sábado, 27 de abril de 2024

Carolina Ramos (Página Aberta)

Fruto de terna conversa, nasceu este conto não alheio à temática, porque envolve, como veículo de abertura, um casal de cães. A tal conversa aconteceu entre mãe e filha. A primeira redige estas linhas e, a segunda, na história por ela relatada, aparece, simplesmente, como: - "a moça dos cachorrinhos".

Mais realidade do que ficção, o conto leva o nome de "Página Aberta", que outra coisa não é, uma vez que, à mercê do imprevisível, as reticências substituem com maior propriedade o que deveria ser um ponto final.

PÁGINA ABERTA
(inspirado na narrativa da "moça dos cachorrinhos")

O céu, encapotado de cinza, ranzinzava um trovão, com cara de poucos amigos.

Juvenal desviou os olhos do mar e fixou-os nas nuvens carrancudas, a pressentir ser hora de voltar para casa. Não tinha relógio, mas vários indícios à sua volta mediam o tempo com precisão. Deveriam ser quase seis da tarde, afirmava o rabo-de-cavalo a pendular de lá para cá, ao ritmo dos passos da moça que "pastoreava" os dois cãezinhos sortudos, resgatados da rua pelo bom coração da futura dona. Dois cãezinhos bastante simpáticos – brancos, com manchas negras espalhadas pelo corpo – incontestável RG de "viralatice" explícita. Pedigree de ambos: - cão vaquinha ou paulistinha. Origem: - uma rua qualquer.

Ela: - Teca, a cadelinha - Olhos expressivos, baixinha, gordinha, meiguinha, merecedora de todos os inhas possíveis, de fato e de direito

Ele: - Nino, mais alto, mais magro, sempre tenso, sempre alerta, resmunguento, pouco afeito a carinhos - dentes pontiagudos, prontos a demonstrar a preferência pelas canelas de alguém surpreendido em descuido.

- Vale a digressão, porque Juvenal já conversara com a "moça dos cachorrinhos", por várias vezes, chegando mesmo a confidenciar-lhe algumas passagens de sua vida, tendo, também, oportunidade de conhecer de perto a história do festejado casal canino.

Naquela tarde, embora conhecendo o mau humor do Nino, Juvenal sentia, mais do que nunca, a necessidade de trocar ideias com alguém sensível. Precisava partilhar com a outrem a festa interior que o envolvia. A moça era receptiva. Aproximou-se dela.

" 0i! O Nino, hoje, ainda não atacou nenhum calcanhar? - A "moça dos cachorrinhos" sorriu: - Hoje ele está em paz com o mundo! A briga é com ele mesmo. Tomou banho com shampoo perfumado e perdeu as referências. Estranha o próprio cheiro! Por isso, está quieto, confuso... indiferente a quem passa.

Só então a moça prestou mais atenção no homem que, naquele dia, demonstrava apuro incomum - cabelos penteados, barba feita... e um brilho especial no olhar.

- E o senhor... como vai?

- Menina... amanhã vou ter um encontro muito importante! O mais importante encontro de toda minha vida!

- Soraya?!

- Isso mesmo, Soraya... a mulher da minha vida!

Nos encontros anteriores o nome Soraya já se fizera familiar. Para a "moça dos cachorrinhos", era nome bastante significativo. Sabia bem o que ele representava para aquele homem tenso, de emoções à flor da pele e de consciência pesada. Alguém que já lhe dera acesso espontâneo ao "site" de sua vida, onde estavam inclusos o casamento com Soraya, a felicidade curtida por algum tempo e, aquela separação absurda, que já se prolongava por, nada mais nada menos, que trinta e cinco longos anos!

Naquela infeliz tarde, distante e inexplicável, depois de uma rusga banal, tão comum entre pessoas que se querem bem, ele, homem impulsivo, num rompante, passara a mão nos pertences e deixara tudo para atrás! E, nesse tudo, incluía-se "a mulher da sua vida".

Juvenal fora cruel com Soraya e, mais ainda, consigo mesmo. Tão logo chegado o arrependimento, chegaram também o pudor e o medo do retorno. Como seria recebido? Teria direito ao perdão? Como reagiria a esposa, a sua "moleca", agora talvez de cabelos brancos? E os familiares?! Seria aceito?!

- Retorno abortado! - O que, sem mais palavras, explicam os trinta e cinco anos de separação.

