O mundo cão, que nomeia a crônica, refere-se ao mundo restrito de um determinado cão vira-latas que, talvez, nem o hábito de virar latas tenha.
Neguinho é o cachorro mais estranho que já vi! Ninguém, por mais amor que lhe dedique, poderá acha-lo bonito.
-Perdão! Ante a veemência dos protestos cá de casa, volto atrás. Há quem o ache bonito, sim... E gosto não se discute! Ponto final!
Carinhosamente chamado por todos de Neguinho é ele qualquer coisa assim como fruto híbrido de cão e javali, caso isto fosse possível.
Pelagem preta e rala, fiapos brancos aqui ali, topete espetado a descer-lhe pelo dorso, dão-lhe por vezes o aspecto de um cavalinho nanico a trotar solitário pelas ruas, crina arrepiada como crista de moicano.
Mistura braba! Por conta daquele topete, é conhecido também, por Punk, Supla, Elvis e até Vovozinho, mas o nome oficial e carinhoso, concedido pela maioria, é mesmo - Neguinho.
Neguinho vive na rua. Não digo qual delas, para não lhe devassar o endereço. Deve ter dono, mas, prefere a liberalidade das calçadas. E se não é de alguém, é porque é de todos.
Certo é não lhe faltarem carinho e alimento, já que de índole mansa e sem ser magro nem gordo, dá provas de não passar fome. A quem lhe estale os dedos, Neguinho acompanha, com gosto, em curtos passeios, voltando sempre ao ponto de partida, ainda que só.
Todos os portões são seus. Guarda-os, sem discriminação, com igual zelo e sem agressividade ou preferências. O brilho úmido dos olhos escuros cativa simpatias e gera defensores, mesmo entre os que lhe negam total ausência de atributos físicos.
Aceita afagos e os retribui com sobriedade. Por outro lado, mostra total indiferença a quem por ele passe sem lhe destinar um simples olhar.
De boa paz, Neguinho não lesa, não trai, não rouba, não agride.
Necessário dizer que nem sempre colabora para o asseio da rua que lhe serve de lar. Mas por que acusar-lhe a displicência, fruto de sua "viralatice" praticamente imposta?! – Cachorrinhos bem nascidos e bem cuidados, frequentadores assíduos de lojas pet, comportam-se da mesma maneira, em seus passeios diários, com direito às mesmas paradinhas sob as mesmas árvores das calçadas, ou frente aos mesmos postes, que, impassíveis, recebem sem protestos a costumeiras regas!
O agravante é que, aqueles cachorrinhos vips, na maioria das vezes, passeiam acompanhados por gente que nem liga para o estrago feito na sola dos sapatos do público passante. E quem reclama gasta seu latim sem encontrar eco, porque as coisas continuam do mesmíssimo jeito, embora com sadias ressalvas. Por isso mesmo, palmas e cumprimentos para quem, civilizadamente, vem munido com aquele discreto saquinho plástico.
Neguinho é cão dócil e inteligente. Não se sabe porque, até bem pouco, era poupado pelo laço cruel da famigerada "carrocinha", hoje motorizada, terror dos cães sem coleira e abominada pela criançada do mundo inteiro, desde tempos remotos.
Mas... a sorte tem os seus dias de cochilo. E, num certo dia, lá se foi o cãozinho em questão dar um passeio até o depósito, exposto ao risco de enfrentar o corredor da morte. E sem culpa alguma! Arrepia imaginar quanta gente muito menos digna, anda solta por aí, aprontando barbaridades! E, o meigo Neguinho, preso!
Na verdade, a rua ficou mais pobre com a ausência dele. Ficou bem mais sem graça, sem a ronda solitária daquele animalzinho meio-cão-meio-javali, com topete moicano e trote de cavalinho nanico.
Contudo... foi por pouco tempo! Logo, a mão caridosa da dona de um daqueles portões vigiados por Neguinho, foi busca-lo, trazendo de volta ao convívio do bairro aquele estranho exemplar, não muito primoroso, do "melhor amigo do homem" para gáudio dos que tanto o estimam – seja ele o Punk, o Supla, o Elvis ou, simplesmente, o Vovozinho!
Resta ainda um receio plenamente justificado: - tudo, depois da primeira vez, parece ficar mais fácil. E não será surpresa se, enquanto estas linhas são escritas, Neguinho, esse cãozinho querido, ande de novo a driblar funcionários da Prefeitura, confundido como cão vadio - o que, na realidade, nunca foi!
E o receio é plenamente justificado! - Afinal, neste mundo cão, em que o mais sagrado direito de viver em paz é profanado pelos próprios homens, mesmo um pacato e inofensivo cachorrinho, fiel e espontâneo guardador de portões, calmo amante da liberdade, bem pode não ter vez, enquanto, paradoxalmente, tantos outros, cujos atos estão bem longe de serem recomendáveis, gozam de plena liberdade para dar curso aos seus mais degradantes instintos.
Mas... o fecho, desta vez é bastante otimista: - Notícias recém-chegadas contam que Neguinho finalmente foi adotado e, há algum tempo, curte sua feliz velhice, junto à bondosa família que o retirou das ruas.
Que assim seja!!!
Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.
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