O dia marinheiro
todo vestido de sol branco
andava navegando com os marujos
de solavanco em solavanco
a prometer-lhes mundos nunca vistos nem sonhados
em mares nunca antes navegados
tudo por conta de outro dia
que mais adiante aparecia
e a mesma coisa prometia.
Luas marítimas, logo após,
nadavam no silêncio da amplidão
por onde a noite, caravela de carvão
levava a bordo uma porção de estrelas nuas.
Como era doída no outro dia
a dor da repetição!
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CIDADEZINHA DO INTERIOR
Uma ermida e um curral
como que para dizer, por inocência,
que o Menino Jesus não nasceu entre rosas,
mas entre bois.
Logo depois brota a cidadezinha branca.
É uma menina, ainda descalça.
As casas tortas de janela azul
dançam de roda, da mãos dadas.
Há duas bandas de música, logo de começo,
uma da oposição e outra dos canários.
Todos os dias da semana são domingos de ramos.
Dentro da ermida
nossa Senhora brinca de pular corda num arco-íris.
Cada enterro parece uma festa
e cada procissão lembra um rio de gente. . .
Não há iluminação, há muitas luas.
E os bois passeiam pelas ruas, fundadores.
Até que um dia o legislador das posturas municipais se impacienta
e manda proibir os bois de passearem nas ruas.
Como se a origem da cidadezinha branca não fosse um curral
e como se o Menino Jesus não houvesse nascido entre bois
quem sabe se o legislador das posturas municipais
pensa que o Menino Jesus nasceu entre rosas?
Se pensa, é por inocência.
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COMPETIÇÃO
O mar é belo.
Muito mais belo é ver um barco
no mar.
O pássaro é belo.
Muito mais belo é hoje o homem
voar.
A lua é bela.
Muito mais bela é uma viagem
lunar.
Belo é o abismo.
Muito mais belo o arco da ponte
no ar.
A onda é bela.
Muito mais belo é uma mulher
nadar.
Bela é a montanha.
Mais belo é o túnel para alguém
passar.
Bela é a nuvem.
Mais belo é vê-la de um último
andar.
Belo é o azul.
Mais belo o que Cézanne soube
pintar.
Porém mais belo
que o de Cézanne, o azul do teu
olhar.
O mar é belo.
Muito mais belo é ver um barco
no mar.
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CONSCRITO
Sofro, não só por mim mas pelos outros,
dentro da ordem que me foi imposta.
Não flores levo, mas um ramo, apenas,
de perguntas – são flores sem resposta.
Erros que recebi, toda uma herança
da vida que foi sempre a face oposta
ao que eu quisera ser, eis minha luta,
de sol a sol, em pedregosa encosta.
Somos irmãos, mas eu sei que o não somos,
e em o provar – é uma secreta aposta –
sofro mais que sofrer por uma imagem.
Sofro e, por força de uma lei suposta,
pego em armas e vou, herói cruento,
(e absurdo) defender meu sofrimento.
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DEIXA ESTAR, JACARÉ
Jacaré da lagoa
você nunca esteve triste.
Você tem tudo quanto quer.
Tem água boa, é dono da lagoa.
Vai ao cinema ver a lua tomar banho
quando a lua parece, de tão nua,
um corpo branco de mulher.
Você cresceu e as lagartixas e os lagartos tão
bonitos verdolengos não cresceram. . .
viraram bichos de jardim.
Só você, jacaré,
foi que cresceu assim!
Mas olhe, escute uma coisa:
quando a felicidade é tão grande
que chega a passar da conta,
a gente deve desconfiar
porque, como diz o povo:
deixa estar, jacaré. . .
a lagoa há de secar.
Fonte> Cassiano Ricardo. Vida e Obra. Disponível em https://www.fccr.sp.gov.br/portalcassianoricardo/#
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