quarta-feira, 17 de abril de 2024

Aparecido Raimundo de Souza (Tudo o que é mal começado...)

NESSA MANHÃ ensolarada acordei suando em bicas.  Liguei a televisão no canal que assisto diariamente. O desgranhento do repórter jogou para cima de mim um caminhão de notícias sem eira nem beira. Se não sou esperto, acabava atropelado por um ônibus desgovernado na sua trajetória malfeita. O bruto, quase acabou com os cornos em um poste que morava numa calçada do passeio público. A armação de concreto, safa como um gato, deu um pulo fenomenal, deixando, entretanto, o transformador, lá no topo, com os bugalhos espantados de medo e terror. Sem mais delongas desliguei o aparelho, tomei um banho, me vesti e desci para a padaria onde tomo meu café matinal. A bebida, para início de conversa, estava deliciosa. O pão com gosto de recém-saído do forno, a manteiga sem ranço e a xícara –, novinha como saiu do ventre da caixa onde se abrigava. 

A xicara me encarou com uma tez indescritível. Não parou aí. O pires lavado com esmero, deu a impressão de que o responsável pela lavagem das louças lá nos cafundós da cozinha regurgitava de bom humor. Somente uma coisa não coadunava com o espírito gracioso do dia indubitável. Olhando do recinto para fora, o céu lá em cima me parecia ter esquecido de se vestir com nuvens de boas-vindas. Foi nesse começo de dia (um pouco antes das oito,) eu vi e não só vi, conheci a Bianca. Ela entrou estabanadamente no amplo salão com um guarda-chuva encharcado de calor pingando um amontoado de sorrisos tímidos pelos passos que imprimia sobre o chão de ladrilhos brancos. 

Seus olhos verdes como alfaces prontas para serem colhidas, se faziam inquietos. Num meio que distorcido, encontraram os meus por um breve instante. O sol, num instante fugaz, pareceu ter se infiltrado em sua alma, como um dardo no coração de um pobre coitado deixando-o vulnerável e desajeitado aos cuidados de um amor infinito que se afigurou pronto para leva-lo a um êxtase anunciado. Bianca, apesar da bagagem meio “mala sem alça,” trazia no rosto um enigma indecifrável. Suas palavras ao garçom soaram como notas musicais desafinadas saídas de um piano faltando teclas. Sua risada, uma mistura de nervosismo sem pátria destituído de qualquer tipo conhecido de gentileza. Enquanto esperava pelo pedido, abriu um livro. Percebi que gostava de poesias. O livro, um exemplar de Fernando Pessoa. 

Eu, pelo outro (meu lado,) preferia o silêncio denso e pesado dos romances de escritores dos tempos de Jorge Amado e Graciliano Ramos. Nossos encontros a partir de então, passaram a ser somente ali na padaria. Esbarrões moldados ao sabor de xicaras e xícaras de café com leite, sob o pretexto de discutirmos literatura. Ele falava sobre Vinícius de Morais, Cora Coralina, Ferreira Gullar e, de roldão, emendava sobre o verdadeiro sentido da vida (qual seria?!), a juventude esquisita, os tempos difíceis, enquanto eu me perdia na textura do açúcar se dissolvendo nas bebidas costumeiras das engraçadas tiradas humorísticas de Luiz Fernando Veríssimo. Às vezes, as nossas mãos se tocavam num lançar quase acidental, e eu sentia um arrepio meio inteiro, um calafrio a percorrer desordenadamente a minha espinha – não só a dorsal. 

Nessa troca de poetas e escritores, entretanto, havia algo errado. Bianca nunca mencionava o futuro como uma coisa gostosa de se ver e sentir. Não falava sobre planos, sonhos ou o que poderia ser construído num vindouro às portas do nosso começo de conhecimento.  Ela vivia num presente envidraçado, como se o passado e o futuro fossem apenas sombras distantes por detrás de espessas coberturas de vidros. Eu, tolo, meio que atordoado, uma besta dos pés à cabeça e vice-versa, me deixei envolver por essa dança tresloucada de passos incertos e toques furtivos de dedinhos bobos em lugares consentidos. Nossos beijos se assemelhavam às chuvas de verão: intensos, efêmeros, e cheios de promessas que em nenhum momento tinham a satisfação de se fazerem verdadeiramente reais. 

Nessa coisa de pega, me larga, me esmaga e me domina, um engraçado detalhe me encafifava os fundilhos do peito. Quando o sol se escondia, Bianca se exauria. Mergulhava numa espécie de buraco sem fundo. De cabeça, a criatura afundava. Mirrava, esvanecia, como éter em recipiente sem tampa. Do nada, evaporava. Em seguida, não atendia minhas ligações, não respondia às mensagens via whatsapp. Passei a me sentir como uma folha seca levada pelo vento (igual aquela canção do Amado Batista). Sem rumo, sem destino, sem porto onde atracar meu jegue –, digo onde amarrar meu barco. Me resguardei. Dessa forma meio que insondada e curiosa –, ou dito de maneira mais abrangente –, alienígena e esquisita nosso relacionamento mal começado se arrastou por seis semanas. 

Eu, no calor da felicidade, esperava por ela, como quem se debruça na folha do próximo capítulo de um livro inédito, cujo final me parecia ser emocionante. Mas Bianca nunca se mostrou como uma personagem de carne e osso, bem escrito e com epílogo que deixasse saudade. A custo penoso, a poder de remédios com bulas de noites passadas às claras, cheguei à conclusão de que aquela pessoinha não ia além de um rascunho, ou de uma história incompleta. Assim foi até que num sábado (mesma mesa onde nos sentamos pela primeira vez) ela apareceu com um olhar de peixe morto, o semblante cheirando a robalo triste e uma carta nas mãos. “Preciso cair fora!” – disse. E emendou: “Ganhar o mundo. Me embrenhar por outros ares ainda não respirados pelo meu nariz.”’ Vomitou assim, na lata, sem rodeios. “Não sou uma excelência em finais felizes.”  

Cabisbaixa, o pranto rolando e fazendo sulcos na pele, Bianca foi-se. Perdão, Bianca se foi. Deixou-me como acompanhamento o gosto do café com leite não doce, mas amargo e a sensação do pão dormido e com manteiga estragada, e pior, a certeza de que o amor é como um texto inacabado: cheio de vírgulas, pontos de interrogação e reticências em lugares errados. Penso, agora, com meus "encafifamentos": talvez tenha sido melhor assim. Afinal, sem final, nem todas as histórias merecem um epílogo radiante, vestido à rigor, com desenlaces impecáveis. Desfechos neste patamar se enquadram mais para Lisa Kleypas, Julia Quinn e Ariano Suassuna. Nesse vácuo vazio, como o daquele dia de manhã ensolarada, me lembro de Bianca e seu guarda-chuva. 

Recordo-me como se fosse hoje, de suas palavras desafinadas, do seu sorriso tímido. E percebo que, às vezes, os relacionamentos iniciados são como crônicas de um autor ao acaso: intensos, efêmeros e eternamente marcados em nossa memória por uma péssima sensação de que fomos esquecidos e ludibriados ou confusos. O mais degradante é que logo ali na próxima esquina, aparecerá um ônibus sem freio, à cata de um poste de luz atrelado a um transformador com a fuça de uma mula paralítica sem canja; de pobre sem picanha na mesa do almoço e fechando o ciclo. Nada além de uma formosura apodrecida em total e profunda caminhada a passos largos para a cidade dos que saboreiam capim pela raiz.    

Fonte> Texto enviado pelo autor 

Nenhum comentário: