Noite quente, noite boa, caminhando no silêncio, desaparecendo num céu forrado de estrelinhas piscantes, inumeráveis, longínquas.
Noite quente gostosa, na cidade sem personalidade, de casas fechadas, de ruas penumbrentas, sem vira-latas melancólicos nem boêmios incorrigíveis.
Noite quente, noite quieta, noite gostosa. Na cidade inútil, na cidade triste, na cidade decadente...
Juquita acorda assustado, perseguido pelos mesmos sonhos ruins.
Escuta o relógio, que é medroso e bate duas vezes, e o pai roncando num sono de felicidade profunda.
Fica de barriga pra cima. Mas não descansa. Porque despeja na consciência, sem parar, as imagens da Estela. Imagens fugidias, sujas, intensamente sujas.
Vira pro lado direito. É pior. A coisa aumenta.
Aperta os olhos pra chamar o sono. Aperta bem. Mas o sono não vem. O que vem é um barulhinho esquisito, indefinido. Presta atenção. O barulhinho aumenta, se distingue. É um estralejamento, a modo de graveto se queimando.
O medo toma conto do corpo. O corpo treme inteirinho. E os dentes fazem coro.
— Minha Nossa Senhora!
Deita-se de bruços. E reza baixinho:
— Padre nosso que estais no céu...
Nem chega ao “venha a nós o vosso reino”, porque o estralejamento fica forte de repente. Bota-se de pé. Foge pra sala. E sente um cheiro. Um cheiro de queimado.
Pelas frinchas da janela da sala percebe uma claridade que vem de fora. E treme. Treme apavorado.
Adelaide é que acorda. Fala meio inconsciente.
— Jesus!
Acende a luz. O filho se joga chorando no quarto grande.
— Menino!
— Ali! É ali!
Henrique desperta, estremunhado. E se espanta logo com a barulheira. Corre à janela amarfanhando a camisola meio encardida. E o rosto se lhe ilumina com o clarão medonho.
Fica estatelado. A cabeça se desgoverna, no pasmo imenso. Sobe um calor nos olhos. “Sente” que é preciso fazer qualquer coisa. Mas não consegue “pensar” nada.
Quando toma conta de si, a casa é um só reboliço, uma gritaria desenfreada. A casa e a vizinhança. Que a vizinhança também era uma única emoção e estava toda ali reunida.
Tenta-se desesperadamente qualquer salvação. Inútil.
Encontraria material excelente o fogo. Por isso o fogo fica lambendo tudo, vitorioso, impressionante.
Arde todinho o paiol. Por sorte ele se construíra isolado, na margem da grota. Se não, nunca que teria fim o desastre.
Clareada pela chama se extinguindo, alheia ao pandemônio sem altura, a figura de Henrique se recorta, trágica, no fundo da noite morna.
Camisolão amarrotado, cabelos desfeitos, fundas rugas se acentuando na cara descarnada, o velho caminha de um lado a outro, rondando, rondando a ruína de seus fardos, recolhendo, recolhendo a cinza de seu grande sonho inútil.
O riachinho do fundo da grota reflete uns últimos clarões perdidos. Mas o riachinho do fundo da grota não é muito certo. Porque riachinho confunde a luz do paiol com a luz das estrelas piscantes, inumeráveis, longínquas. Das estrelas que se multiplicam na noite quente, na noite longa da cidade inútil, da cidade triste…
(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 22/07/1936.)
Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.
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