sábado, 13 de abril de 2024

Filemon Martins (Aquarela de Trovas) 32

 

Aparecido Raimundo de Souza (O eterno “Menino maluquinho” foi morar lá no céu)

 

NOS DEIXOU neste sábado, 6 de abril p.p, o escritor, pintor, chargista e cartunista Ziraldo Alves Pinto, o eterno pai do fantástico “Menino Maluquinho.” Seus traços inconfundíveis e a sua criatividade bucólica e pastoril marcaram gerações. E continuarão marcando, ad aeternum. A notícia do seu falecimento, embora esperada pela passagem voraz do tempo inexorável, chegou a todos nós, como um sopro imenso de tristeza magoando profundamente nossos corações. 

Nascido em Caratinga, nas Minas Gerais, aos 24 de outubro de 1932, Ziraldo partiu do nosso meio aos 91 anos. Morava no bairro da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro e nos deixou, como sempre desejou: em seu apartamento, dormindo, evidentemente sonhando com novas criações que certamente seguirão os mesmos passos do “Flicts”; “Bichinho da Maçã”; “Um Amor de Família”; “Uma Professora Muito Maluquinha”; “O Menino Marrom”; “Os Dez Amigos”; “Chapeuzinho Amarelo (ilustrações)”; “As Flores da Primavera”, e tantos mais. 

Partiu ao lado da segunda esposa, dona Marcia Martins, dos filhos Daniella Tomas Pinto, roteirista e cineasta, Antônio Alves Pinto, compositor de trilhas sonoras e da diretora teatral Fabrízia Alves Pinto. O escritor deixou um legado de linhas e cores, de risos e reflexões. Sua extensa obra (repleta de personagens que se tornaram ícones culturais), permanecerá viva, dialogando vivamente com o futuro e inspirando novos talentos e criadores de sonhos. Seu livro mais conhecido, “O Menino Maluquinho”, com a sua panela na cabeça e uma energia indomável, representará, talvez a mais pura expressão do espírito de Ziraldo: aquele homem simples e alegre, irreverente e profundamente humano. 

Em suas crônicas Ziraldo retratou o Brasil com uma honestidade rara, apontado as suas mazelas sociais sempre com pitadas de humor e esperança. Sua partida é um momento de reflexão sobre o papel do artista na sociedade. Ele nos ensinou que a magia da arte não é apenas para ser vista como um espelho refletindo a realidade. Sobretudo, deve ser notada e sentida, ou melhor, vista e revisitada como uma janela para tudo aquilo que podemos ou pretendemos ser. 

Sendo assim, o país inteiro chora a perda de um de seus maiores artistas. Todavia, em paralelo, celebra a fortuna de ter sido palco para a sua inesgotável genialidade. Certamente, agora, esse cidadão que aprendemos a amar e a respeitar desenha lá na imensidão das estrelas, deixando para nós a tarefa de continuarmos a contar as histórias que ele tanto amava. Que a sua memória seja preservada nas páginas dos futuros livros infantis e nas lembranças afetuosas e imorredouras de quem cresceu acompanhando as suas incríveis e fantásticas aventuras.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Laércio Borsato (Nas Asas da Poesia) = 1 =


ESCOLHAS

Somos sempre tentados a fazer escolhas.
Todos os momentos, a vida assim revela:
Pisamos, ao caminhar, por sobre folhas
Que poderiam ser tema de uma linda tela!

Procuramos sempre escolher um caminho
Que nos direciona para um mundo bom.
Mas muitas vezes perturbamos o vizinho,
Quando esquecemos de baixar o som.

E no trânsito vemos em nosso dia a dia
Completo alheamento! Falta cortesia...
Sempre é negado uma simples preferência.

Muitos preferem uma vida bem agitada,
Correndo em busca, muitas vezes do nada,
Ou talvez, o fim, prematuro da existência!
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MARCAS DOS TEMPOS

Reporto aos meus guardados da memória:
Tempos ditosos, vida plena de alegria.
A tinta que escrevemos nossa história,
Tinha algo envolto em amor e poesia...

As marcas dos tempos ficaram sem glória.
Já não temos o sabor da companhia...
É bem diferente a nossa trajetória,
Muito ao contrário do que foi um dia!

Já não ouves minha voz, querida minha!
Ouves, talvez, quando chega à tardinha,
Soar, na voz dos ventos, os meus madrigais.

Inserindo em teu coração, docemente,
Notas suaves que são simplesmente,
Lembranças dos tempos que não voltam mais!
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NAS ASAS DA ILUSÃO

Sei que não posso construir um vigamento,
Que me faça transpor, limites da cidade;
Talvez, em sonho, possa usar asas do vento,
E usufruir, totalmente, minha liberdade!

Posso, todos os dias, mirar o firmamento,
Sentir do sol o calor e luminosidade;
A chuva molhar a terra e produzir alimento:
Sustentáculo real de toda humanidade...

À noite, é gratificante, ver as estrelas.
Não posso abraça-las, mas, contento em vê-las.
Seu cintilar constante no etéreo universo.

Sei que não posso realizar tudo que sonho,
Mas, nas asas do pensamento me transponho...
Sinto-me leve e solto, ao fim de cada verso!
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SAUDADE DE MINHA TERRA

Desde a infância aprecio a música erudita,
É bom ver no pedestal, grandes compositores.
Certas obras famosas ao serem escritas,
Os desígnios de Deus foram precursores...

