observações finais:
A participação neste concurso significará a aceitação irrestrita do regulamento presente, sendo irrecorrível e soberana a decisão do júri no que tange a dirimir quaisquer dúvidas não esclarecidas neste mesmo regulamento.

Obviamente não serão aceitos textos e obras que ofendam crenças, orientação sexual, cor / raça e que denotem outros tipos de ofensas.

O(a) concorrente é plenamente responsável pela veracidade das informações prestadas e pela eventual prática de plágio total ou parcial, sendo que tal prática acarretará a eliminação imediata do(a) concorrente e exonerará de responsabilidade o organizador do concurso.

Academia de Letras e Artes de Paranapuã
Presidente: Acad. Marice Prisco
Vice-Presidente: Acad. Flávia Mariath
Diretor Cultural e Financeiro: Acad. Oliveira Caruso
 
Fonte:
Paulo R. O. Caruso

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 415

 


Cláudio de Cápua (Discurso da Voinha)

Certa noite na década de 70, eu, novato na profissão de jornalista, retornara das Oficinas da Imprensa Alemã, onde fazia bicos de revisor. Já estava prestes a me deitar, quando bateram à porta. Era Gerson Filho e seu irmão Adauto, ambos potiguares radicados em São Paulo desde bebês, e meus amigos de infância.

Gerson informou-me que seu pai, militar aposentado e proprietário do maior jornal de Botucanhanha, havia falecido e gostaria que eu o acompanhasse até o velório.

No velório grande era a movimentação, pois na cidade havia uma base da Aeronáutica, corporação a que o falecido pertencera. Não estavam presentes só militares, mas muitos políticos e representantes da sociedade, uma vez que o jornal era importante na cidade.

O clima, obviamente, era solene e triste. Lá pelas tantas da madrugada, pediu a palavra a sogra do falecido, dona Gervásia, cearense e crente um tanto fanática e também algo destrambelhada:

- Senhor Deus, por Jesus, tenha piedade deste desgraçado, que só deu desgostos para minha pobre filha.

Por Deus, por Jesus, perdoa este infeliz, que nunca desempenhou a paternidade de meus netos, porque sempre foi um pai irresponsável e ausente.

Piedade Pai, para este homem que se passava por Major, quando era apenas um 2o  sargento.

Deus perdoa ele, por ser amante da bebida e da boêmia etc...etc...


A esta altura, a maioria dos presentes estava de olhos arregalados de espanto e uns fazendo força para não rir, inclusive eu.

Foi quando Adauto deu três passos para o lado e falou, entredentes, para o irmão Gerson, com humildade fransciscana:

- Será que não dá pra fazer a voinha parar de esculhambar o papai?!

(Revista Santos Arte e Cultura - Fevereiro 2017)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro enviado pelo escritor.

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 9


Nota:
Zarelho = metediço, travesso, doidivanas.
 
Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor.

Graça Graúna (Haicais)


1
De alma lavada
percorro os caminhos
A minha aldeia resiste
2
Mais uma viagem:
nesse vai e vem a utopia
me faz andarilha
3
Dias de sol
distendo as velhas asas
meu haicai latino.
4
Em volta da fogueira
memória, história
O mundo se recria
5
Entre o sono e a vigília
o canto da cigarra
inunda o sertão
6
Água, terra, fogo e ar
labirintos do ser
em todos os tempos
7
Tempo de estio
sobre a carcaça do boi
um cão faminto
8
  Apesar dos pesares,
resta-nos sonhar:
a Mãe Terra nos anima
9
Do mar a palavra
a pulsão mais forte:
solidão atávica
10
Frêmito de asas,
e a poesia se alastrando
na minha aldeia é assim
11
      Tarde novembreira:
o ipê-rosa anuncia
a chegada de Nina*
12
No cerrado à tardinha
cantigas de rosa
de mãe pra filha
13
 Tempo de primavera
na casa da serra
o riso de Nina
14
  Branca flor d'água
espelha a face da lua
vitória-régia
15
Em meio a chuva de estrelas
a lua de fogo
desalojou a neblina
16
Uns cavaleiros sonham
mas só sonham só
com a mais-valia
17
O tempo de chegada
transborda o olhar
no tempo de partida
18
Os sonhos não se foram
Eles retornam
tais e quais ovelhas negras
19
Utopia é cantar
uma trajetória possível:
Pindorama*
20
  Dia ensolarado:
no alto-mar de concreto,
barcos de papel
21
Bem-te-vi não vê
o arranha-céu espelhado:
estilhaços voam
22
 Dia de São José;
debulhar a esperança
pra chover no roçado
23
Velho pote de barro;
um coaxar noturno,
cheiro de terra molhada
24
 Folhas de outono
maiores abandonados
nas ruas, nas praças
25
Formiga com asa
é sinal que vem chuva
Fartura na aldeia
26
Esperança não morre:
tem verde brotando
no arubatã* decepado
27
Ipê-amarelo,
sonho de primavera
o sol espelha
28
No muro lilás,
a buganvília roxa:
casa materna
29
No quintal pequeno
um caquizeiro se curva
carregado de pássaros
30
 Pícaros, ícaros:
crias de um homem submerso
Brasil, Brazil, brasis
31
Noctívago dor-em-dor
pouso na árvore do mundo
clandestina
32
Porque és pedra
o que dirá a poesia
sem a tua presença?
33
Dançar o toré
perto da gameleira
entre os encantados
34
Brancos para o infinito
o espantalho subverte
a ferocidade do mundo
35
Todos emigram
Na imensidão do tempo
um ser avuante
- - - - - –
Notas:
Nina: é o nome da minha neta mais nova
Pindorama: em tupi, significa 'terra das palmeiras'
Arubata: significa pau-brasil.

