À sombra de uma faia, no parque, enquanto o príncipe, que era um menino, corria perseguindo as borboletas, abriu o velho preceptor o seu Virgílio e esqueceu-se de tudo, enlevado na harmonia dos versos admiráveis.
Os melros cantavam nos ramos, as libélulas esvoaçavam nos ares e ele não ouvia as vozes das aves nem dava pelos insetos: se levantava os olhos do livro era para repetir, com entusiasmo, um hexâmetro sonoro.
Saiu, porém, o príncipe a interrompê-lo com um comentário pueril sobre as pequeninas formigas que tanto se afadigavam conduzindo uma folhinha seca. Disse:
— Deus devia tê-las feito maiores. São tão pequeninas que cem delas não bastam para arrastar aquela folha que eu levanto da terra e atiro longe com um sopro.
O preceptor, que não perdia ensejo de educar o seu imperial discípulo, aproveitando as lições e os exemplos da natureza, disse-lhe:
— Lamenta V. A. que sejam tão pequeninas as formigas... Ah! meu príncipe, tudo é pequeno na vida: a união é que faz a grandeza. Que é a eternidade? Um conjunto de minutos. Os minutos são as formigas do Tempo. São rápidos e a rapidez com que passam fá-los parecer pequeninos. São eles, entretanto, que, reunidos, formam as horas, as horas fazem os dias, os dias compõem as semanas, as semanas completam os meses, os meses perfazem os anos, e os anos, Alteza, são os elos dos séculos.
“Que é um grão de areia? Terra; uma gota d'agua? Oceano; uma centelha? Chama; um grão de trigo? Seara; uma formiguinha? Força. Quem dá atenção à passagem de um minuto? É uma respiração, um olhar, um sorriso, uma lágrima, um gemido; juntai, porém, muitos minutos e tereis a vida.
“Ali vai um rio a correr — as águas passam aceleradas, ninguém as olha. Que fazem elas na corrida? Regam, refrescam, dessedentam, brilham, cantam e lá vão, mais ligeiras que os minutos.
“Quereis saber o valor de um minuto, disso que não sentis, como não avaliais a força da formiga? Entrai do mergulho na água e tende-vos no fundo — todo o vosso organismo, antes que passe um minuto, estará protestando, a pedir o ar que lhe falta. Ora! O ar de um minuto, que é isso? direis. É a vida, Alteza.
“Vedes a formiguinha que vai e vem procurando migalhas na terra — se a encontra e pode carreá-la leva-a; se é superior à sua própria força, recorre à companheira que passa; outras chegam, ajuntam-se em chusma e ei-las fazendo com facilidade o trabalho que seria impossível a uma só.
“Se a formiga desanimasse nunca iria provisão ao formigueiro. Assim vós, meu Príncipe, pretendeis um conhecimento, ides ao livro que o contém e inclinais-vos sobre ele. No primeiro instante tudo vos parece obscuro; desanimais, aborreceis-vos. Se lançardes de vós o livro ficareis sempre em ignorância, mas se persistirdes, apelando para todas as forças do vosso engenho, pouco a pouco ireis removendo as dificuldades e chegareis ao caminho franco da certeza.
“Assim é em tudo na vida. O que pretende governar deve ver o trabalho da formiga, porque é um ensinamento. Não pôde o príncipe alhanar um embaraço só com o seu juízo, chama a conselho os homens de mais experiência e tino, ouve-os, delibera com eles e, juntos, facilmente arredam o que, no princípio, parecia imóvel. Tudo é proporcional na vida. Deus não fez o insuperável. O “Impossível” é uma expressão inventada pelos fracos.
“O que é para a formiga um carreto, voa com o sopro débil de uma criança; o que é para o homem empecilho as águas levam de roldão; onde não pode a força de um braço supre-a o instrumento e, se ainda o embargo se obstina, então o homem apela para o homem como a formiga reclama a companheira e, conjuntamente, afastam o pesado entrave.
“Se eu vos pudesse levar ao labirinto, que é o reino subterrâneo das formigas, veríeis a perfeita ordem que nele há, a disciplina que o compõe, a harmonia que o rege e se cá fora pudesse ser aplicada a lei que regula a sociedade dos insetos exemplares fácil vos seria governar o povo porque todos os homens dar-se-iam por felizes nos seus postos, não haveria inveja nem ambição, males que tanto malsinam as sociedades.
“Qual é a força da formiguinha? É pouca para um grão de açúcar, entretanto, a formiga pode mudar montanhas se o formigueiro se ajunta em esforço solidário. Que é uma gota de orvalho? Um nada para o calor de um raio de sol, lançai-a ao mar, entrará na vaga concorrendo para o soçobro das maiores naus de guerra.
“Quereis ver a força da formiga, procurai-a no formigueiro, que é a união.”
Assim falou o preceptor. E, como passasse uma borboleta azul e o príncipe saísse a persegui-la, abriu, de novo, o seu Virgílio e continuou, delicadamente, a leitura interrompida.
Fonte> Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público.
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