Uma música suave nos acalma e suscita
Um enlevo indizível, traz paz nos arredores.
Vemos o mundo de uma forma mais bonita;
Amamos mais a vida, valorizamos as flores!

Não só o erudito, mas no canto popular,
Vemos páginas, de uma beleza sem par;
Versos simples que muita verdade encerra.

Tributo a Gerson Coutinho da Silva o Goiá.
Cantou seu torrão, prova de amor maior não há,
Pelos céus do Brasil, SAUDADE DE MINHA TERRA!
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TRIBUTO À ROSANA

Sempre de manhã, em minha vida diária,
No trabalho, algo se tornou rotina:
Dirijo-me a próxima agência bancária,
Cumprindo o fadário, que a mim destina.

Cada funcionário, cada funcionária,
Tem um porte que agrada e fascina.
Ao invés de afluência mercenária,
A gentileza sobressai e predomina!

Há um ambiente de paz e segurança,
A competência inspira confiança,
Pelo dom, que de cada ser emana!

Eleva-me! Já demonstro regozijo,
A espreitar em cada rosto um sorriso,
...E a simpatia sem par,...DE ROSANA!
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UMA TARDE NA PRAIA

Vejo além o astro rei, com ares sorridente.
Seus raios luzem fixos, no extremo da praia,
Onde as águas dosadas, em cores diferentes,
Camuflam a touceira da verde samambaia...

Navego em meu barco tosco, calmamente,
Curtindo a beleza da tarde que desmaia.
Um sino lá bem longe, tange molemente.
Uma onda bate na pedra, espuma, espraia!...

As marrecas alçam voo, rumo a seus ninhos...
Milhares vão a bando bem de mansinho,
Como uma escolta, pelos ares se encurvando...

Vê-se aos pouco, multidão de pirilampos,
Perambulando céleres, aos trancos e arrancos...
Milhões de brancas luzes, acendendo e apagando!…
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VOZES DA NATUREZA

Trituradas à fúria dos redemoinhos,
As folhas secas pulverizam o canteiro;
Os colibris com bicos longos e traquinos,
Colhem néctar das flores o tempo inteiro!

Ouve-se uma cantiga forte estridente:
Coro marcial das cigarras cantadeiras;
Na trilha as formigas em ritmo cadente,
Armazenam sustento pra estação inteira.

À tarde no terreiro reúnem-se as rolinhas
Fazendo caracol sobre a areia branquinha,
Em harmonia e total desprendimento...

Quando o sol se põe o silencio ronda a terra,
Um lobo uiva tristemente, longe, na serra,
A lua surge com todo seu deslumbramento!
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Fonte> http://www.sonetos.com.br/meulivro.php-a=119.htm (site desativado) 
Acesso em 15 janeiro 2016.

Recordando Velhas Canções (Onde Anda Você?)


Composição: Hermano Silva / Vinícius de Moraes

E por falar em saudade
Onde anda você? Onde andam os seus olhos
Que a gente não vê?
Onde anda esse corpo
Que me deixou morto de tanto prazer?

E por falar em beleza
Onde anda a canção que se ouvia na noite?
Nos bares, de então, onde a gente ficava?
Onde a gente se amava em total solidão?

Hoje, eu saio na noite vazia
Numa boemia, sem razão de ser
Da rotina dos bares
Que, apesar dos pesares, me trazem você

E por falar em paixão
Em razão de viver
Você bem que podia me aparecer
Nesses mesmos lugares
Na noite, nos bares
Onde anda você?

Hoje, eu saio na noite vazia
Numa boemia, sem razão de ser
Da rotina dos bares
Que, apesar dos pesares, me trazem você

E por falar em paixão
Em razão de viver
Você bem que podia me aparecer
Nesses mesmos lugares
Na noite, nos bares
Onde anda você?
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A Melancolia da Saudade em 'Onde Anda Você'

A música 'Onde Anda Você', interpretada por Tiago Nacarato, é uma expressão lírica da saudade e da busca por um amor que se foi. A letra aborda a temática da ausência e do desejo de reencontro, elementos comuns em canções que tratam de relações amorosas que deixaram marcas profundas.

O refrão 'E por falar em saudade, onde anda você?' é um questionamento retórico que revela a dor da separação e a esperança de que a pessoa amada possa reaparecer. A repetição dessa pergunta ao longo da música cria um sentimento de busca incessante, refletindo a dificuldade de seguir em frente. A menção aos 'olhos que a gente não vê' e ao 'corpo que me deixou morto de tanto prazer' intensifica a sensação de perda e a memória dos momentos íntimos compartilhados.

A canção também faz referência a lugares e momentos passados, como os bares e a noite, que agora são vazios e sem sentido sem a presença da pessoa amada. A 'boemia sem razão de ser' e a 'rotina dos bares' são metáforas para a vida que continua, mas que perdeu seu brilho e propósito. A música de Tiago Nacarato, portanto, é um retrato da melancolia e da esperança que acompanham a saudade, um sentimento universal e atemporal.