Fonte:
Graça Graúna. Flor da Mata. Belo Horizonte/MG: Penninha Edições, 2014.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Quatro) Imprevisto inesperado


(*)Texto integrante do livro Comédias da Vida na Privada.
****************************************

APERTEI O BOTÃO E ACIONEI o elevador social. Pelo painel dos andares, percebi que ele estava no sétimo e em descenso. Esperei até que a porta se abrisse no hall principal e ingressei. Meu destino final, o vigésimo. Antes que a porta se fechasse totalmente, uma jovem dos cabelos compridos e um sorriso elegante num rosto encantador chegou correndo.

Segurei o mecanismo no botão de impedir o fechamento, para que ela conseguisse embarcar. Me agradeceu e apertou o décimo sétimo. Porta fechada, nos colocamos à caminho. Algo inusitado ocorreu neste momento. Apesar de termos comprimido de forma correta os botões de nossos andares correspondentes, por algum motivo inexplicável a geringonça passou direito indo finalizar seu itinerário no trigésimo, sem escala.

No topo da torre, resolvemos não abandonar a cabine. Reprogramamos novamente os nossos pisos, e a porta, ato contínuo, se fechou. De novo, na revinda, idêntico fato se repetiu. A cabine desceu direta, como um avião em queda livre, sem se deter no meu andar e no dela, pontofinalizando a nossa viagem, no térreo.

Apesar deste inusitado, não apeamos no saguão. Resolvemos tentar a sorte, clicando de novo o dezessete e o vinte. A porta se fechou e, desta vez, um novo incidente entrou em cena. Em todos os pavimentos, do térreo ao dezesseis, o elevador fez a gentileza de se abrir igual mala velha, sem que ninguém tivesse solicitado.

Fechada a porta no dezesseis, obviamente ele se catrafilaria* no próximo. Qual o quê! Ledo engano. Do dezesseis, ele seguiu direto para o trigésimo. Lá nas alturas, eu e a garota, os rostos além de cansados e descontentes, achamos por bem trocar de cabine. Passamos para o de serviço. Incrivelmente, a mesma história se sucedeu.

O elevador desembestou direto, sem obedecer aos entraves por nós pleiteados. Desta forma, fomos, de novo, rebaixados ao nível inferior e a darmos de nariz com o vestíbulo. Procuramos pelo funcionário, um tal de Gregório, que nos informou estarem ambos os aparelhos funcionando normalmente. Confiantes em sua palavra, reingressamos no social.

Desta feita, entretanto, com o porteiro fazendo a gentileza de apertar os andares nos quais pretendíamos desfrutar do aconchego de nossos lares.  ‘Se não parar no dezessete, nem no vinte, me chamem pelo telefone. De qualquer forma, nem será preciso. Estarei  monitorando vocês pela câmera interna’. Lá fomos nós de novo, prédio acima.

Se estivesse sozinho, qualquer um que ouvisse o meu relato, diria que eu estaria mentindo. Não estava. O bendito dispositivo que trafega sem fazer curvas (seja subindo ou descendo), só poderia estar de gozação com a minha cara e com a da minha companheira de infortúnio. O desgraçado subiu direto, literalmente. Passou pelo dezessete, em seguida pelo vinte, sem obedecer ao nosso comando de nos deixar onde desejávamos.

De novo no trigésimo, à solicitação do porteiro, pelo telefone, convocando que mudássemos para o de serviço. Obedecemos. Dentro dele, regredimos mais uma vez aos pés do átrio, sem lograrmos encerrar o cansaço do dia estafante, onde tínhamos nossos apartamentos. Gregório, desta feita, resolveu nos acompanhar.

Ele mesmo fez questão de calcar o dedo indicador no dezessete, da moradora, seguido do meu vigésimo. Apesar disto, nada mudou nesse ping-pong estranho. O bicho se invocou e subiu com força e direto. Atendendo agora, ao convite do porteiro, não desembarcamos e ele, gentilmente beirou o vigésimo e o décimo sétimo. Conclusão: aportamos como três babacas na portaria, pela terceira vez.

Sentenciamos, eu e a chateada e furiosa  inquilina  romper as nossas necessidades pelas escadas de emergência. Com este pensamento à baila, demos inicio na peregrinação penosa, que demoraria um tempo considerável: ‘A gente vai conversando — disse ela quando passávamos pelo terceiro — e o tempo se esvairá mais rápido’. Concordei, e sem mais delongas, iniciamos a   enervante caminhada. Neste interregno, fiquei sabendo que a linda se chamava Rosana e morava  no 1701 há seis meses.

De degrau em degrau, à medida em que ganhávamos suor e altura, trocávamos impressões, as mais variadas. Falamos de músicas, de filmes, de novelas, de comidas, de nossas vidas e até de política. Gravamos nossos telefones em nossos celulares para contatos futuros, via WhatsApp.