Nesse meio tempo, muitas mulheres haviam tentado ocupar o lugar de Soraya no coração daquele homem arrependido, sem o conseguirem. Celeste até que chegou perto, mas, logo fora chamada à pátria que o próprio nome insinuava.

Uma vez mais, Juvenal resvalara para o abismo. Aos poucos, seus parcos valores se diluíram. Deu de beber. Bebeu muito! Degradou-se. Para quem se entrega a qualquer vício, o caminho da descida é por demais conhecido e bastante escorregadio. Desceu degrau por degrau. Perdeu o emprego, perdeu os documentos, perdeu os amigos e a própria identidade.

Chegara à mendicância! Só não conseguira ser desonesto! Seu anjo da guarda não estava de todo adormecido, salvara-o dessa fase terrível, por meio de uma bondosa assistente social, que não só lhe pôs os papéis em dia como lhe conseguiu até uma aposentadoria - modesta, mas suficiente para que recuperasse a dignidade. E ele - que em sua mocidade colecionara troféus conquistados no esporte em algumas maratonas - voltara, afinal, a acertar o passo.

Foi quando Soraya, a esposa abandonada, na impossibilidade de vender a casa, sem a assinatura do marido fujão, acabara por descobri-lo, após tantos anos de tenaz procura.

O primeiro encontro estava para acontecer no dia imediato.

A "moça dos cachorrinhos" entendeu, num relance, o tamanho da emoção e do conflito interior daquele homem inseguro, temente do que estava por vir e que ele era incapaz de adivinhar.

Uma semana depois, viriam à tona os pormenores daquele encontro.

Juvenal chegara ao endereço que o aguardava, mal contendo o nervosismo.

Ao toque da campainha, a porta fora aberta por uma mulher de mela idade, bonita ainda, cabelos tintos, ligeiramente aloirados e com aqueles olhos, meigos e tristes, que Juvenal tão bem conhecia.

Olhos tristes, sim... contudo, não acusadores. No instante em que os dois se fitaram, a ternura do olhar daquela mulher casou-se com a ansiedade do olhar recém-chegado.

- Jú! - murmurou ela, quase num sussurro.

- Soraya... Soraya, minha moleca!

Apesar da mútua ternura, Soraya evitou o beijo. Fugiu a contatos mais íntimos e deixou Juvenal cheio de grilos, sentindo-se rejeitado, apesar do bom acolhimento por parte da família.

Ao final do dia, após muita insistência e rejeição, a verdade veio à tona sob a forma de tristíssima revelação: - foi-lhe apresentado o resultado de um exame de laboratório. Em resumo; Soraya contraíra Aids mercê de um curto relacionamento. O parceiro unira-se a ela sem saber do mal que portava. Falecera há dois anos. Fato consumado!

Soraya botou para fora o drama do qual era protagonista, como um vulcão que vomitasse as próprias entranhas. Sentia a felicidade escapar-lhe novamente das mãos, como água a fugir-lhe por entre os dedos.

E as cinzas e lavas candentes, desse vulcão reativado, desabaram com violência sobre a alma aturdida daquele homem sacudido pelos soluços.

Juvenal acovardou-se. Não sabia o que dizer, nem tampouco o que pensar. Uniu suas lágrimas às de Soraya e, como bom desportista, acabou por pedir tempo. Precisava pensar! Pensar profundamente, longe de tudo e de todos... Antes de qualquer resolução!

Quinze dias bastaram para que aquele homem se decidisse:

- Por motivo algum, renunciaria ao amor de Soraya pela segunda vez! A ciência, evoluindo a cada dia... Os recursos multiplicando-se com ela... Deveria haver uma solução! A curto ou a longo prazo... deveria, sim! Mas... que espera duvidosa e cruel!

- Para aquele homem, contudo, uma coisa era absolutamente certa; - Sem dúvida alguma, queria a sua "moleca" de volta! A qualquer preço! Fosse como fosse! Para o que desse e viesse... e até que a morte os separasse! Igual ao que haviam prometido, num certo dia, à frente ao altar!

Mal ou bem, Juvenal escrevera a história de sua vida. Chegava, agora, ao capítulo decisivo!

As últimas e definitivas linhas deste relato ficam em branco... a serem completadas pelo próprio destino.

Deus pingará o ponto final na derradeira página. E a Sua misericórdia, então, a assinará…

Fonte> Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023. Enviado pela autora.

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