Mia Couto (A Gota)

Após os bombardeios, a cidade ruiu, pedra sob pedra. O que antes era chão, é agora um imenso tapete de cinzas. Por entre ruínas, nem gente, nem bicho, nem planta. Resta um único sinal de vida: dona Teófila e o seu marido, Diamantino. Vivem no que restou da antiga casa, sobrevivem do que sobrou na velha despensa. Todas as manhãs, dona Teófila pede ao marido que vá conferir as reservas de comida, as latas de conserva, os sacos de arroz, os garrafões de água. E o marido, que é cego, sorri, complacente, e faz de conta que cumpre com o que lhe foi mandado.

Ao final da tarde, quando o calor amaina, o casal sai dos seus escombros privados e atravessa em silêncio a defunta paisagem. Com passo trémulo, Diamantino empurra a cadeira de rodas, guiado pelas instruções murmuradas com firmeza pela esposa. Protegida por um sombreiro, a velha senhora vai empertigada como se as ruínas fossem o seu reino, a cadeira fosse o seu trono e Diamantino fosse o seu povo.

— Devagar, Diamantino! — comanda dona Teófila. E acrescenta: — Estás farto de saber que esta poeira é um veneno.

O marido não percebe nada do que ela diz, as palavras dela enroscam-se no tecido da máscara que lhe cobre o rosto. A própria voz de Teófila lhe parece estranha, depois de atravessar o pano que ela teima em usar sobre a boca e o nariz.

Desde os bombardeamentos que não chove nem sopra a mais tênue brisa.

Foi como se as bombas tivessem rasgado e vazado as nuvens. Os sulcos das rodas e as pegadas de Diamantino são o único desenho vivo sobre a poeira perpétua dos escombros. Acontece como na superfície lunar: toda a pegada se torna eterna.

O percurso é o mesmo de sempre: dirigem-se às ruínas da casa dos vizinhos, os Pimentas. Ali se senta dona Teófila, numa mutilada sombra, enquanto vai desatando falas, como se alguém escutasse do outro lado do muro. E vai revelando, num longo rosário, peripécias e segredos do marido.

Aos poucos, ali se desfiam lembranças de uma vida conjugal que o próprio Diamantino desconhecia. Até que, cansado de tanto esperar, o homem a faz regressar à realidade.

— Ponha na sua cabeça, mulher: não há ninguém do outro lado do muro, está tudo morto, mais do que morto — vai avisando Diamantino. E depois, entediado, ele reclama: — Por que tanto insistes em falar de mim, mulher?

— Para que essa maldita Marlu morra de ciúmes. — responde dona Teófila.

Um sol implacável escoa por entre uma espessa e persistente bruma.

Apesar desse céu fechado — de onde para sempre se ausentou o sol e a lua — dona Teófila não abdica do seu guarda-sol. Protege-se, diz ela, da poeira que cai das nuvens.

— Os pássaros já começaram a voltar — afirma dona Teófila. — Gostava que os pudesses ver, Diamantino.

— A verdade é que não os escuto — avisa o marido.

— Mas já andam por aí — insiste dona Teófila. — Não tarda que comecem a cantar.

— Onde pousam esses pássaros, se as árvores morreram?

— Se fosses mulher educada, saberias da existência dos albatrozes. Pousam no próprio voo, morrem sem tocar no chão.

Na velha cidade tudo se tornou chão: um chão tão deitado e macio que eles não escutam os próprios passos. E um outro chão vertical, feito desse céu de onde se penduram restos de paredes. Diamantino traz a máscara caída sobre o queixo. A mulher corrige-lhe esse descuido enquanto adverte: — Esse pano está imundo, da mesma cor deste mundo. Assim que voltarmos à casa, vais lavar esse trapo.

— Não vou desperdiçar água, os panos que esperem.

— Olha, está a passar agora uma garça! — proclama dona Téofila, com entusiasmo. E repete o anúncio da celestial descoberta, sabendo das dificuldades auditivas do marido. — É pena não veres, é tão branca, parece um anjo...

— Por que é que mentes, mulher? Os pássaros, a vizinha, a garça. Tudo mentira, tudo pura mentira.

— Às vezes, meu velho, mentir é a única maneira que nos resta de rezar.

O marido insiste: já não há gente vivendo entre as ruínas. Dona Teófila opõe-se. Há gente, sim. Se o marido fosse mulher e não fosse cego, saberia que os sobreviventes perambulam como sombras por detrás dos escombros.

Já não restam portas nem paredes, é verdade. Mas as pessoas têm artes mágicas de se enclausurar. “Somos os mais competentes carcereiros de nós mesmos”. É o que diz dona Teófila.

— Quando falas, mulher — reclama o homem —, espalhas cuspe e levantas poeira e ambos são venenos mortais.

— Tem que haver pessoas, Diamantino — insiste a esposa. — Se assim não fosse, já teríamos morrido. É que o ar precisa de gente — prossegue dona Teófila. — Se tivesses estudado, Diamantino, saberias que o ar, para se manter vivo, precisa de ser respirado. As pessoas são o nosso oxigênio.

Diamantino levanta os braços da cadeira e limpa o rosto com a própria máscara. As mãos e os gestos parecem desencontrados como acontece com quem nunca viu o seu próprio corpo.

— Falas de mim, Diamantino, falas dos meus cuspes e das minhas poeiras e devias ter vergonha na cara — acusa dona Teófila. — Continuas a sonhar com essa maldita Marlu. Eu bem te escuto a murmurar o nome dela. Tens que passar a dormir de máscara, para não me contaminares.