Rosana se formara advogada. Era divorciada e mãe de uma filhinha de seis anos que ficava com a empregada. Prestava serviços jurídicos à uma empresa famosa no mercado de produtos importados. Tinha trinta anos e adorava Fernando Pessoa. Quando me dispunha a falar de mim, quase a galgarmos o nono, um novo imprevisto pintou na nossa suada e prostrante jornada: as escadas estavam bloqueadas.  

____________________
* Catrafilaria - ficaria prisioneiro.
 
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora MC Guedes, 2020.
Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 414

 


Carolina Ramos (A Toalha de Natal)


Depois de cansativos dias de caça intensa a presentes e guloseimas, nesse ir e vir à beira da exaustão, enfrentando supermercados repletos de gente prenhe das mesmas intenções, Yolanda retirou da gaveta aquela toalha de linho, imaculada, que apenas emergia do seu imperturbável sono de doze meses, por ocasião das festas natalinas. Era então estendê-la sobre a mesa, adornada para a ceia do Natal e retirá-la, uma semana depois, findo o almoço do Ano Novo. Muito raramente tornava-se necessário interromper o ciclo, entremeando-o com um mergulho rápido na máquina de lavar roupas, donde a toalha rapidamente voltava, impecável, a reassumir o posto. Na maioria das vezes, bastava uma sacudidela e a fidalguia do linho estava pronta para receber as baixelas e louças especiais, os copos de cristal e os talheres reservados à época — tudo à espera do momento especial de exibir os exageros culinários, doces e iguarias a serem consumidas pela ruidosa família, reunida graças à ternura da data.

Naquela noite, porém, ao desdobrar a toalha, Yolanda não gostou da surpresa. A alvura do linho, magistralmente trabalhado com motivos natalinos, não se apresentava impecável como das outras vezes.

Na verdade, a cada ano, uma nova nodoazinha insignificante vinha somar-se às demais, que resistiam aos esforços das esfregadelas e à moderada ação dos alvejantes, sempre  empregados com muitíssima cautela. Não era difícil disfarçar essas pequeninas imperfeições, inevitáveis, adquiridas no decorrer do tempo. Bastava a oportuna providência de cobri-las, manhosamente, com um prato qualquer ou usar da cumplicidade elegante e insuspeita dos dois majestosos candelabros de prata que, além de iluminar e encantar os olhos, assumiam a nova função de disfarçar senões.

Desta vez, entretanto, era diferente. Como mascarar aquela feia mancha de vinho, fruto da taça partida por ocasião das núpcias da filha, no ano anterior?! Apesar de toda a persistência, a nódoa rosada insistia em derrotar esforços do afã de removê-la. E dizer-se que aquelas bodas — até pareciam mau agouro! — não haviam durado sequer um ano! Em dez meses, tudo consumado; casamento, viagem de núpcias pela Europa, desentendimentos, brigas, separação e divórcio! Dez meses apenas! Gente jovem não atura o que se aturava antigamente! Intolerância maior do que o amor? Ou amor menor do que o mútuo egoísmo? Sabe-se lá! A questão é que a mancha rosada ali estava a estigmatizar a alvura filial da toalha, jogando sombras sobre os brilhos natalinos.

Sem melhor solução, Yolanda mudou de lugar a bandeja de prata, que foi camuflar, satisfatoriamente a nódoa de triste memória.

Um suspiro doído veio-lhe do fundo da alma, traduzido num protesto; — Ah! filha... filha... por que tivera de escolher justamente a véspera do Natal para casar-se?! Um dia tão sublime, agora maculado pelo rompimento!

Desgostosa, empurrou para longe os maus pensamentos. Águas passadas não devem perturbar o fluxo do presente. Más lembranças devem ser enterradas, se possível, definitivamente.

Quanto à toalha, uma boa lavanderia resolveria a questão.

Assim que os ecos do "reveillon" se diluíram, cedendo espaço à euforia das novas esperanças, a toalha festiva veio de volta da lavanderia, outra vez imaculada, alva como alma de criança, passada e levemente engomada, dentro do maior requinte.

Yolanda não resistiu à tentação de comprovar a eficiência da tecnologia humana. Desdobrou cuidadosamente o linho, deslumbrada com o que via. Nem uma ínfima nodoazinha! Nem uma só mácula! Ninguém diria que aquela brancura de lírio já recebera desastroso banho de vinho, em não menos desastrosa noite de festa!

Testemunha das alegrias de tantos natais, a preciosa toalha parecia mais alva do que nunca! Até mesmo os bordados de tons vibrantes, estavam atenuados, o que já era um desperdício.

E foi aí que começou a tragédia: — Como num filme de terror, o linho rompia-se, esgarçado pela pressão dos dedos. A ação, nada criteriosa dos alvejantes, evidenciava-se.

Yolanda não acreditava no que estava acontecendo. A queridíssima toalha de Natal desfazia-se em trapos em suas próprias mãos!

Após o instante de perplexidade, o desapontamento e a raiva transformaram a estima em profundo desapego.

