O grupo ficou estatelado com a saída absurda de Damião. Que diabo acontecera ao rapaz? Corria a prosa tão animada, e eis que ele se levanta e zarpa, sem pedir licença.
— Ora, já se viu?
O Silvino engole violentamente o resto do cafezinho, em sinal de protesto. Mas o Damião caminha, na rua deserta, indiferente à fúria do Silvino. Nem sente direito o vento que corta a cidade de ponta a ponta.
— Eta invernão!
A caminhada não é longa. Damião sobe a escada de três em três degraus, fecha a porta à chave. Toma posição, sem mesmo despir o sobretudo.
Maciazinha, a pena do bico de pato! Uma beleza, de macia... Compraria meia dúzia delas, no dia seguinte. Imediatamente, porém, expulsa, do cérebro em faiscações, essa ideia mesquinha de compra e de meia dúzia. Urge encetar a obra. Por isso escreve devagarinho.
Tudo passa. O destino, esse fatal desvelador.
Bota uma vírgula bem caprichada, no fim da linha. E repete, em voz alta:
— “Tudo passa. O destino, esse fatal desvelador.”
Bem esse, o começo que idealizara.
— Fatal desvelador. Fatal... Bonito adjetivo. Só que parece um pouco trágico. Mas não. Quem manda no verso é o desvelador. Desvelador... Vai bem. Vai bem.
Precisa de um complemento para destino. O destino tem que fazer qualquer coisa. Escreve:
“Que prevalece na paixão e predomina no amor.”
— Muito comprida, essa linha.
Resmunga e olha o teto, vagamente.
— Pre-va-le-ce... Pre-do-mi-na.. Vá lá.
(Pausa).
— Amor... Paixão... Estas palavras significam o mesmo? Será o tal pleonasmo?
Corre ao dicionário.
“Pleonasmo, s.m. (gr. Pleonasmos)”
— Vem do grego, hein?
Sentencia o Dicionário Prático Ilustrado (edição revista, com 6000 gravuras, 110 quadros, 90 mapas e um suplemento extremamente útil sobre “tradução e aplicação das principais locuções latinas e estrangeiras” — ab imo pectore, abyssus invocat, alea jacta est, a quelque chose malheur est bon, etc., etc.): “Repetição de ideias ou de palavras que têm o mesmo sentido; viciosa, quando inconsciente ou devida à ignorância; legítima, quando propositada, para dar maior força à frase”.
— Legítima, quando propositada. É esse o meu caso. Exatamente. Eu repeti, para dar maior força à ideia. À ideia... Que ideia? O que eu queria era falar da Ofélia. Comecei com tudo passa para lembrar que tudo já passou.
Cresce, dentro de si, a imagem de Ofélia. Até parece um sonho.
— Ah! Um sonho... Direi que sonhei com ela. Isso mesmo.
A pena bico de pato trabalha febrilmente. Risca tudo, tudo, tudo.
É o seguinte, o novo texto:
“Eu te sonhei assim, Ofélia querida.”
— Assim, de que jeito?
Cata uma ideia. Uma, duas, três vezes. Nada! Quase desiste. Então se lembra de que o casaco pesadão poderia ser o culpado do enguiço. Saca-o fora, incontinenti. Tem movimentos mais livres. E é com verdadeiro júbilo que encontra:
“Dama então pra mim desconhecida.”
— Querida, desconhecida. Boa rima. Será que o primeiro verso pode rimar com o segundo? Acho que pode.
Corre dificílimo, o parto. Em todo o caso, sempre dá para terminar assim, a primeira quadra:
“Em cujo olhar todo cheio de candura.
Não lia a causa da minha desventura.”
— Candura... Desventura... Está rimado. A candura é dela. A desventura é minha.
Trabalha mais duas horas. De repente, exclama:
— Pronto!
Não parece mau, o verso final:
“Foi assim que te sonhei, Ofélia querida. Foi assim... Foi assim...”
Só então nota o cansaço. Os rins estão doendo.
Relê a obra, em voz alta, passeando no quarto, em diagonal. Depois, escreve o título, a lápis vermelho, em admirável cursivo:
“Eu te sonhei assim...”
Nessa noite, Damião dormiu como um bem-aventurado.
Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.
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