— Não entendo nada do que dizes, mulher — comenta Diamantino.

— Às vezes me pergunto como é que um cego sonha? — interroga-se dona Teófila. — Desconfio que à noite deixas de ser cego.

Diamantino sorri com um riso oblíquo. A mulher fala sozinha. É então que o marido percebe de que Teófila se levanta e caminha por si mesma.

O cego sabe que o vestido dela é de um vermelho intenso, como sabe que a sua camisa é azul-marinho e imagina que aquelas duas manchas coloridas visitarão os seus sonhos. No início, Diamantino percebe que a esposa vai atravessando a rua. Aos poucos, ele vai deixando de escutar o suave ruído dos passos dela e, de novo, todos os silêncios voltam a tornar-se indistintos.

Usando a cadeira de rodas como se fosse uma bengala, Diamantino transpõe a praça até chegar aos destroços da casa da Marlu Pimenta. Deve ser ali que a sua esposa se encontra. O cego vai evoluindo, cauteloso, entre as brumas até que esbarra com um vulto. E logo se apercebe de que ali se aglomeram sombras, imóveis e silenciosas como pedras. Assusta-se, primeiro, o cego Diamantino. Depois escuta uma das sombras que lhe dirige a palavra.

— Veio ao funeral, Diamantino?

— Funeral? Funeral de quem?

— Da Marlu. Morreu esta noite.

Diamantino tomba desamparado sobre a cadeira. Leva a mão ao rosto para se certificar de que ainda existe.

— Não sei o que dizer — murmura ele. — Sempre pensei que Marlu não tivesse sobrevivido aos bombardeamentos.

— O que se passa, Diamantino? — espanta-se um dos vizinhos. — Desde que ficou viúvo, não houve tarde em que o senhor não tivesse levado a passear a nossa querida Marlu.

— Ainda ontem saíram os dois, já não se lembra? — pergunta um outro vizinho.

Diamantino retira-se, os sapatos raspando as cinzas. Regressa à casa, o universo pesando-lhe nos ombros. Sempre soube vencer o escuro. Mas reconhece que lhe faltou discernimento para admitir que, apesar das cinzas, a cidade se mantinha viva, na companhia dos vivos. Se alguém enviuvara tinha sido apenas ele.

Dirige-se ao velho poço e ali se deixa ficar sentado na cadeira de rodas, o braço estendido sobre uma sombra aberta entre um pequeno monte de pedras. Num dado momento, escuta passos de alguém que se aproxima. São passos de mulher, disso ele está certo. E reconhece o silêncio de quem chegou. Depois o cego faz pender mais o braço sobre o chão, aponta para a sombra entre as pedras e pergunta: — Já germinou?

— Já despontam duas pequenas folhinhas — responde uma voz toldada pela comoção.

Do braço de Diamantino tomba uma gota de suor. E ele jura que é a chuva que regressa. Como jura que um vulto de mulher se vai afastando por entre o nevoeiro. Às vezes, mentir é a melhor forma de rezar.

Fonte> Mia Couto. O Caçador de Elefantes Invisíveis. Editorial Caminho, 2021.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

José Feldman (Versejando) 135

 

Contos das Mil e Uma Noites (Um Cádi astuto)

Não esqueçamos que Deus colocou os juízes no mundo para julgar as aparências. É somente Ele que julgará as intenções e os pensamentos escondidos.

Conta-se que havia certa vez no Cairo um cádi que cometeu tantas prevaricações e pronunciou tantos julgamentos iníquos que foi demitido de seu alto ofício e teve que viver dos recursos de sua engenhosidade.

Um dia, quando sua cabeça estava tão vazia quanto seu bolso e seu bolso tão vazio quanto seu estômago, chamou o único escravo que lhe restava e disse-lhe: 

– “Estou adoentado hoje e não posso sair de casa. Para nos sustentar, deves ou percorrer as ruas à procura de algum biscate ou enviar-me algum infeliz que precise de um parecer jurídico.” 

O escravo saiu com a intenção de molestar algum transeunte e arrastá-lo até o juiz para ser multado. Assim, mal cruzou com um cidadão pacífico carregando um cesto no ombro, tropeçou nele e enviou-o ao chão. A vítima levantou-se furiosa e avançou para castigar o agressor. Mas quando reconheceu nele o escravo do cádi, virou as costas e fugiu de encontro tão perigoso. 

– “Todos me conhecem como conhecem meu amo,” resmungou o escravo desanimado. “Devo achar outros meios.” 

Na primeira esquina, cruzou com um homem levando uma bandeja com um magnífico peru, recheado e guarnecido com tomates e alcachofras. Seguiu-o e viu-o entrar numa cozinha pública e entregar a ave ao mestre do forno, dizendo que voltaria para apanhá-la uma hora mais tarde. 

– “Esta é a minha oportunidade,” decidiu o escravo. 

Menos de uma hora depois, entrou na cozinha pública, dizendo: – “Salve Mustafa!” 

O mestre do forno reconheceu-o e respondeu: ”Salve Mobarak! Há muito tempo que meus carvões nada assam para teu amo. Trouxeste algo hoje?”

- Nada, exceto o peru.

- Mas este não te pertence, meu irmão.

