segunda-feira, 29 de abril de 2024

O. Henry (O romance de um corretor atarefado)

 

Pitcher, empregado de confiança no escritório do corretor Harvey Maxwell, deixou que uma expressão de moderado interesse e surpresa se lhe estampasse na face habitualmente inexpressiva, quando o patrão ali entrou bruscamente, às nove e meia, acompanhado de sua jovem estenógrafa. Com um vigoroso "Bom dia, Pitcher", Maxwell precipitou-se para a sua escrivaninha como se fosse saltá-la, e mergulhou de pronto na enorme pilha de cartas e telegramas que o esperava.

A moça era estenógrafa de Maxwell havia um ano. Era bonita, de maneira decididamente antiestenográfica. Adiantara-se à pompa do atraente penteado à Pompadour. Não usava colares, pulseiras ou broches, nem tinha a aparência de quem aceitasse prontamente convites para o almoço. Seu vestido simples era de cor cinza, mas ressaltava-lhe a figura com fidelidade e discrição. No elegante chapeuzinho preto, via-se uma asa auriverde de arara. Naquela manhã, ela estava suave e timidamente radiante. Os olhos brilhavam-lhe sonhadoramente; suas faces tinham o genuíno aveludado do pêssego; e sua expressão era de felicidade, com laivos de reminiscências.

Pitcher, ainda moderadamente curioso, deu-se conta de uma diferença nas maneiras da moça. Em vez de ir diretamente para a sala ao lado, onde ficava sua mesa, ela permaneceu, meio indecisa, no escritório geral. A certo momento, aproximou-se da mesa de Maxwell, perto o bastante para ele se aperceber de sua presença.

Mas a máquina sentada à mesa nada mais tinha de humano; era um atarefado corretor nova-iorquino, movimentado por rodas zumbidoras e molas tensas.

— Bem, o que há? Quer alguma coisa? — perguntou Maxwell rispídamente. A correspondência recém-aberta jazia, como um monte de neve artificial, sobre a escrivaninha atulhada. Seus olhos cinzentos e perscrutadores dardejaram um olhar impessoal e brusco sobre a moça.

— Nada — respondeu a estenógrafa, afastando-se com um sorrisinho da face.

— Mr. Pitcher — disse ela ao empregado de confiança —,  Mr. Maxwell não lhe disse nada, ontem, acerca de contratar outra estenógrafa?

— Disse — respondeu Pitcher. — Ordenou-me que lhe arranjasse outra. Notifiquei a agência ontem de tarde para que mandasse algumas candidatas hoje de manhã. São 9 e 45 e por enquanto não apareceu nenhum chapéu estapafúrdio, nenhuma mascadora de chiclete por aqui.

— Vou então fazer o trabalho de costume — disse a jovem — até que venha alguém preencher a vaga.

Dirigiu-se em seguida para a sua escrivaninha e dependurou o chapeuzinho preto com a asa auriverde de arara no lugar habitual. Quem nunca contemplou o espetáculo de um atarefado corretor de Manhattan atendendo a um acúmulo de negócios não pode exercer a profissão de antropólogo. Canta o poeta "a hora de azáfama da vida gloriosa". A hora do corretor não é apenas de azáfama, mas seus minutos e segundos se apinham, agarrados às alças, tanto na plataforma dianteira como na traseira.

Assim era o dia laborioso de Harvey Maxwell. O teletipo pôs-se a desenrolar espasmodicamente seus rolos de fita; o telefone de mesa teve um ataque crônico e não parou de tilintar. Gente começou a apinhar-se no escritório e a chamá-lo por sobre a grade divisória, jovial, ríspida, rancorosa, excitadamente. Mensageiros entravam e saiam com mensagens e telegramas. Os empregados do escritório pulavam de cá para lá como marujos durante uma tempestade. Mesmo o rosto de Pitcher exibia algo que lembrava vagamente animação.

Na Bolsa haviam furacões, avalanchas, nevascas, glaciares e vulcões, e essas perturbações dos elementos eram reproduzidas miniaturamente nos escritórios dos corretores. Maxwell empurrara a cadeira contra a parede e fazia negócios no estilo de um dançarino acrobático. Pulava do telefone para o teletipo, da mesa para a porta, com a agilidade adestrada de um arlequim.

Em meio a essa crescente e importante lufa-lufa, o corretor deu-se subitamente conta da presença de uma franja de cabelo dourado sob uma canópia oscilante de veludo e plumas de avestruz, de um casaco imitação de lontra, e de um colar de contas tão graúdas quanto nozes, que terminava perto do chão por um coração de prata. Havia uma senhorinha muito senhora de si ligada a esses acessórios, e Pitcher ali estava para explicá-la.

