Não esqueçamos que Deus colocou os juízes no mundo para julgar as aparências. É somente Ele que julgará as intenções e os pensamentos escondidos.
Conta-se que havia certa vez no Cairo um cádi que cometeu tantas prevaricações e pronunciou tantos julgamentos iníquos que foi demitido de seu alto ofício e teve que viver dos recursos de sua engenhosidade.
Um dia, quando sua cabeça estava tão vazia quanto seu bolso e seu bolso tão vazio quanto seu estômago, chamou o único escravo que lhe restava e disse-lhe:
– “Estou adoentado hoje e não posso sair de casa. Para nos sustentar, deves ou percorrer as ruas à procura de algum biscate ou enviar-me algum infeliz que precise de um parecer jurídico.”
O escravo saiu com a intenção de molestar algum transeunte e arrastá-lo até o juiz para ser multado. Assim, mal cruzou com um cidadão pacífico carregando um cesto no ombro, tropeçou nele e enviou-o ao chão. A vítima levantou-se furiosa e avançou para castigar o agressor. Mas quando reconheceu nele o escravo do cádi, virou as costas e fugiu de encontro tão perigoso.
– “Todos me conhecem como conhecem meu amo,” resmungou o escravo desanimado. “Devo achar outros meios.”
Na primeira esquina, cruzou com um homem levando uma bandeja com um magnífico peru, recheado e guarnecido com tomates e alcachofras. Seguiu-o e viu-o entrar numa cozinha pública e entregar a ave ao mestre do forno, dizendo que voltaria para apanhá-la uma hora mais tarde.
– “Esta é a minha oportunidade,” decidiu o escravo.
Menos de uma hora depois, entrou na cozinha pública, dizendo: – “Salve Mustafa!”
O mestre do forno reconheceu-o e respondeu: ”Salve Mobarak! Há muito tempo que meus carvões nada assam para teu amo. Trouxeste algo hoje?”
- Nada, exceto o peru.
- Mas este não te pertence, meu irmão.
- Não fales assim, ó xeque. Eu vi esse peru sair do ovo materno, alimentei-o, matei-o, recheei-o e o enviei a ti.
- Se for assim, estou pronto a te entregar - disse o cozinheiro – Mas que direi ao homem que o trouxe?
- Acho que ele não voltará. – replicou Mobarak num tom evasivo. – Mas se voltar, ele deve gostar de uma boa piada. Poderás dizer-lhe que tão logo o peru foi colocado no fogo, deu um grito agudo e voou. Agora, dá-me logo aquela ave, por favor. Acho que já está bem assada.
O cozinheiro riu e entregou o peru a Mobarak, o qual correu para a casa do cádi e ajudou-o a limpar o prato. Quando, minutos depois, o dono do peru voltou para levá-lo, o cozinheiro disse-lhe: “Tão logo coloquei-o no forno, deu um grito agudo, voou para longe, e não voltou mais.”
O homem não gostou nada da piada e gritou com raiva: “Ó nada, ousas brincar nas minhas barbas?”
Das palavras passaram às imprecações e das imprecações aos socos. Uma multidão se formou em volta deles. “Estão brigando acerca da ressurreição de um peru recheado,” disseram os vizinhos, a maioria dos quais apoiavam o cozinheiro cuja honestidade nunca fora posta em dúvida.
Entre os espectadores, havia uma mulher grávida. Quando o cozinheiro aplicou um pontapé no seu adversário, o golpe se desviou e atingiu a mulher, que emitiu um grito igual ao de uma galinha ultrajada e abortou na hora. Seu marido, informado, correu com um cacete enorme na mão, gritando: “Vou sodomizar este cozinheiro e seu pai e seu avô! Vou eliminar toda a raça dos cozinheiros da face da terra!”
O mestre do forno, não querendo enfrentar essa fúria, fugiu, subiu ao terraço e deixou-se cair no terraço vizinho. Quis o destino que ele caísse com seu peso enorme sobre um mouro que dormia num canto. As costelas do mouro foram quebradas, e ele morreu na hora. Os outros mouros acorreram e prenderam o cozinheiro, e arrastaram-no até a casa do juiz. O dono do peru e o marido da mulher grávida juntaram-se a eles. Armando-se de seu ar mais solene, o cádi começou por recolher depósitos dobrados de cada litigante e, apontando o dedo para o primeiro réu, o cozinheiro, perguntou: “Que tens a dizer a respeito do peru?”
Achando que era melhor aderir à tese do escravo do juiz, o cozinheiro respondeu: “Por Alá, ó representante da justiça humana e divina, assim que coloquei a ave no forno, emitiu um grito agudo e, mesmo recheado e guarnecido, levantou voo, foi-se e não mais voltou.”
Ao ouvir essas palavras, o dono do peru gritou: “Filho de cachorro, ousas contar tais tolices a nosso amo, o cádi?”
Mas o cádi repreendeu-o com indignação: “E tu, tens a audácia, ó ímpio infiel, de duvidar de que Aquele que ressuscitará todas as criaturas no Dia predestinado, recolhendo-lhes os ossos dispersos pelos quatro cantos da terra, é incapaz de devolver a vida a um simples peru que tinha ainda a totalidade de seus ossos e só lhe faltavam as plumas?”
Impressionada com a argumentação do juiz, a multidão gritou: “Glória a Alá que ressuscita os mortos!” e pôs-se a vaiar e apupar o dono do peru até que ele foi embora, lamentando sua falta de fé.
Então, o cádi virou-se para o marido da mulher que havia abortado e perguntou-lhe: “E tu, que tens contra este homem?” O marido expôs sua queixa.
E o juiz pronunciou a seguinte sentença: “O caso é claro. O cozinheiro causou sem dúvida o aborto com o golpe que desfechou na mulher. A lei de Talião se aplica. Tu, o marido lesado, ganhaste a tua causa. Autorizo-te, portanto, a levar tua mulher à casa do réu e deixá-la lá até que esteja grávida outra vez. Também poderá continuar a viver com o réu e às suas custas até o sexto mês de gravidez, já que o aborto aconteceu no sexto mês da primeira gravidez.
Ouvindo essa sentença, o marido declarou: “Ó nosso amo o cádi, desisto de minha queixa. Possa Alá perdoar meu adversário.
Abordando então o caso do mouro, perguntou o cádi aos seus parentes que acusação faziam ao cozinheiro. Falaram todos ao mesmo tempo, amaldiçoando o cozinheiro, apontando para o cadáver e clamando pelo preço do sangue.
Sentenciou então o juiz: “A evidência é decisiva. A indenização é devida. Preferis que seja paga em dinheiro ou em sangue?”
- Em sangue, gritaram. Sangue por sangue.
– Seja, proclamou o juiz. Levai este cozinheiro, enrolai-o na mortalha do defunto e colocai-o por baixo do minarete da mesquita do sultão Hassan. Então, o irmão da vítima subirá até o minarete e saltará de lá sobre ele, esmagando-o da mesma forma que ele esmagou a vítima... Quem de vós é o irmão do morto?
Um certo mouro, que parecia ser o líder do grupo, levantou-se e declarou: “Ó nosso amo o cádi, retiramos a nossa queixa contra este homem. Possa Alá perdoá-lo!”
E saiu, seguido por todos os membros de sua tribo. A multidão dispersou-se, maravilhada com a equidade, sutileza e os profundos conhecimentos jurídicos do cádi.
Quando os ecos do processo atingiram os ouvidos do sultão, restaurou o cádi nas suas altas funções e demitiu o honesto homem que o havia substituído.
Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.
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