- Não fales assim, ó xeque. Eu vi esse peru sair do ovo materno, alimentei-o, matei-o, recheei-o e o enviei a ti.

- Se for assim, estou pronto a te entregar - disse o cozinheiro – Mas que direi ao homem que o trouxe?

- Acho que ele não voltará. – replicou Mobarak num tom evasivo. – Mas se voltar, ele deve gostar de uma boa piada. Poderás dizer-lhe que tão logo o peru foi colocado no fogo, deu um grito agudo e voou. Agora, dá-me logo aquela ave, por favor. Acho que já está bem assada. 

O cozinheiro riu e entregou o peru a Mobarak, o qual correu para a casa do cádi e ajudou-o a limpar o prato. Quando, minutos depois, o dono do peru voltou para levá-lo, o cozinheiro disse-lhe: “Tão logo coloquei-o no forno, deu um grito agudo, voou para longe, e não voltou mais.” 

O homem não gostou nada da piada e gritou com raiva: “Ó nada, ousas brincar nas minhas barbas?” 

Das palavras passaram às imprecações e das imprecações aos socos. Uma multidão se formou em volta deles. “Estão brigando acerca da ressurreição de um peru recheado,” disseram os vizinhos, a maioria dos quais apoiavam o cozinheiro cuja honestidade nunca fora posta em dúvida. 

Entre os espectadores, havia uma mulher grávida. Quando o cozinheiro aplicou um pontapé no seu adversário, o golpe se desviou e atingiu a mulher, que emitiu um grito igual ao de uma galinha ultrajada e abortou na hora. Seu marido, informado, correu com um cacete enorme na mão, gritando: “Vou sodomizar este cozinheiro e seu pai e seu avô! Vou eliminar toda a raça dos cozinheiros da face da terra!” 

O mestre do forno, não querendo enfrentar essa fúria, fugiu, subiu ao terraço e deixou-se cair no terraço vizinho. Quis o destino que ele caísse com seu peso enorme sobre um mouro que dormia num canto. As costelas do mouro foram quebradas, e ele morreu na hora. Os outros mouros acorreram e prenderam o cozinheiro, e arrastaram-no até a casa do juiz. O dono do peru e o marido da mulher grávida juntaram-se a eles. Armando-se de seu ar mais solene, o cádi começou por recolher depósitos dobrados de cada litigante e, apontando o dedo para o primeiro réu, o cozinheiro, perguntou: “Que tens a dizer a respeito do peru?” 

Achando que era melhor aderir à tese do escravo do juiz, o cozinheiro respondeu: “Por Alá, ó representante da justiça humana e divina, assim que coloquei a ave no forno, emitiu um grito agudo e, mesmo recheado e guarnecido, levantou voo, foi-se e não mais voltou.”

Ao ouvir essas palavras, o dono do peru gritou: “Filho de cachorro, ousas contar tais tolices a nosso amo, o cádi?” 

Mas o cádi repreendeu-o com indignação: “E tu, tens a audácia, ó ímpio infiel, de duvidar de que Aquele que ressuscitará todas as criaturas no Dia predestinado, recolhendo-lhes os ossos dispersos pelos quatro cantos da terra, é incapaz de devolver a vida a um simples peru que tinha ainda a totalidade de seus ossos e só lhe faltavam as plumas?”

Impressionada com a argumentação do juiz, a multidão gritou: “Glória a Alá que ressuscita os mortos!” e pôs-se a vaiar e apupar o dono do peru até que ele foi embora, lamentando sua falta de fé.

Então, o cádi virou-se para o marido da mulher que havia abortado e perguntou-lhe: “E tu, que tens contra este homem?” O marido expôs sua queixa.

E o juiz pronunciou a seguinte sentença: “O caso é claro. O cozinheiro causou sem dúvida o aborto com o golpe que desfechou na mulher. A lei de Talião se aplica. Tu, o marido lesado, ganhaste a tua causa. Autorizo-te, portanto, a levar tua mulher à casa do réu e deixá-la lá até que esteja grávida outra vez. Também poderá continuar a viver com o réu e às suas custas até o sexto mês de gravidez, já que o aborto aconteceu no sexto mês da primeira gravidez. 

Ouvindo essa sentença, o marido declarou: “Ó nosso amo o cádi, desisto de minha queixa. Possa Alá perdoar meu adversário.

Abordando então o caso do mouro, perguntou o cádi aos seus parentes que acusação faziam ao cozinheiro. Falaram todos ao mesmo tempo, amaldiçoando o cozinheiro, apontando para o cadáver e clamando pelo preço do sangue.

Sentenciou então o juiz: “A evidência é decisiva. A indenização é devida. Preferis que seja paga em dinheiro ou em sangue?”

- Em sangue, gritaram. Sangue por sangue.

– Seja, proclamou o juiz. Levai este cozinheiro, enrolai-o na mortalha do defunto e colocai-o por baixo do minarete da mesquita do sultão Hassan. Então, o irmão da vítima subirá até o minarete e saltará de lá sobre ele, esmagando-o da mesma forma que ele esmagou a vítima... Quem de vós é o irmão do morto? 

Um certo mouro, que parecia ser o líder do grupo, levantou-se e declarou: “Ó nosso amo o cádi, retiramos a nossa queixa contra este homem. Possa Alá perdoá-lo!”