— Moça da Agência de Estenógrafas que veio saber do emprego — disse ele. 

Maxwell voltou-se com as mãos cheias de papéis e de fitas do teletipo.

– Que emprego? — perguntou, franzindo as sobrancelhas.

— Emprego de estenógrafa — respondeu Pitcher. — O senhor me disse ontem para telefonar à Agência e pedir que nos mandassem uma hoje de manhã. 

— Você está ficando doido, Pitcher — disse Maxwell. — Por que cargas d'água lhe daria eu tais instruções? Miss Leslie tem sido perfeitamente satisfatória durante o ano que está conosco, O emprego é dela enquanto ela quiser permanecer nele. Não há vagas aqui, minha senhora. Suspenda a ordem que deu à Agência, Pitcher, e não me traga mais nenhuma candidata aqui. 

O coração de prata deixou o escritório, balançando-se e colidindo, por conta própria, contra os móveis, à medida que dali se retirava. Pitcher aproveitou a oportunidade para observar ao guarda-livros que "o velho'' parecia tornar-se cada vez mais distraído e desmemoriado. O corre-corre e o ritmo dos negócios se tornava mais apressado e violento. Na Bolsa, estavam leiloando alguns lotes de ações das quais os clientes de Maxwell eram grandes investidores. Ordens de compra e venda iam e vinham tão celeremente quanto o voo de andorinhas. Alguns dos títulos do próprio Maxwell perigavam e ele trabalhava como uma máquina possante, delicada, de alta velocidade, retesada ao máximo, a todo vapor, precisa, sem hesitações, sempre com a palavra e a decisão adequadas, sempre pronta a agir com a exatidão de um relógio. Títulos e ações, empréstimos e hipotecas, margens e valores — era todo o mundo das finanças, e nele não havia lugar nem para o mundo humano nem para o mundo da natureza. 

Quando se aproximou a hora do almoço, houve uma leve estiagem na azáfama.

Maxwell ficou sentado à mesa, com as mãos cheias de telegramas e memorandos, uma caneta-tinteiro presa à orelha direita, o cabelo caindo-lhe em fios desordenados sobre a fronte. Sua janela estava aberta, pois a bem-amada zeladora, a Primavera, insuflara um pouco de calor nos registros despertos da Terra. E pela janela veio um odor vadio — talvez extraviado —, um odor delicado e doce de lilases, que imobilizou o corretor durante um momento. Pois esse odor pertencia a Miss Leslie: era dela, só dela. 

O odor a pôs vividamente, quase tangivelmente em presença de Maxwell. O mundo das finanças amesquinhou-se subitamente às proporções de um grão de poeira. E ela estava na sala ao lado, a vinte passos de distância,

— Por Deus, vou fazê-lo agora! — disse Maxwell, em voz audível. 

— Vou pedi-la agora mesmo. Por que será que não o fiz antes? 

Irrompeu no escritório interno com a pressa de um vendedor a descoberto em busca de cobertura. Investiu para a mesa da estenógrafa.

Ela olhou-o com um sorriso. Um rubor delicado coloriu-lhe as faces; seus olhos eram francos e doces. Maxwell apoiou um dos cotovelos à mesa. Tinha ainda ambas as mãos ocupadas com papéis, e a caneta continuava empoleirada sobre a sua orelha.

— Miss Leslie — começou, apressadamente. — Tenho apenas um instante disponível. Quero dizer-lhe algo nesse instante. Quer ser minha esposa? Não pude fazer-lhe a corte como se costuma fazer, mas eu a amo de verdade. Responda depressa, por favor. Aqueles sujeitos estão arrancando o tutano da Union Pacific.

– Oh! Que é que está dizendo? – exclamou a jovem. Pôs-se de pé e ficou a olhá-lo de olhos arregalados.

— Mas você não entende? — disse Maxwell, teimosamente. — Quero que se case comigo. Amo-a, Miss Leslie. Queria dizer-lhe isso e aproveitei este minuto que as coisas acalmaram um pouco. Estão-me chamando ao telefone agora. Diga-lhes que esperem um instante, Pitcher. Você não aceita, Miss Leslie?

A estenógrafa agiu de modo muito estranho. A princípio, pareceu atônita de surpresa; depois lágrimas começaram a correr-lhe de seus lindos olhos; por fim, sorriu entre elas, radiosamente, e passou o braço com ternura, pelo pescoço do corretor,

— Agora compreendo — disse, com voz carinhosa. — Foi esse velho negócio que durante algum tempo lhe varreu tudo o mais da cabeça. Fiquei com medo, no começo. Não se lembra, Harvey? Casamo-nos ontem à noite às 8 horas, na igrejinha da esquina.

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. 
Disponível em Domínio Público.

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