quinta-feira, 18 de abril de 2024

Maria Amália Vaz de Carvalho (As Filhas de Victor Hugo)

Há pouco tempo um escritor francês desconhecido entre nós, o sr. Gustavo Rivet, publicou um livro intitulado Victor Hugo chez lui, no qual pinta o grande poeta francês, surpreendido, por assim dizer, na intimidade dos seus pensamentos, de seus gostos, das suas atitudes mais familiares.

Desce do pedestal onde a nossa fantasia se compraz em o colocar, o poeta da Lenda dos Séculos, e mostram-no com a robe de chambre e as pantufas de qualquer honesto especulador do Marais.

Victor Hugo não perde em ser visto assim.

A sua alma amantíssima, desnudada diante do nosso olhar corresponde positivamente a tudo que dela esperávamos.

O avô brincando no tapete do seu quarto de trabalho com a graciosa Joaninha que a arte deste grande pais imortalizou, não desmente de modo algum o justiceiro implacável dos Châtiments.

Contudo não é o pai de família, que nós vamos hoje estudar em Victor Hugo, como o nosso título um tanto fantasioso parece estar indicando.

As filhas de Victor Hugo, que nós tentaremos apresentar diante dos olhos das leitoras, não são as filhas do seu matrimônio de simples mortal, são as radiosas filhas do seu gênio, as visões iluminadas que ele evocou com palavras de misterioso encantamento desse Olimpo inacessível onde vivem e nascem as criações imortais dos grandes artistas.

Para nós que temos vivido da palavra do mestre, que temos seguido com enternecimento apaixonado todas as fases do seu espírito, essas mulheres ideais é que são as suas verdadeiras filhas. Que nos importam as outras no fim de contas, se através destas é que ele se revelou tal como é?

Todos os artistas de primeira ordem criam um tipo de mulher, em que consubstanciam e sintetizam todos os sonhos que tiveram, todas as aspirações que tem concebido.

A mulher que eles fazem viver com a pena, se são poetas, com o escopro (cinzel) ou com o pincel, se são escultores ou pintores, não é como alguns querem que seja, a mulher que eles amaram: é mais do que isso, é a mulher que eles queriam amar!

Para essa é que a sua lira tem cantos mais ardentes, o seu cinzel mais aveludadas carícias, a sua paleta cores mais suaves, a sua pena traços mais vivos, análises mais delicadas, intenções mais graciosas e mais finas.

E como o coração dos homens é tão vasto que nele cabem dois cultos que se não prejudicam mutuamente, quase sempre esses artistas de que falamos tratam com o mesmo primoroso esmero dois tipos de mulher bem diversos, e que representam como a dupla face do seu modo de sentir.

Um deles personifica a virginal criança cujas seduções mais irresistíveis se chamam inocência, pudor, candura ou ignorância; lírios que o orvalho da manhã coroa com um diadema de pérolas, lírios que uma aragem mais quente crestaria, e que o contato de uns dedos brutais lançaria por terra murchos e amarrotados. Outro, a mulher na plena posse da sua perigosa soberania, a mulher sereia que encanta e embriaga e mata, consciente dos seus malefícios, e gozando do seu fatal poder!

Consoante o espírito do artista se enamora da sombria beleza do mal, ou da imaculada candura do bem, assim ele trata com mais delicada predileção o eterno feminino que representa uma das faces do mesmo problema insolúvel.

Porque o homem grande ou pequeno, inteligente ou medíocre, há de sempre amar a mulher debaixo de qualquer destas duas formas, ou antes debaixo delas ambas.

Até os bons nas suas horas de perversão, nas crises em que no coração deles triunfa a porção de domínio que há até mesmo na alma dos anjos, hão de sentir-se atraídos por este mistério luminoso e sombrio, que na arte pagã se chamou Circe ou Helena, que na Idade Média foi Melusina*, que na Renascença foi Impéria ou Lucrécia Bórgia, que os modernos enfim conhecem debaixo de tantos nomes, que o gênio de tantos homens tem revestido de prestígio mágico e de superior fascinação.

Os maus... escusado é dizer que os maus, só nessas mulheres símbolos do mal, símbolos de todas as seduções insalubres, hão de achar a graça magnética que arrasta e que enlouquece.

Não é por isso de admirar que todos os poetas as tenham cantado, que todos os romancistas as tenham descrito, mas na feição peculiar que cada um deles dá ao modo por que as estuda e as pinta, é que consiste a superioridade ou inferioridade do eterno tipo.