E saiu, seguido por todos os membros de sua tribo. A multidão dispersou-se, maravilhada com a equidade, sutileza e os profundos conhecimentos jurídicos do cádi. 

Quando os ecos do processo atingiram os ouvidos do sultão, restaurou o cádi nas suas altas funções e demitiu o honesto homem que o havia substituído.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 5


CÉU E MAR

O dia marinheiro
todo vestido de sol branco
andava navegando com os marujos
de solavanco em solavanco
a prometer-lhes mundos nunca vistos nem sonhados

em mares nunca antes navegados
tudo por conta de outro dia
que mais adiante aparecia
e a mesma coisa prometia.

Luas marítimas, logo após,
nadavam no silêncio da amplidão
por onde a noite, caravela de carvão
levava a bordo uma porção de estrelas nuas.

Como era doída no outro dia
a dor da repetição!
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CIDADEZINHA DO INTERIOR

Uma ermida e um curral
como que para dizer, por inocência,
que o Menino Jesus não nasceu entre rosas,
mas entre bois.

Logo depois brota a cidadezinha branca.
É uma menina, ainda descalça.

As casas tortas de janela azul
dançam de roda, da mãos dadas.

Há duas bandas de música, logo de começo,
uma da oposição e outra dos canários.
Todos os dias da semana são domingos de ramos.

Dentro da ermida
nossa Senhora brinca de pular corda num arco-íris.

Cada enterro parece uma festa
e cada procissão lembra um rio de gente. . .
Não há iluminação, há muitas luas.
E os bois passeiam pelas ruas, fundadores.
Até que um dia o legislador das posturas municipais se impacienta
e manda proibir os bois de passearem nas ruas.
Como se a origem da cidadezinha branca não fosse um curral
e como se o Menino Jesus não houvesse nascido entre bois
quem sabe se o legislador das posturas municipais
pensa que o Menino Jesus nasceu entre rosas?

Se pensa, é por inocência.
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COMPETIÇÃO

O mar é belo.
Muito mais belo é ver um barco
no mar.

O pássaro é belo.
Muito mais belo é hoje o homem
voar.

A lua é bela.
Muito mais bela é uma viagem
lunar.

Belo é o abismo.
Muito mais belo o arco da ponte
no ar.

A onda é bela.
Muito mais belo é uma mulher
nadar.

Bela é a montanha.
Mais belo é o túnel para alguém
passar.

Bela é a nuvem.
Mais belo é vê-la de um último
andar.

Belo é o azul.
Mais belo o que Cézanne soube
pintar.

Porém mais belo
que o de Cézanne, o azul do teu
olhar.

O mar é belo.
Muito mais belo é ver um barco
no mar.
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CONSCRITO

Sofro, não só por mim mas pelos outros,
dentro da ordem que me foi imposta.
Não flores levo, mas um ramo, apenas,
de perguntas – são flores sem resposta.

Erros que recebi, toda uma herança
da vida que foi sempre a face oposta
ao que eu quisera ser, eis minha luta,
de sol a sol, em pedregosa encosta.

Somos irmãos, mas eu sei que o não somos,
e em o provar – é uma secreta aposta –
sofro mais que sofrer por uma imagem.

Sofro e, por força de uma lei suposta,
pego em armas e vou, herói cruento,
(e absurdo) defender meu sofrimento.
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DEIXA ESTAR, JACARÉ

Jacaré da lagoa
você nunca esteve triste.
Você tem tudo quanto quer.
Tem água boa, é dono da lagoa.
Vai ao cinema ver a lua tomar banho
quando a lua parece, de tão nua,
um corpo branco de mulher.

Você cresceu e as lagartixas e os lagartos tão
bonitos verdolengos não cresceram. . .
viraram bichos de jardim.

Só você, jacaré,
foi que cresceu assim!

Mas olhe, escute uma coisa:
quando a felicidade é tão grande
que chega a passar da conta,
a gente deve desconfiar
porque, como diz o povo:
deixa estar, jacaré. . .
a lagoa há de secar.

Fonte> Cassiano Ricardo. Vida e Obra. Disponível em https://www.fccr.sp.gov.br/portalcassianoricardo/#

Recordando Velhas Canções (Brigas, nunca mais)


Tom Jobim/ Vinicius de Moraes

Chegou, sorriu, venceu, depois chorou
Então fui eu quem consolou sua tristeza
Na certeza de que o amor tem dessas fases más
E é bom para fazer as pazes, mas

Depois fui eu quem dela precisou
E ela então me socorreu
E o nosso amor mostrou que veio pra ficar
Mais uma vez por toda a vida
Bom é mesmo amar em paz
Brigas, nunca mais
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A Harmonia do Amor em 'Brigas Nunca Mais’

A música 'Brigas Nunca Mais', composta por Tom Jobim, um dos maiores expoentes da música brasileira e um dos criadores da Bossa Nova, aborda a dinâmica de um relacionamento amoroso com suas idas e vindas emocionais. A letra inicia descrevendo a chegada de alguém que, após um momento de vitória, enfrenta a tristeza, e o eu lírico se apresenta como o consolador. Essa troca de papéis é comum em relacionamentos onde o apoio mútuo é essencial.

A música segue com a inversão da situação, onde o eu lírico agora é quem necessita de consolo e recebe o apoio da parceira. Essa reciprocidade demonstra a força do amor que, apesar das 'fases más', tem a capacidade de se renovar e fortalecer. A expressão 'é bom para fazer as pazes' sugere que os desentendimentos são oportunidades para fortalecer os laços afetivos.

