O passeio atípico da prenda ao lado de seu novo amigo pelas ruas de Salvador prossegue. João a leva para conhecer o elevador Lacerda, e a praia do farol da Barra. Dois pontos turísticos famosos. E Isadora tem seu primeiro contato com o mar. Ela sente o coração pulsar forte e se deixa levar pela energia do mar que estava calmo. E pensa em sua mãe que morreu sem conhecer aquela maravilha. Ao entardecer, eles retornam à casa de dona Branca.
Isadora sentia-se feliz, acolhida e agradecida por estar junto daquelas mulheres batalhadoras, sobreviventes de uma sociedade de política desigual. E se impressionou ao notar o quanto aquelas mulheres sorriam, apesar das tristezas que tinham guardadas no peito.
Sentiu-se privilegiada perante as injustiças do mundo, praticadas por pessoas insensíveis, ambiciosas e egocêntricas.
- Obrigada pelo acolhimento, dona Branca.
- Não tem do que agradecer, Isadora. É como dizia minha finada mãezinha: quem não vive para servir, não serve para viver – disse a dona da casa. Mas tá toda molhada, menina. Vá trocar essa roupa. Deixei um vestido lá no armário de seu quarto.
Enquanto Isadora se preparava para ir ao terreiro, João proseava com as meninas ou “quengas” como eram chamadas pelas madames da alta sociedade.
“Na vida, a coisa mais verdadeira é que nem tudo o que parece ser, realmente é...
Existe gente boa, mas também há muita gente ruim. E que nunca deixará de ser, porque considera a bondade um sinal de fraqueza. Na verdade, gente má é má porque não sente atração pelas virtudes das coisas que são de Deus, as quais é preciso merecimento para possuir. Amor, compaixão, alegria, não fazem morada em casa sombria. Até podem se aproximar, mas logo partem, porque coração de gente ruim não cultiva flores, e sim erva daninha, espinhos. Gente ruim gosta é das coisas do Capeta. E tem como diversão fazer o seu semelhante sofrer.
Quem vai dizer que Isadora, fugida do marido carrasco, seria acolhida pelas chamadas “mulheres da vida"? Se alguém perguntasse por seu paradeiro não poderia imaginar...
Por certo diria a maioria: – Numa casa de família. Rica, bem distinta e caridosa. Mas não. Ela foi parar onde ninguém ousaria prever. E isso poderia servir de lição para alguns hipócritas. E serve. Porém, quem escolhe trilhar o caminho das sombras, fecha os olhos perante a luz.
Mas a prenda dos Pampas estava gostando de absorver a luz e as lições que a vida estava lhe proporcionando naquela fuga maluca.
E por falar em luz, uma das lâmpadas mais acesas a iluminar a aura da cidade estava dentro de um terreiro de cultos afros. E era chamada pelo codinome: “Menininha do Gantois".
João e Isadora tomaram um táxi. E ao se aproximarem do terreiro, no bairro Gantois, e ao ouvirem o ressoar dos atabaques, Isadora, feito criança curiosa, põe a cabeça pro lado de fora da janela do carro para ouvir melhor aquele som do qual Vó Gorda já havia comentado ser comum também nas regiões do Rio Grande do Sul, mas que ela, pessoalmente, não conhecia. Era um ressoar forte que fazia sua alma tremer.
Na entrada do portão havia a imagem de um homem negro, vestido de vermelho, capa preta e um tridente na mão. Era Exu, o guardião de todas as porteiras e caminhos.
Foram bem recebidos pelos cambonos* da casa, que com alegria disseram se tratar de um ritual muito especial, pois uma filha de Iansã havia sido salva de uma doença de pele muito rara. E que os amigos e familiares que estavam fazendo novena a seu favor, estavam presenteando o terreiro com uma imagem de Iansã que tinha a mesma altura de sua protegida. Mas que a festa também era para Omolu, senhor das pestes, porque sem a intervenção dele não há cura.
O cenário era mágico. Havia cânticos na língua de Queto e Iorubá, médiuns recebendo a iluminação de seus Orixás, cada um com suas respectivas vestes.
Explicaram que o homem com o rosto coberto por palhas, era de Omolu, que a moça vestida de azul e espelho na mão, era filha de Iemanjá, que a outra moça vestida de vermelho e branco, segurando uma espada, era a filha de Iansã, que havia sido curada; que o homem com uma machadinha na mão está com Xangô. E num cantinho do salão do Templo, estava ela, Mãe Menininha, uma mulher de aura doce, vestida de amarelo, com sua Oxum. Orixá do amor, da riqueza e da família.
A energia intensa do lugar fez com que Isadora sentisse vontade de sorrir e de chorar.
Mãe Menininha acena. E ela vai na sua direção. João ficou do lado de fora, junto de Exu. Tinha respeito, mas também muito medo dos Orixás.
A Yalorixá, sem dizer nada, olhou nos olhos de Isadora. E jogou os búzios numa peneira de palhas.
- Você é filha de Iansã – disse ela.
Fico feliz em ver a filha aqui, mas aqui não é seu lugar. Só você pode se roubar de sua missão. Ninguém mais tem esse poder. E não precisa temer nada e a ninguém. Volte para os braços do seu amor. E ajude as mulheres e as crianças de sua terra. Pois essas são suas tarefas neste mundo. A moça é filha de uma santa guerreira. E nasceu para vencer as batalhas impostas no seu caminho. Vai ser feliz, mulher!
Isadora agradece. E impressionada, vai ao encontro de João. E os dois resolvem passar a noite caminhando pelas ruas de Salvador, bebendo cerveja e conversando.
- Sei que a moça não tá acostumada. Não exagera na bebida.
- Preciso comemorar. Estou me sentindo tão feliz.
- É... Tua conversa com Mãe Menininha te fez bem.
- Por que não quisestes entrar?
- Eu não. Vai que tenha alguma desgraça inevitável no meu caminho. Prefiro não saber de nada.
- É bom saber das coisas futuras para que possamos estar preparados para quando chegarem.
- Ôxe, prefiro não saber de nada. Mas gosto de Mãe Menininha. Ela tem uma vida dedicada à fé e à caridade ao próximo. Ela tem uma grande alma.
Conversa vai, conversa vem, ao raiar do sol, os dois sentados na ladeira do pelourinho, Isadora toma uma decisão.
- João.
- Fale.
- Vou para o Rio Grande do Sul.
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continua…
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* Cambono = na umbanda e em outros cultos de influência banta, ajudante do pai ou mãe de santo, ou assistente dos médiuns incorporados ou, ainda, auxiliar para várias finalidades rituais no terreiro ou centro.
Fonte: Texto enviado pela autora
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