sexta-feira, 26 de abril de 2024

Estante de Livros (“Contos Orientais”, de Marguerite Yourcenar)

Coletânea de contos que formam uma obra única na carreira de Marguerite Yourcenar. Baseados em lendas, fábulas, superstições de origem oriental - guardadas nas memória da autora e recriadas livremente - os contos lembram o fascínio do Oriente no cenário, no estilo, nos personagens.

Escritos ao longo dos anos que antecederam a eclosão da Segunda Guerra, estes Contos tornam patente a tentação oriental a que sempre Marguerite Yourcenar tem, de algum modo, sido sensível e, tanto pelo cenário em que se desenrolam como pelo estilo e o espírito que os habitam, sugerem as vias de acesso a uma harmonia e uma musicalidade próprias de outras paragens.

Da China à Grécia, dos Balcãs ao Japão, o conjunto de fábulas e lendas que constituem os Contos Orientais remete o leitor para o espaço insituável onde o sonho e o mito fazem ouvir, em cada narrativa, a sua estranha e obsessiva voz.

Invulgares, oníricos, com elementos que vão do sobrenatural ao mito e à lenda, estes contos vão beber a inspiração ao Oriente para daí abrirem as suas asas e conseguirem o que apenas a grande literatura consegue: abarcar o mundo, tocar a universalidade. Um pintor assombrado pelas imagens que cria, um herói traído, uma mãe que cuida do filho recém-nascido após a sua própria morte, uma deusa infeliz… 

Com uma linguagem sublime capaz de desvelar os mais secretos significados, Yourcenar aponta diretamente ao âmago da natureza humana e a noções tão fundamentais como a vida e a morte.

A Salvação de Wang-Fô inspira-se num apólogo taoista da velha China; 

O Sorriso de Marko e O Leite da Morte provêm de baladas balcânicas da Idade Média; 

Kali Decapitada deriva de um inesgotável mito hindu, precisamente o mesmo que, interpretado aliás em moldes completamente diferentes, forneceu a Goethe O Deus e a Bailarina e a Thomas Mann As Cabeças Trocadas. 

Por outro lado, O Homem que Amou as Nereidas e A Viúva Aphrodissia (O Chefe Vermelho, na edição original) têm como ponto de partida pequenas notícias locais ou superstições da Grécia de hoje, ou melhor, de ontem, porquanto a sua redação situa-se entre 1932 e 1937. 

Em contrapartida, Nossa Senhora das Andorinhas representa uma fantasia pessoal da autora, nascida do desejo de explicar o nome singelo de uma capelinha nos campos da Ática. 

Em O Último Amor do Príncipe Genghi, as personagens e o quadro da narrativa foram colhidos não num mito ou numa lenda, mas num grande texto literário do passado, no admirável romance japonês do século XI Genghi-Monogatari, da romancista Mourasaki Shikibu, que relata em seis ou sete volumes as aventuras de um Don Juan asiático de grande estilo. Mas, com uma delicadeza muito característica, Mourasaki «escamoteia» por assim dizer a morte do seu herói e passa do capítulo em que Genghi já viúvo decide retirar-se do mundo para aquele em que o seu próprio fim é um fato consumado. A novela que acabaram de ler pretende, se não preencher essa lacuna, pelo menos permitir imaginar o que teria sido esse epílogo se a própria Mourasaki o tivesse composto. 

O Fim de Marko, narrativa que, desde há anos tencionava escrever, só em 1978 foi redigida. O conto toma como ponto de partida um fragmento de uma balada sérvia que evoca a morte do herói às mãos de um circunstante misterioso, banal e alegórico. 

Em A Tristeza de Cornelius Berg, o protagonista leva uma vida pacata, longe dos áureos tempos em que todos os rodeavam, insaciáveis das empolgantes histórias vividas nos quatros cantos do mundo. Apresenta-se-nos decadente, sem interesses na vida, ignorado pelo mundo. Seu único amigo é um apreciador de flores. Não um verdadeiro amigo, pois apenas o convidava para saber a sua opinião acerca da sua nova joia, vulgo flor. Num destes encontros, Berg relembra o passado e como aquilo que um dia viu e sentiu se distancia do que ele é e sente neste momento.

Pintor de profissão notamos ao longo da leitura o desgaste que a transposição da natureza humana para a tela teve nele. Não mais vê o Homem como um ser belo e derradeira criação divina na Terra. Para ele, este não passa de um devaneio, de uma distração do Supremo, enquanto “moldava” as paisagens do Mundo.
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Marguerite Yourcenar, pseudônimo da escritora francesa Marguerite de Crayencour (1903-1987), Yourcenar é um anagrama de Crayencour, nascida em Bruxelas e que veio a naturalizar-se americana. As suas Memórias de Adriano,1952, tornaram-na internacionalmente conhecida.

Fontes:
Excerto do texto de Tiago Martins para o Clube de Artes e Ideias. 6 janeiro 2008.
Excerto do texto de Ernesto Luz para o Trade Stories

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