O refrão 'Bom é mesmo amar em paz / Brigas, nunca mais' reforça a ideia de que a harmonia é o estado mais desejável para o amor. A repetição da frase 'nunca mais' enfatiza a decisão dos envolvidos em evitar conflitos futuros, priorizando um relacionamento pacífico e duradouro. A música, portanto, celebra o amor maduro que supera as adversidades e se consolida na paz e no entendimento mútuo.

Panorama da literatura indígena brasileira (entrevista com Julie Dorrico)

Entrevista realizada em 1 de julho de 2019, por Literatura RS
Texto e edição: Vitor Diel

Literatura indígena brasileira contemporânea, literatura de autoria indígena ou literatura nativa. As distintas designações referendam o mesmo tema: a produção escrita de autores representantes dos povos originários do Brasil. 

Este é o recorte ao qual a doutoranda em Teoria da Literatura no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUCRS, Julie Dorrico, se dedica. Descendente do povo Macuxi, de Roraima, a pesquisadora fala com exclusividade ao Literatura RS sobre a rica história da produção literária de autoria indígena, seu (ainda tímido, conforme a entrevistada) reconhecimento pela Academia Brasileira e a situação da produção literária indígena em 2019 — declarado pela UNICEF como o ano internacional das línguas dos povos indígenas.

Fale-nos sobre o panorama atual da literatura de autoria indígena brasileira.

A literatura indígena brasileira contemporânea é um movimento literário que nasce para a sociedade envolvente na década de 1990. Esse movimento caracteriza-se no cenário nacional por sua autoria: a autoria coletiva e a autoria individual. Antes de tudo, convém enfatizar que até a década de 1990, era raríssimo encontrar obras publicadas que carregassem na capa ou na ficha catalográfica o nome de um indivíduo indígena. E mais raro ainda ele ser conhecido no país como autor ou mesmo escritor. Em 1980, já existia esse desejo de autoria pelos indivíduos indígenas; com isso, vemos algumas obras serem publicadas, como “Antes o mundo não existia”, de Firmiano Arantes Lana e Luiz Gomes Lana, do povo Desana. Ainda em 1975, Eliane Potiguara escrevia o poema “Identidade Indígena”.

Todavia, só na década de 1990 que a produção indígena torna-se mais pungente, caracterizando um movimento literário desde os indígenas: primeiro nas aldeias, com a autoria coletiva, a partir da educação escolar indígena, direito assegurado na Constituição Federal, de 1988, no artigo 210, graças à luta e organização de lideranças indígenas brasileiras. A autoria coletiva é uma produção realizada pelos alunos e professores indígenas que produzem materiais didático-pedagógicos que destinam-se ao ensino da sua comunidade, o ensino da sua língua materna em escrita alfabética e o ensino da língua portuguesa, bem como narrativas e outros saberes.

Segundo, com a autoria individual, com a publicação da obra “Todas as vezes que dissemos adeus”, de Kaká Werá, em 1994, e “Histórias de índio”, de Daniel Munduruku, em 1996, que demarcava o território simbólico das artes no Brasil. Kaká Werá e Daniel Munduruku são os pioneiros e, ouso dizer, idealizadores desse projeto literário que busca diminuir a distância e o desconhecimento da sociedade envolvente para com os povos originários. Hoje, a partir de um levantamento bibliográfico realizado por Daniel Munduruku, Aline Franca e Thúlio Dias Gomes, intitulado Bibliografia das Publicações Indígenas do Brasil, é possível conhecer autores indígenas de diferentes etnias e suas publicações. Nesse trabalho, que está disponível online, é possível encontrar, na categoria da autoria individual, 44 escritores no total, sendo desse total, 11 mulheres. Sabemos que um autor, o René Khitãulu, da etnia Nambikwara, já é falecido, então seriam 43 vivos. Nesse levantamento, podemos conhecer ainda a lista de antologias, teses e dissertações, todas de autores indígenas.

Quantos povos indígenas nós temos no Brasil e quantos idiomas são conhecidos?

Segundo o Instituto Socioambiental, há no país 255 povos indígenas e 150 línguas diferentes. Mas é difícil precisar, em termos quantitativos, porque há grupos que atualmente estão em processo de retomada, isto é, passando a se autodeclarar indígenas, uma vez que tiveram suas identidade negadas e assassinadas, como os grupos existentes no Nordeste. Mais difícil ainda saber quais idiomas são mais conhecidos, porque em cada região há números diversos de povos com suas línguas maternas que na maioria das vezes ficam restritas aos próprios falantes daquela etnia.

Como você avalia a receptividade da Academia Brasileira à literatura indígena?

Considerando sua emergência na década de 1990, a procura maior das editoras na década de 2000, depois da publicação da Lei 11.645 de 2008 que torna obrigatório o ensino das culturas indígenas e afro-brasileiras em todo o currículo escolar, ainda acho tímida a recepção desse segmento. O contraponto está na atuação dos próprios escritores que promovem concursos literários, como o Curumim, que premia professores da educação básica que trabalha com literatura indígena na sala de aula, e o Tamoio, que busca novos escritores indígenas para somar ao movimento. Ambos, Curumim e Tamoio, são realizados desde o ano de 2004 sob direção de Daniel Munduruku, com apoio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).