Vilipendiada, a toalha, tão querida, foi atirada ao lixo, sem a menor consideração! Fim de um ciclo tradicional de alegrias, esperanças e anseios. Tudo indelevelmente enrustido na página branca da velha toalha, agora descartada como imprestável.

Naquela mesma noite de janeiro, sem sinos, sem quitutes, sem magias natalinas, duas pequeninas mãos, ao vasculharem as latas de lixo adormecidas às portas dos casarões, encontraram a velha toalha rasgada, jogada fora com tanto desamor.

Chovia fino. Embora o verão fosse dono da noite, os braços do garoto pediam calor e aconchego. Aconchego de braços maternos, que desconhecia. Aconchego de calor diferente do calor da febre que o fazia tiritar.

Naquela toalha, tão desprezada quanto ele, o menino embrulhou a fome, embrulhou o corpo mirrado e, aninhado nos braços macios do linho que se esgarçava, dormiu o mais gostoso sono de toda a sua vida!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Daniel Maurício (Poética) 6

 

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) II


A MÚSICA NO TEMPO

Se a música no tempo é fascinante,
tem porquês, de uma língua natural,
a música, linguagem dominante,
onde quer que ela exista, é sempre igual.

Uma raça qualquer, por mais errante,
escutando uma nota musical,
ela sente o poder alucinante
dessa força sonora, universal.

Quem compôs essa sábia partitura,
teve a glória total dessa ventura,
e escreveu para sempre em seus anais;

Todo o encanto, das auras do infinito,
numa escala, de um jeito tão bonito,
tendo só, sete notas musicais!

(3. lugar na Espanha em 2017)
****************************************

BRISAS DE OUTONO


Quando as brisas do outono sopram mansas,
trazem sonhos de amor ao ser humano,
refazendo as perdidas esperanças
e afastando o temor do desengano.

Sou um amante das brisas, das mudanças,
da estação que me faz mudar de plano,
brisas soltas de outono são andanças
que me causam prazer, ano após ano.

Quando, à noite, não vejo os pirilampos,
a tristeza da treva invade os campos
e um cenário de dor, me faz tristonho…

Os murmúrios das folhas pelo chão,
são as vozes do outono, que se vão,
recitando os poemas do meu sonho!

(1. lugar na Argentina em 2017)
****************************************

CANTARES


Hoje a tarde morreu sem nostalgia,
na moldura do céu, que linda tela:
Era a noite bebendo a luz do dia
e as estrelas pintando outra aquarela.

A pestana do sol, já não se via,
mas a lua no céu era tão bela...
Que a cortina da noite se escondia,
para a lua brilhar na passarela.

Neste terno cenário, sobre um monte,
vislumbrava Delcy, lá no horizonte,
dando exemplo de tudo que se ufana...

Era a mestra dos Pampas, gargalhando,
sobre as nuvens, sentada, recitando
um dos lindos sonetos de Quintana!

(Homenagem aos 80 anos da poetisa Delcy Canalles – 2011)
****************************************

CREPÚSCULO E AURORA

Quando a luz do arrebol rasga a cortina,
e o clarão da manhã, o céu decora,
todo o orvalho respinga da campina
matizando de prata a luz da aurora!

A tristeza do sol se descortina,
ante a tarde que chega, e se apavora;
o crepúsculo triste na retina,
diz que um velho gigante também chora!

Ao nascer chega ungido de esplendor,
traz na luz, esperança, paz e amor,
mas à tarde começa a entristecer;

desse jeito caminha o sol do esteta;
De manhã, é feliz por ser poeta,
e à tardinha, é a luz do entardecer!

(1° lugar em Portugal em 2016)
****************************************

GEOMETRIA DO LABOR

Se esta vida é, de fato, uma disputa
de uma guerra sem trégua e, sem medida,
é o trabalho, uma regra de conduta,
que nos leva ao prazer, por toda a vida.

Cada passo é uma marca dessa luta,
pela trilha da estrada percorrida...
Muitos vivem felizes, sem labuta,
e outros morrem na luta mais sofrida.

Há uma regra esquisita e muito estranha,
pois quem muito trabalha, pouco ganha,
mas com o pouco que ganha, também ama,

e eu conheço ricaço e mais ricaço,
que acumula fortuna a cada passo-
e por tudo que tem, ainda reclama!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Parque (quase não) do Ingá

 

A primeira vez em que lá entrei foi em 1967, em companhia do prefeito Luiz de Carvalho. O local era ainda conhecido como “Bosque 1” – um pedacinho da antiga floresta em meio à qual a população pioneira construiu a garbosa urbe onde hoje a gente orgulhosamente mora.

Havia apenas uma trilha rústica, pela qual caminhamos até o miolo da matinha. Durante o percurso, Doutor Luiz foi chamando a atenção para alguns detalhes: o cheiro das plantas, o canto dos bem-te-vis e sabiás, uns macaquinhos saltando de galho em galho. Que pena aquele tesouro todo estar ali desaproveitado. Pior: um lugar tão bonito sujeito a incêndios e depredações, servindo até como esconderijo de malfeitores. Ele gostaria muito de transformar a área num ponto de encontro e recreio. Porém não teve tempo nem recursos. Deixaria o sonho em pauta para ser realizado pelo sucessor.