Quanto às outras, às boas, às cândidas, às angélicas, poucos as compreendem na sua genuína e original pureza, e os que as souberam compreender têm produzido obras primas!

Shakespeare é o poeta a quem se deve uma galeria mais radiosa e pura destas divinas crianças impecáveis.

Umas absortas num sonho de eterna tristeza, envoltas como que num pressentimento de inevitável desdita, como Ofélia ou Desdêmona; outras deixando florir nos lábios frescos a rubra flor da alegria matinal, mas todas lindas, e meigas e inocentes, todas fazendo crer no bem até os mais cínicos.

Victor Hugo tem, como Shakespeare, destas criações risonhas e simpáticas.

As mulheres de um como as mulheres do outro, têm na alma um pouco da alma das aves.

Têm a ligeireza alada do sonho, têm a graça imponderável das visões.

Não há ninguém que não quisesse ter por filha uma dessas crianças borboletas; não sei se todas as quereriam para esposas.

E, no entanto, são boas, de uma doce bondade inconsciente que delas se exala como o aroma se exala da flor; mas também as crianças são boas, e contudo ninguém como elas sabe ser engenhosamente cruel.

Victor Hugo com a sua alma de forte, que não precisa de auxílio, e não precisa de guia, não compreende a mulher como os modernos aspiram a encontrá-la.

Não quer a companheira robusta desse atleta moral, que é o lutador de hoje; não quer a mulher de ânimo refletido, de coragem viril, de consciência iluminada e austera, que na hora do perigo ou na hora do vacilo criminoso, arrasta ao impulso da sua voz o espírito do homem esmorecido ou duvidoso.

Ele, cuja vida tem sido uma ascensão progressiva para o bem, ele, que não precisa de outra bússola que não seja a luz interior que nunca se apaga nem bruxuleia, não teve necessidade de criar ao lado de Marius, ao lado de Didier, ao lado de Gennaro, ao lado dos seus altivos heróis, uma mulher forte que os auxiliasse e fortalecesse na grande luta do bem!

Oh! Não era de força que eles careciam.

Era de luz nas sombras do seu caminho sombrio!

Didier saberia resistir às seduções da criminosa voluptuosidade; Hernani saberia responder ao sinistro som da trompa funerária; Gennaro saberia confessar as suas indignações austeras e os seus ódios inquebrantáveis; Marius saberia amar a honra impoluta como as virgens, brilhante como as espadas, implacável como a eterna justiça.

Do que eles precisavam era de risos, de flores, de carícias e de beijos.

Precisavam de quem os arrancasse à contemplação do seu deslumbramento ideal e lhes dissesse ao ouvido ternamente, melodiosamente:

— Olha! Eu sou a graça, sou a poesia, sou o esquecimento, sou a embriaguez. Tenho só um nome, que vale por todos e a todos sobrepuja: eu sou o amor!

E não são mais nada as mulheres criadas pelo gênio portentoso de Hugo!

O amor, sempre o amor.

O amor egoísta, o amor cego, o amor absorvente, exclusivo, com os seus pudores instintivos, as suas ignorâncias virginais e as suas aspirações insaciadas a fatalidade irresistível da sua força!

No seu primeiro drama, Hugo todo imbuído das ideias cavaleirescas do Romanceiro, criou um tipo de mulher que é talvez um dos mais belos da sua formosa e radiante galeria.

Dona Sol sabe amar impetuosamente, ardentemente, e nesse amor que é a nota predominante do seu caráter, encontra força para todas as resistências viris.

Como ela é doce e humilde enlaçada pelos braços valentes do seu senhor, do seu leão das montanhas, do seu príncipe bandido, do seu rebelde e indomável cavaleiro!

Sorrisos, olhares, vozes, carícias, tudo é de veludo!

Um desejo dele, tem-na escrava! No entanto sabe por instinto, que ele, o herói, o forte não pode lhe pedir coisa alguma que a filha de um paladino das Espanhas deva recusar envergonhada.

Quem dirá que aquela graça pode fazer-se indignada, que aquela flexibilidade ondeante pode transformar-se em revolta implacável?

É que nela há de tudo! Porém esse tudo é simplesmente amor.

Apareça outro que a solicite, outro que ouse amá-la, e a pomba saberá ser leoa, para defender o seu tesouro!

Mas de que lhe vem a força com que ela domina, a indignação austera que a transfigura? Do coração.

As mulheres de Hugo não pensam, não raciocinam, amam! Isso lhes basta.