Você defende que para compreendermos a literatura indígena é fundamental partirmos de uma perspectiva correlacionada com expressões estéticas de natureza oral ou visual. Por quê?

Eu defendo que para compreendermos a literatura indígena temos de reconhecer que a estrutura do pensamento ameríndio é diferente do ocidental. Ou seja, é preciso reconhecer que os povos indígenas se orientam a partir do princípio de homem integrado à natureza, e o sujeito do ocidente segue a lógica binária e dual de homem versus a natureza. O primeiro caso ajuda-nos a perceber por que na expressão literária o sujeito tem uma relação sagrada com a natureza. É nesse espaço da floresta que os seres humanos e não-humanos habitam e conduzem os modos de vida tradicionais desses povos. Assim, obras como “Coisas de índio”, de 1996, de Daniel Munduruku, vai nos mostrar de modo didático como são as vidas nas comunidades; “Nós somos só filhos”, de 2011, de Sulamy Katy, como o próprio título sugere, nos leva a assumir que não somos donos da natureza, mas que somos seus filhos, só filhos. A própria noção de que os povos indígenas são os “verdadeiros donos da floresta” é totalmente equivocada justamente porque eles não têm essa relação de posse com a natureza, mas de filhos dela, portanto, seria mais correto dizer que eles são os “guardiões da floresta”, e isso eles são.

A natureza oral das comunidades tradicionais traduz-se em suas literaturas. Se a literatura brasileira tem por tradição um cânone que inaugura-se nas Cartas do período colonial, passando pelo Barroco, Romantismo, Realismo, Modernismo, Concretismo até as expressões mais contemporâneas, deve-se levar em conta que a tradição da literatura indígena reside na ancestralidade que vive na oralidade. Então, a literatura indígena nasce para a sociedade nacional quando os sujeitos indígenas adquirem a escrita alfabética e a publicação e passam a contar as suas histórias, mas para as sociedades tradicionais, como diz Kaká, a literatura sempre existiu, sendo anterior à escrita e ao impresso. A edição e a publicação significa, dessa forma, uma ferramenta para expressar-se, dialogar sobre pertencimento étnico e sobrevivência.

A Constituição de 1988 assegura a construção de uma política educacional para os povos indígenas com método específico. Como estão essas garantias em 2019?

A educação escolar indígena está presente em muitas aldeias do país. Todas elas funcionando com projetos específicos e diferenciados assegurados na Constituição Federal, de 1988, no artigo 210. Esse direito assegurado é resultado de lutas de lideranças indígenas, que também receberam o apoio da sociedade envolvente.

Em 2019, vemos um endurecimento do discurso nacional em relação aos povos indígenas. É natural estarmos todos apreensivos, por isso mesmo (é importante) o trabalho de artistas indígenas e intelectuais que trabalham para fortalecer a consciência dos povos indígenas e da sociedade nacional sobre a importância da terra, do direito à vida e às artes em geral, que foram tirados historicamente dos povos originários. Essa luta simbólica passa pela luta política, uma vez que a pauta central das causas indígenas situa-se no direito ao território. Sabemos que todas as políticas só podem ser efetivadas a partir do estabelecimento de um território — quero dizer que educação e saúde só serão possíveis para os povos originários se seus territórios forem respeitados e possibilitados.

Quais obras você recomendaria para apresentar essa literatura para quem ainda a desconhece?

Começo por recomendar alguns autores, como Daniel Munduruku, que possui uma variada produção, desde ensaio, memória, à literatura infanto-juvenil. Muitos autores indígenas escrevem para o público infantil e juvenil, e por isso mesmo às vezes são confundidos e de modo bastante equivocado tratados como quem produz uma literatura inferior. Kaká Werá diz que a estratégia de destinar o livro indígena a esse público está em reconhecer que ele é mais livre de preconceitos que os mais velhos. E eu ainda arrisco dizer que a sociedade brasileira ainda é criança quando se trata de cultura indígena. Não conhece seus povos dentro de seus estados, não sabe falar uma língua indígena, ao passo que o inglês é quase regra. Também indicaria mulheres indígenas: Márcia Kambeba, Auritha Tabajara, Sulamy Katy, de quem falei brevemente, Lia Minapoty e Maria Kerexu, que escreve com Olívio Jekupe. O próprio Olívio Jekupe, Yaguarê Yamã, Cristino Wapichana, que, como Daniel Munduruku, é vencedor do prêmio Jabuti, Ely Macuxi, Tiago Hakiy e muitos outros mais.

Livros recomendados por Julie Dorrico:
– “A mulher que virou Urutau”, de Olívio Jukupe e Maria Derexu.
– “Coisas de índio”, de Daniel Munduruku.
– “Coração na aldeia, pés no mundo”, de Auritha Tabajara.
– “Ipaty, o Curumin da selva”, de Ely Macuxi.
– “Nós somos só filhos”, de Sulamy Haty.
– “O lugar do saber”, de Márcia Wayna Kambeba.
– “O sonho de Borum”, de Edson Krenak. 
– “Puratig, o remo sagrado”, de Yaguaré Yamã.
– “Tardes de Agosto Manhãs de Setembro Noites de Outubro”, de Jaider Esbell.