Por sorte o sucessor foi outro homem de forte sensibilidade e visão de futuro, o Doutor Adriano José Valente, que logo no início do mandato (1969) convidou o Doutor Aníbal Bianchini da Rocha para trocar ideias sobre a urbanização do bosque. Chamou depois os engenheiros e arquitetos da prefeitura e de imediato autorizou a elaboração do projeto.

Aproveitando o valãozinho que passava dentro da reserva, formou-se um lago. Ao lado construiu-se uma gruta, novas trilhas foram abertas, organizou-se um pequeno zoológico e se instalaram os equipamentos necessários. No dia 10 de outubro de 1971, pronto e lindo, o parque foi inaugurado e entregue à comunidade. Um festão. Vieram famílias inteiras de todos os bairros e até das cidades vizinhas. A criançada fez o maior alvoroço. Namorados disputando a vez para passear nos pedalinhos. Era o que faltava em Maringá – um clube do povo. Beleza.

Antes disso, todavia, enquanto se realizavam as obras, um problema provocara longa discussão: a escolha do nome. Estava quase certo que seria Parque Doutor Etelvino de Oliveira, tributo à memória de um médico ilustre e muito querido, que de fato merecia a honra. Mas para o parque se achou que seria mais adequado um nome lírico, telúrico.

Daí que num certo dia esteve na redação da “Folha do Norte” o então vereador e futuro deputado Antônio Facci. Estávamos na sala um grupo de jornalistas. Provoquei o Facci: “Vamos começar uma campanha para dar ao bosque o nome de Parque do Ingá. Você topa se aliar à gente e apresentar o projeto à Câmara?”.

Argumentamos que parques e jardins ganham muito mais charme quando têm poesia no nome – Quinta da Boa Vista, Parque do Ibirapuera... Além disso, seria uma justa e carinhosa homenagem à cabocla Maria do Ingá, inspiradora da canção que batizou a cidade.

Facci, que mais do que político era um poeta, assumiu na hora a causa. Fez um belíssimo discurso na Câmara e aprovou o projeto por unanimidade. Doutor Adriano sancionou feliz da vida. E em ata assim se inscreveu: o nome é Parque do Ingá.
===============================================
(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 27-8-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 413

 


Rubem Braga (Viúva na Praia)


Ivo viu a uva, eu vi a viúva. Ia passando na praia, vi a viúva, a viúva na praia me fascinou. Deitei-me na areia, fiquei a contemplar a viúva.

0 enterro passara sob a minha janela. O morto eu o conhecera vagamente. No café da esquina, a gente se cumprimentava às vezes, murmurando “bom dia”. Era um homem forte, de cara vermelha. As poucas vezes que o encontrei com a mulher ele não me cumprimentou, fazia que não me via; e eu também. Lembro-me de que uma vez perguntei as horas ao garçom, e foi aquele homem que respondeu, agradeci. Este foi nosso maior diálogo. Só ia à praia aos domingos, mas ia de carro, um “Citroen”, com a mulher, o filho e a barraca, para outra praia mais longe. A mulher ia às vezes à praia com o menino, em frente à minha esquina, mas só no verão. Eu passava de longe. Sabia quem era, que era casada, que talvez me conhecesse de vista. Eu não a olhava de frente.

A morte do homem foi comentada no café. Eu soube, assim, que ele passara muitos meses doente, sofrera muito, morrera muito magro e sem cor. Eu não dera por sua falta, nem soubera de sua doença.

E agora estou deitado na areia, vendo a sua viúva. Deve uma viúva vir à praia? Nossa praia não é nenhuma festa, tem pouca gente. Além disso, vamos supor que ela precise trazer o menino, pois nunca a vi sozinha na praia. E seu maiô é preto. Não que o tenha comprado por luto, já era preto. E ela tem, como sempre, um ar decente. Não olha para ninguém, a não ser para o menino, que deve ter uns dois anos.

Se eu fosse casado, e morresse, gostaria de saber que alguns dias depois minha viúva iria à praia com meu filho — foi isso o que pensei, vendo a viúva. É bem bonita, a viúva. Não é dessas que chamam a atenção. É discreta, de curvas discretas, mas certas. Imagino que deve ter 27 anos, talvez menos, talvez mais, até 30. Os cabelos são bem negros, os olhos são um pouco amendoados, o nariz direito, a boca um pouco dentucinha, só um pouco, a linha do queixo muito nítida.

Ergueu-se, porque, contra suas ordens, o garoto voltou a entrar n’água. Se eu fosse casado, e morresse, talvez ficasse um pouco ressentido ao pensar que, alguns dias depois, um homem — um estranho, que mal conheço de vista, do café — estaria olhando o corpo de minha mulher na praia. Mesmo que olhasse sem impertinência, antes de maneira discreta, como que distraído.

Mas eu não morri, e eu sou o outro homem. E a ideia de que o defunto ficaria ressentido se acaso imaginasse que eu estaria aqui a reparar no corpo de sua viúva, essa ideia me faz achá-lo um tolo, embora, a rigor, eu não possa lhe imputar essa ideia, que é minha. Eu estou vivo, e isso me dá uma grande superioridade sobre ele.

Vivo! Vivo como esse menino que ri, jogando água no corpo da mãe que vai buscá-lo. Vivo como essa mulher que pisa a espuma e agora traz ao colo o garoto já bem crescido. 0 esforço faz-lhe tensos os músculos dos braços e das coxas. É bela assim, marchando com a sua carga querida.