E se a fome às vezes as perde, se a maldade e a perfídia do homem as arrasta, nunca o amor deixou de as redimir.

Para elas o amor não é a perdição, é o resgate!

Veja Marion, a cortesã incrédula, a serpente de enganosas carícias, que um sentimento verdadeiro purifica e exalta, e que dele recebe uma nova e misteriosa virgindade! Veja Eponina, a filha das lamas de Paris, a quem um olhar de Marius inocula o amor, o sacrifício, a abnegação e o heroísmo!

Mas — contradição à primeira vista inexplicável e que no fundo tem talvez uma significação sublime — o amor que transfigura e santifica e ilumina as pecadoras, torna egoístas, torna ingratas as puras!

Eponina imola-se, porque ama, e Cosette, porque ama, esquece tudo que não seja o seu amor, e com a mesma pequena mão com que abre a Marius os paraísos inacessíveis enterra o punhal no seio de João Valjean!

Marion, de Magdalena impudica e triunfante, levanta-se Magdalena arrependida e piedosa, e Esmeralda não tem a esmola, a caridade de um sorriso bom para Quasímodo!

Porque?

Ah! É que umas são a ignorância na sua perfeição mais divina, outras guardam na boca o gosto amargo de todos os frutos vedados que têm devorado!

Umas não conhecem nada para além da nuvem iriada que as envolve e lhes intercepta o mundo, outras possuem a medonha ciência que é feita de todas as decepções, de todas as agonias, de todos os tédios, de todos os remorsos, de todas as náuseas da vergonha e do desprezo próprio!

Umas entram no amor, triunfantes, imaculadas, curiosas, ébrias de harmonias nunca ouvidas, sedentas de alegrias nunca sonhadas, absortas pela radiante visão que as transporta a mundos desconhecidos.

Viviam antes? Tinham afetos? Prazeres? Distrações?

Não sabem.

Sabem que as inundou a luz de um olhar, e que, a essa luz, viram o que nunca tinham visto, esqueceram tudo mais que fora seu.

As outras vão ali à porta daquela região de que hão de ser as eternas exiladas, pedir a esmola de um perdão, a caridade de umas horas de esquecimento.

E em troca desse consolo supremo a que se julgam sem direito, são capazes de todos os sacrifícios, de todos as renúncias sublimes que inventa a mulher depois de ter perdido a esperança de ser feliz.

Leitora, estás cansada das chatas e incaracterísticas figuras que tens encontrado na vida real? Entristecem-te dolorosamente os tipos hediondos ou repugnantes da moderna arte?

As Gervásias, as Bovarys, as Fannys, as pecadoras da França juvenil?

Pois bem, deixa que desfile diante de teu olhar pensativo a gloriosa legião das filhas de Victor Hugo.

Oh! Crê que não aprenderás com elas coisa alguma que rebaixe o teu espírito, que fira o teu coração, que surpreenda cruelmente o teu entendimento.

Todas elas sabem o que é o amor, muitas o que é o arrependimento, o remorso, a vergonha, a expiação; nenhuma sabe o que é o triunfo impudico do vício, a ostentação criminosa das vaidades mundanas, a impenitência imoral das que medram no meio do crime.

As pecadoras contar-te-ão a dolorosa história das suas amarguras, as virgens a doçura sonhadora dos seus êxtases!

Amaram, acreditaram, sentiram na plenitude do coração que a vida é boa, e que o paraíso pode encontrar-se num canto da terra.

Não sabem nada de toaletes, de pequenas intrigas, de namoros, de vícios mesquinhos, de invejas e de tagarelices; atravessaram o mundo com os olhos fitos noutros olhos, com as mãos enlaçadas noutras mãos, com a alma a cantar-lhes um hosanna de místicos arroubos!

Se queres estudar os escaninhos caprichosos de um coração de mulher bonita e garrida, não as procures, mas também lhes não peças que te falem nos nossos piedosos e obscuros deveres de todos os dias.

São as alucinadas do amor! Arrastou-as uma tempestade para outras esferas ardentes onde se não vive a vida que conhecemos!

Vê tu — Esmeralda! que bem posto nome!

Toda ela cintila ao sol como a pedra preciosa que lhe serviu de batismo; os seus dedos de cigana crestados e finos arrancam ao pandeiro do seu país doidos e estranhos sons! Fascina com um olhar inconsciente dos seus olhos de veludo, com uma nota da sua voz cristalina, com um meneio do seu corpo de serpente.

