Mudou a paisagem noturna do meu entorno. Depois que o governo fez as recomendações para a economia de energia, apagaram-se as luzes que sempre brilharam nos apartamentos da vizinhança. Ninguém dorme mais com a lâmpada do banheiro acesa e não há claridade nos salões de festas, sequer a sonoridade costumeira das sextas ou dos sábados, quando Nelson entoava a toada da normalista e Gonzaga repetia a sina da Asa Branca. Calaram-se os poetas do verso popular. A mocinha que ia até tarde em seu computador, por certo que trocando juras de amor num chat qualquer, tirou da tomada o equipamento e sentou-se na praça em frente – um refúgio como me ensinaram –, pra fiar conversa, cara a cara, com o pretendente de ocasião. A outra, de quem só divisava a silhueta, dispensou o namorado que lhe abraçava às claras no quarto de dormir. Nem só de pão vive o homem, refletiu!
E agora? É ver para crer! Anda-se dentro de casa tateando as paredes, batendo aqui e peitando ali, contanto que se possa alcançar os 20% dos interesses estatais. O vidro espesso da mesa da sala fere a perna do primeiro incauto que tropeçar. Se o jarro de porcelana fina tombar de seu suporte – Valha-me Deus! – a bronca vai ser grande! Na cozinha estão interditados o forno de microondas e a lavadora de louças. Não adianta querer se livrar dos pratos sujos de domingo e das xícaras de café ainda com açúcar. Melhor segurar a bucha e pingar o detergente colorido, esfregando até à limpeza completa. Na área de serviços há uma máquina de lavar roupa recentemente comprada, de moderno desenho, diferente da anterior, por isso não se presta ao uso como mesinha para ler jornais. De uma vez todas as calças, camisas, vestidos e blusas serão submetidos à água corrente e ao sabão em pó!
Ar condicionado virou luxo, ligar, de forma alguma! O tempo não volta, mas quando menino dormia de pijama, cujo paletó tinha as mangas compridas e não havia no comércio sequer ventilador, senão umas peças enormes, pesadas, para uso comercial. Acordava, todos os dias, molhado em suor, sem dispensar, todavia, os sonhos e os devaneios, vez ou outra um pesadelo rolando pela escada de casa, de dezessete degraus contados e recontados na infância. O chuveiro elétrico virou enfeite, o banho frio, gelado tantas vezes, volta ao cotidiano de toda gente ou a chaleira fervente será resgatada de um exílio de muitas décadas. Era assim no passado, com os temores maternos intervindo no higiênico exercício dos filhos, sob a constante ameaça de gripe. A ama cuidava de enxugar a meninada e às vezes excedia-se em cuidados com certas e detalhadas partes do corpo.
A torradeira de pão, que faz reviver o sanduíche da Confiança, com o queijo se derretendo na massa de trigo espremida, está suspensa, relegada ao segundo plano dentre os equipamentos de cozer e assar. Uma vez na semana o ferro será ligado e quente, bem quente, há de engomar as roupas todas. Difícil conseguir do pretérito o velho equipamento de cor preta, que esquentava à força das brasas postas no interior, tiradas do fogareiro a carvão com o pegador a isso destinado. A lavadeira, como se dizia ou a engomadeira, como também se falava, passava peça por peça, cuidadosamente, borrifando água com a mão, mesmo. O terno de linho branco de meu pai precisava da goma para ficar mais encorpado e, sobretudo brilhar à luz do sol. Os vestidos de minha mãe, de igual forma, pois que seriam usados em recepções a que comparecia ou nas festas de Isnar de Moura, jornalista do batente.
Sou nascido no blecaute da guerra, fui amamentado na escuridão e nos primeiros anos de vida quase não via luz elétrica acesa, por essa e por outras, não me incomodarão os dias do porvir, condenados à negritude da noite. A lua há de alumiar dos céus os caminhos e as estradas, enfeitiçar os casais enamorados e inspirar os poetas que sofrem com a perda dos amores vividos. O sol há de raiar todas as manhãs, embalando o sono das madrugadas, despertando os homens de boa vontade para o trabalho e as crianças que de má vontade vão às escolas e têm raiva de quem inventou o estudo. Os postes de Casa Amarela, que não se apagam com a claridade, servirão de mote à oposição municipal. E outra vez o acendedor de lampiões que meu pai conheceu – Boca de Uruá – na cidade em que nasceu, passará com o seu bordão apagando a luz!
∗ Texto escrito durante um tempo de racionamento elétrico no Recife, por conta da falta de chuvas nas cabeceiras do rio São Francisco, de cujas cachoeiras a energia provém.
Fonte: Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público
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