Agora o garoto fica brincando junto à barraca e é ela que vai dar um mergulho rápido, para se limpar da areia. Volta. Não, a viúva não está de luto, a viúva está brilhando de sol, está vestida de água e de luz. Respira fundo o vento do mar, tão diferente daquele ar triste do quarto fechado do doente, em que viveu meses. Vendo seu homem se finar. Vendo-o decair de sua glória de homem fortão de cara vermelha e de seu império de homem da mulher e pai do filho, vendo-o fraco e lamentável, impertinente e lamurioso como um menino, às vezes até ridículo, às vezes até nojento…

Ah, não quero pensar nisso. Respiro também profundamente o ar limpo e livre. Ondas espoucam ao sol. O sol brilha nos cabelos e na curva de ombro da viúva. Ela está sentada, quieta, séria, uma perna estendida, outra em ângulo. 0 sol brilha também em seu joelho. O sol ama a viúva. Eu vejo a viúva.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. RJ: Ed. do Autor, 1960.

Arquivo Spina 22 (Tânia Maria Alves)

 


Cecy Barbosa Campos (Cristais Poéticos) IV


AFLIÇÃO

Deparo-me com a página em branco
à minha frente,
pedindo para ser utilizada
e receber a escrita.
Entretanto, as palavras
presas a minha mente
perdem-se num emaranhado
de caminhos confusos
e não conseguem
adquirir vida.
****************************************

DESMEMÓRIAS


Tudo passa na vida.
Caminhos sem volta
deixaram marcas na face
e espadas invisíveis
atravessadas no peito.
As mãos — com lentidão,
tentam escrever as lembranças
que se confundem,
interrompidas
por parênteses de tempo.
Perdido o fio da meada
cruzo os braços
e esqueço as palavras.
****************************************

FLUIDEZ


Eu sou a água
que corre em tua direção
disposta a saciar
a tua sede.
Acompanho a tua forma
amoldando-me a ti.
Suavemente fluida
sigo teus contornos
abraçando as margens,
refletindo imagens
no murmúrio tranquilo
de carícias inauditas.
Sem deixar marcas
para onde for,
serei sempre
imprescindível à tua vida.
****************************************

INÍCIO E FIM

Venho do barro,
a matéria prima da criação.
A ele retornarei,
filha da terra
que me vai cobrir.
Prova da insignificância
e do nada que somos,
apesar de tentativas vãs
para mostrar importância.
****************************************

POESIA


Encontro-me sem trilhas,
perdida em descaminhos
que me levam
a lugar nenhum.
Sigo por veredas perdidas
em meio a florestas ignotas
sem admitir interferências
na intimidade das minhas escolhas.
De repente, por entre galhos,
troncos partidos e folhas,
brilha a luz que transfigura a dor
e inunda o coração
de Poesia.
****************************************

SOLUÇÃO


Procuro esconder
o que não quero ver
no fundo dos meus pensamentos
perdidos em turbilhão.
Das tempestades
devastadoras
que anuviaram uma vida,
restam apenas esboços indistintos
permeados de sombras.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Versos perplexos. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2019.
Livro enviado pela poetisa.

Malba Tahan (A Fantasia do Xeique)


A mulher louca é alvoroçada, é leviana, e não avalia o mal que pratica.
Davi, 9,13.

Há muito passava da meia-noite. A originalíssima noitada carnavalesca promovida pelo rico e nobre James Dudeney transcorria com um brilho incomparável. Nos quatro salões do palácio, luxuosamente ornamentados, reinava uma atmosfera de estonteante alegria e rara beleza. As orquestras vibravam sem cessar as saltitantes músicas americanas. De quando em vez eu sentia sob os pés, ao caminhar, um verdadeiro tapete de confetes e serpentinas. As fantasias mais custosas e mais exóticas desfilavam diante de meus olhos deslumbrados. Príncipes, rajás magníficos, duquesas com adereços de brilhantes e damas medievais (com seus chapéus vermelhos guarnecidos a ouro) faziam curioso contraste com piratas, espanholas, ciganas (com remendos em requinte de pura seda), camponesas turcas, gladiadores romanos e chineses. Havia ali figuras que evocavam todas as épocas da história e lembravam todos os climas do mundo.

Uma jovem, em esplêndida fantasia de Cleópatra, acercou-se de mim. Trazia os cabelos negros presos por fita prateada; as mangas de seu vestido eram listradas. Sob a gola, também listrada, de sua blusa, rebrilhavam fios de pérolas. Pompeava brincos de fantasia e pulseiras largas de ouro e esmalte. Fazia-se acompanhar, num requinte de luxo, por uma “escrava” de rosto bronzeado que agitava um grande leque de plumas brancas.

— Não danças? — perguntou-me, entreabrindo os lábios num sorriso encantador.

E rematou em tom brejeiro:

— Há pouco tive a impressão de que fugias de mim!

— Receio o ciúme de César! — respondi, tentando um galanteio de sabor histórico.

— Ora, ora — replicou amável, com seu belo e claro sorriso. — Pelo que vejo, estás esquecido das glórias de teu povo. Os árabes, sempre audaciosos e invencíveis, conquistaram e dominaram o Egito.