Que sabe ela da vida? Nada; a não ser que a vida é bela, visto que há dois olhos que ao fixar nos seus os banharam de fulgor!

E Cosette! Vive ao pé dela um enigma sombrio! Um espírito sobrehumano! Um lutador destas lutas interiores cujo reflexo se estampa na frente que as encerra.

Ela nunca interrogou essa alma, e nunca tentou decifrar esse enigma, e nunca sequer compreendeu a existência dessas lutas.

Ao seu companheiro triste, humilde, heroico, adorável ela deve durante quinze anos a ventura mais perfeita que pode gozar-se na terra.

Satisfez-lhe todos os desejos; todos os brinquedos daquela fada, encarregou-se de os fornecer a natureza na liberdade plena, nos seus idílios primaveris! Estava na escuridão, e deram-lhe luz; era escrava fizeram-na rainha.

Não importa! Marius apareceu e Cosette louca, deslumbrada, esquecida, deixa morrer de dor o amigo da sua risonha mocidade.

É má?

Não; é ignorante. Não sabe que se morre visto que ele vive na posse de uma ventura que nunca até ali conhecera.

Não sabe que se tem saudades, porque ao pé de Marius nunca esse espinho lhe mordeu no coração!

Pois é possível ser desgraçado quando eu sou tão feliz? - pergunta tacitamente com barbaridade que se ignora, cada um dos sorrisos de ventura que ela atirara em redor de si, sem se importar onde lhe vão cair!

Ai! Cosette, Cosette! Eu gosto de ti, borboleta, ébria de luz! És uma das visões luminosas que ficarás para sempre moça e querida! És uma estátua branca que ninguém ousará mutilar e que os séculos verão erguida no teu pedestal de flores! Mas como eu te amaria muito mais ainda se em vez de seres o Amor fosses o Sacrifício!

Um dia Victor Hugo pediu às neblinas matinais dos climas do norte, uma porção de renda branca e transparente com que elas coroam a crista das montanhas e... fez Déa (Deusa)!

Que doce, vaporosa e lendária visão!

Não há nela coisa alguma que seja realidade!

Toca na terra de leve; não tanto que pareça filha dela, não tão pouco que lhe não seja dado consolar alguém devotado às dores sem consolo.

É cega!

Amada por um monstro sabe verter-lhe na alma as alegrias de um Deus!

Não vê o homem que a ama, vê o amor de que ele a veste!

Abençoada cegueira que faz dois felizes!

Ao lado dela — supremo contraste! — sorri Josiane com o seu sorriso de deusa pagã!

No olho azul da patrícia inglesa cintila em chispas uma diabólica ironia.

Josiane é a amante do impossível! Procura o que nunca ninguém achou!

Quer um sonho que a sacie, o amor de um Titã, ou de um Cíclope, o amor de Apolo ou de Polifemo!

Estranha figura, produto doentio de uma noite de febre!

Dona Sol, Maria de Neuburgo, Marion, Eponina, Cosette, Déa, quantas figuras radiosas, quantas humanizações esplêndidas da mulher sonhada!

Nas horas de desalento ou de amarga dúvida, nas horas em que as misérias que nos cercam, nos fizeram encarar a vida pelo seu aspecto mais desolado e mais escuro olhemos para elas!

Dir-nos-ão os poetas de hoje que elas não existem, e, o que é pior, que elas não puderam existir nunca.

Oh! é bem triste, é bem estéril a arte que só trata de rebaixar o que em nós é de mais elevada essência, e só quer que vejamos a fatalidade brutal do instinto, onde víamos antes a fatalidade mais nobre do sentimento.

Não acreditemos o que eles nos dizem, porque na sua preocupação exagerada do horrível, eles mentem muito mais do que os outros mentiam na sua preocupação exagerada do belo!

Estes, reunindo todos os vícios e sordidez que encontraram dispersos numa só figura, conseguem apenas criar... um monstro, um ser híbrido e infecundo que a ninguém aproveita!

Os outros, sintetizando numa filha do seu gênio as harmonias, as feições, os encantos, que estudaram e amaram em toda a natureza, conseguiram alguma coisa mais!

Criaram o ideal imutável e eterno e ensinaram-nos a fitar nele os olhos da nossa alma, e a invoca-lo como um consolo adorável nas nossas horas de desalento e de agonia.
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Notas
* Melusina = é uma personagem da lenda e folclore europeus, um espírito feminino das águas doces em rios e fontes sagradas.

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.

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