— Sim — concordei sem hesitar. — Bem sei que os árabes conquistaram o Egito. Mas essa incrível proeza só foi possível num século em que a irresistível Cleópatra não se achava mais no trono. Diante da graça e da beleza os árabes não vencem. São vencidos!

Aquele inofensivo diálogo com a rainha do Nilo foi interrompido com a súbita chegada do pecunioso James Dudeney, dono da casa. Ostentava modelar fantasia de Hamlet. A presença do milionário fez com que a sedutora Cleópatra se afastasse, seguida de sua não menos sedutora “escrava”.

— Preciso de teu auxílio, meu amigo — disse-me Dudeney em voz baixa, com ar preocupado. — Tenho a impressão de que se acha em nosso baile de hoje um convidado indesejável. Estou na dúvida. Não sei como agir no caso.

— Aponta-me o folião sobre o qual recaíram as flechas de tuas suspeitas — retorqui.

— É o xeique da faixa azul!

Eu já havia, realmente, atentado na figura soberba e distinta daquele cavalheiro que se exibia, entre os convivas de Dudeney, sob o disfarce de impecáveis trajes orientais. Duas ou três vezes, inspirado pela voz do meu sangue, levara as lentes da minha atenção sobre o pseudo muçulmano.

— Ali está ele — acudiu Dudeney, já impaciente, meio nervoso. — Repara!

O suspeitoso xeque, cujo rosto a máscara preta velava, aproximara-se vagaroso e ficara imóvel ao lado de um grande espelho, os braços cruzados, numa atitude discreta e nobre. Um albornoz de seda clara repousava-lhe comodamente sobre os ombros fortes. Cobria-lhe a cabeça belo kafié (1) branco com listras azuis, preso na altura da testa por finíssimo agal trançado de ouro e prata. Apertava-lhe a cintura uma faixa azul de onde pendia riquíssima espada toda cravejada de marfim.

— Sinto-me indeciso — tornou Dudeney. — Não sei o que devo fazer. Aquele homem tem um ar misterioso. Pretende passar por um árabe autêntico, pois na lista dos convidados é indicado por um nome tipicamente islamita. Repara, meu caro Hank. O nosso hóspede não conversa, só fala o árabe; não bebe; não dança; caminha de um lado para o outro observando com cuidado especial as damas mais formosas. A presença de um aventureiro iria empanar o brilho desta festa. O xeique da faixa azul será um árabe de verdade?

— Ser ou não ser, meu caro Hamlet — respondi, parodiando Shakespeare —, ser ou não ser! Vou apurar a verdade e deslindar todo esse mistério.

Acerquei-me do xeique, saudei-o muito amável e disse-lhe em puro idioma árabe:

— Hal lazem lak chay? (Deseja alguma coisa?)

Respondeu-me em tom delicado com um sorriso fino, exprimindo-se com absoluta correção:

— Mannoum! Ma lazem li chay. (Obrigado! Nada desejo no momento.)

Convidei-o cordialmente a ir comigo até a biblioteca. Ficamos a sós, e o xeique, num gesto de apurada elegância, arrancou a máscara que lhe cobria o rosto. Notei que se tratava de um homem relativamente moço e simpático. E, sem preâmbulos, assim falou:

— Percebi que minha presença nesta reunião carnavalesca despertou suspeita em Mr. Dudeney. E com toda a razão. No meio da brilhante sociedade que aqui se recebe, sob este acolhedor palácio, sou eu o único, digo-o com certa vaidade, que não se acha fantasiado.

— Como assim?

— Nada mais claro. Estes trajes com que me apresento diante dos convivas de Mr. Dudeney são aqueles que eu costumo vestir, nos dias de gala, quando em minha tenda, para além de Dareyn, (2) recebo os xeiques amigos para festejar o aniversário do Profeta ou o término do Ramadã. A roupa que ostento não é, pois, uma fantasia como julgam. É uma realidade.

— O senhor é, então, um xeique de verdade?

— Até onde esse título pode honrar um homem. O meu nome é Hassan el-Bourini ibn-Taufiq. Sou natural de Cham, mas tenho propriedades até em Tell Abou Jezid, onde as tâmaras são menos abundantes do que as lendas.

Interroguei-o mais uma vez com intransitiva curiosidade:

— E veio a esta festa especialmente para admirar a alta sociedade de Londres?

— De forma alguma — discordou, em tom muito grave, o xeique. — A minha presença nesta encantadora reunião tem um fim todo especial, um objetivo bem estranho: descobrir o paradeiro de uma joia roubada. Cabe-me, neste baile, entre serpentinas e canções brejeiras, realizar uma tarefa de caráter rigorosamente policial.

A intempestiva declaração do xeique caiu sobre mim como uma bola de ferro sobre um copo de cristal. Sentia-me despedaçado. Observei muito sério:

— Sou amigo íntimo de Mr. James Dudeney. Peço-lhe, portanto, meu caro xeique Hassan el-Bourini ibn-Taufiq, que esclareça todos os pontos obscuros desse mistério. Asseguro-lhe, sob palavra, que se a justiça do caso estiver do seu lado, o senhor terá completo apoio neste palácio. A joia roubada será apreendida e o criminoso entregue à polícia.

Depois de acender lentamente o seu cigarro, o xeique, ao cabo de breve pausa, narrou-me o seguinte:

— Quando cheguei a esta capital, vindo de Damasco, fui apresentado a uma certa sra. Hopkins, esposa de opulento industrial de Manchester. Vendi a essa senhora, por solicitação de um joalheiro sírio, precioso colar de pérolas no valor de 1.500 libras. Recebi anteontem chamado urgente da sra. Hopkins. Fui procurá-la e encontrei-a enferma em consequência de um abalo cardíaco. Contou-me a boa senhora que o colar, por mim vendido duas semanas antes, havia sido roubado. Perguntei-lhe se havia levado o caso ao conhecimento das autoridades. “Nada fiz nesse sentido”, respondeu-me. “Meu marido, por motivos políticos, quer evitar o escândalo. O colar foi roubado a uma de minhas filhas.” E a sra. Hopkins inquiriu-me aflita: “O senhor seria capaz de reconhecer o colar roubado?” Declarei que poderia apontá-lo no meio de mil. Aquelas pérolas de um colorido especial, azul poente, eram inconfundíveis. Eu as tivera em minhas mãos durante mais de dez anos! “Pois bem”, tornou a sra. Hopkins. “Tenho certeza de que a pessoa autora do furto irá ao baile, no palácio de Mr. Dudeney, com o meu colar. Já fiz com que todas as pessoas de minhas relações fossem avisadas de que me encontro impossibilitada de sair. Obterei para o senhor um convite para essa reunião. É um grande favor que lhe peço. Compareça fantasiado a essa festa e investigue; observe tudo. O meu colar estará presente e será facilmente encontrado!”

O xeique fez ligeira pausa e logo retomou o fio da narrativa:

— Aqui vim, portanto, em atenção ao pedido da sra. Hopkins. Longa e cuidadosa foi a investigação a que procedi. A princípio temi fracassar. Revestido de muita força de ânimo, não me deixei envolver pela onda desta perdulária alegria. Aproximava-me das damas não para admirar a beleza dos olhos, a alvura dos braços bem torneados, mas sim para apurar a legitimidade dos colares e certificar-me do colorido das pérolas.

— E conseguiu descobrir o colar da sra. Hopkins? — indaguei num ímpeto.

— Sim — confirmou serenamente o xeique. — Já o encontrei. Enfeita o gracioso pescoço de uma das jovens mais bem fantasiadas…

— A bela Cleópatra?

— De forma alguma. Essa “egípcia” formosa apresenta-se com três colares, é verdade, mas todos três mais falsos do que os antigos deuses dos faraós. Certifiquei-me de que o colar da sra. Hopkins está com uma graciosa princesa hindu…

— A princesa do turbante cor-de-rosa?

— Precisamente. Deve ser esposa de riquíssimo marajá, pois carrega na testa uma estrela de rubis do Oriente.

A situação devia ser enfrentada com a maior serenidade. A dama (a princesa hindu, do turbante cor-de-rosa), acusada tão gravemente pelo xeique, era a própria esposa de meu amigo James Dudeney, o dono da festa.

Disse, pois, um tanto desconcertado, ao xeque Hassan ibn-Taufiq:

— Esse caso será esclarecido. Precisamos, porém, agir com a máxima delicadeza. Se a sua denúncia tiver o cunho da verdade, o colar será apreendido e, dentro de 24 horas, restituído à sua dona legítima. Peço-lhe mil desculpas.

Redarguiu o xeique:

— Diante de sua declaração, nada mais tenho a dizer. Dou por finda a minha espinhosa missão nessa casa tão alegre e acolhedora. Vou partir imediatamente. Queira apresentar a Mrs. e Mr. Dudeney as minhas homenagens e os meus agradecimentos. Uassalã! (3)

Conduzi o ilustre xeique até a porta do palácio e observei ainda quando ele tomou o carro que o devia levar até o hotel. Ao voltar, esbarrei, na escada, com o animadíssimo Dudeney.

— E então? — interrogou-me, tomando-me pelo braço. — Que pretendia o xeque?

— Nada — respondi, improvisando uma mentira qualquer. — Um sonhador! Queria descobrir aqui, no meio dos nossos convidados, uma odalisca que ele conhecera, casualmente, no palácio do sultão em Istambul!

Dudeney argumentou, agitando os punhos:

— Logo vi! Uma fantasia do xeique!

No dia seguinte, o colar foi entregue à sra. Hopkins e a verdade do caso até hoje ficou em segredo.

O nobre e generoso Dudeney, na sua boa fé, de nada desconfiou. Evitei que ele tivesse insanável desgosto ao saber do roubo do colar. Jamais poderia pairar sobre o meu bom amigo a menor sombra do ato delituoso.

Que culpa pode, realmente, cair sobre um homem digno e honrado que casa com uma jovem cleptomaníaca?

As palavras do sábio encerram a grande verdade: a mulher louca é alvoroçada, é leviana e não avalia o mal que pratica.
****************************************
NOTAS

1 kafié – peça de vestuário.
2 Dareyn – pequena povoação, na Síria.
3 Uassalã! – é uma forma de despedida usada pelos árabes.


Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais. RJ: Record, 2013.