Camilla, minha querida irmã! Digo que fiquei alarmada, mas não surpresa, com a tua última carta, eu bem queria te responder de outra forma, tamanha a minha aflição. Mas, por fim, uma carta é a melhor forma para nós duas, pelo menos no momento atual.
Infelizmente, a praga que você mencionou também chegou até aqui! Tu bem sabes, que por aqui a vida e o tempo se arrastam de forma lenta e com poucas mudanças. E, hoje, tenho saudades do bom tempo em que as nossas únicas preocupações sobre violências eram com os poucos roubos de bicicletas e de passarinhos furtados.
Li e reli a última carta, que tu me enviaste e não pude fazer certas ligações com casos isolados, que ocorreram por aqui, as nossas pequenas tragédias. Lembras do Sebastião? O nosso velho Tião, da nossa meninice, sempre bêbado e sempre andando e caindo pelas ruas da cidade? Inofensivo, pedindo dinheiro para mais um trago, pois bem, depois de muitos tragos o velho Tião, um dia ao final da tarde, ele cai no meio da rua. Pois bem, pensamos que por fim tinha morrido, mas não morreu e a história é um pouco estranha. Um policial que fazia a ronda na praça da cidade, que o viu caindo no chão, verificou os sinais vitais e percebeu que o Sebastião ainda estava vivo, e o policial chamou uma ambulância. E assim foi o maltrapilho e barbudo Tião parar no hospital, na cidade vizinha. Camila, minha irmã, foi um fato trágico, embora mais que esperado. E poucos deram mais atenção ao fato em si. E outra tragédia veio para abalar a nossa calmaria, longe dos grandes centros.
Camilla, tu te lembras do Luide? O nosso bom amigo de meninices faceiras! Pois bem, tu bem sabes dos problemas mentais que ele teve quando era mais moço, andando sem rumo pelas ruas da cidade e indo e vindo pelas cidades vizinhas, até ser reconhecido por alguém e o levarem de volta para casa. Ele sempre falava sozinho, interagindo com gente e coisas que não existem. Pois um dia ele ficou mais agitado, gritava, chorava, ria, esbraveja, se encolhia em desespero e por fim era um pouco agressivo. Até que por fim, ele também caiu no meio da rua, no mesmo lugar e na mesma hora que Tião caiu. Também foi socorrido, os socorristas notaram que estava desacordado, e mais uma vez, mais um dos nossos foi socorrido ao hospital.
Essas duas tragédias, em três dias de diferença, não chamaram a atenção de ninguém com muita profundidade, e Camilla, nem o jornal e o rádio de nossa cidade mencionaram os dois casos. O padre, da nossa paróquia, na missa de domingo pediu para rezarmos pelos nossos irmãos convalescidos. E, também, nas pequenas igrejas neopentecostais e protestantes, os pastores pediram orações pelas duas pobres almas.
Camilla, o mais trágico vem depois, Arthur, que tu não conheceste bem, era filho da Glória, a nossa amiga de escola, tu bem sabes que ela era minha amiga, éramos inseparáveis. Se lembra dela estudando? A Glorinha, sempre na nossa casa e às vezes, ela dormia na nossa casa! E o papai nunca deixava eu dormir na casa dela, era sempre uma briga com papai e mamãe e eu a Glorinha sempre chorávamos, quando ouvíamos o não de papai.
Pois bem irmã, tu bem sabes que eu dou aulas de inglês, português e literatura na escola que Glorinha era diretora. A mesma escola, que a gente estudou e nos formamos. Pois, minha querida Camilla, por Deus, Camilla, fui eu que escolhi o nome do primeiro e único filho dela, Arthur. Sempre adorei as lendas do rei Arthur como bem sabes, Camila. Por Deus, Camilla, não se sabe como e nem por quais circunstâncias, o nosso jovem Arthur, o nosso doce Arthur, professor de literatura, muito querido por todos e todas, sempre calmo, estudioso e bem comportado, estava andando pelas ruas da cidade. Estava encharcado de sangue, balbuciando palavras ininteligíveis, era um idioma estranho que ninguém entendia. E ele caiu inconsciente, no mesmo lugar, por Deus, Camilla, foi no mesmo lugar, na mesma hora, no final da tarde. Em um espaço de três dias.
Assim como os outros casos, ele caiu desacordado e mais uma vez foi socorrido por uma ambulância e levado ao hospital. E te confesso que não tive coragem de avisar a minha amiga querida, a minha irmã de coração. Por Deus, Camilla, me contaram depois que a nossa Glorinha não estava mais viva, Arthur a tinha matado. Pensei em uma briga entre os dois, pois era sempre assim quando Arthur perguntava pelo pai dele, quem eram, se estava vivo e onde vivia. Eu mesmo nunca soube e nem perguntei quem era o pai de Arthur. Mas os vizinhos não ouviram nada, pois os dois sempre que brigavam faziam muito barulho. Mas naquele sábado, ninguém percebeu nada e somente um estranho silêncio reinava na casa.
Pois bem, Camilla, soube mais tarde que Arthur estava desacordado no hospital. Os três casos, em um intervalo de três dias. E nesta hora, que tu passas os olhos nesta carta, você deve estar se perguntando porque você, de nada ficou sabendo. Pois bem, você tinha acabado de sair daqui, para dar as tuas aulas de música e em meu amor infinito por ti, não imaginava você voltando para casa e não era justo para contigo. Aqui se repetiu o mesmo silêncio que acontece por aqui, um hiato inexplicável.
O que aconteceu depois, minha querida Camilla, algo muito estranho, para além das estranhas tragédias que abalaram a nossa calmaria interiorana. Uma equipe médica, veio ver os três pacientes. Você sabe que poucas coisas escapam de um universo tão pequeno como o daqui. Uma aeronave descendo em uma fazenda por aqui não passou despercebida. E quando sai de dentro da aeronave uma equipe médica, na luz do dia, fica muito difícil de se esconder. Desembarcaram aqui e depois foram para o hospital na cidade vizinha.
E um nome começou a circular pela cidade, Calibor, o doutor sono. Só depois fiquei sabendo que ele era um neurologista estrangeiro, reconhecido no mundo da medicina. Eu gostaria de não o ter conhecido, mas tive o desprazer de o conhecer, pois este homem era tudo, menos o que se espera de um médico mundialmente renomado. Soubemos de muitas coisas, porque muitos médicos, médicas, enfermeiras e enfermeiras que trabalham no hospital, vieram viver por aqui na zona rural. Gente de fora que veio trabalhar no hospital.
Pois bem, Camilla, este sujeito passou por aqui, na nossa cidade, neste fim de mundo. Vi este homem de pele escura, sem um fio de cabelo na cabeça, rosto fino, um cavanhaque, parecia um egípcio. Não usava um jaleco branco como os médicos e o povo da saúde usam, ele estava usando um jaleco amarelo pálido.
E lá estava ele, analisando o local onde os três tinham caído, ele e seu séquito, homens e mulheres bem alinhados, e mais o diretor do hospital onde estavam os internados os infelizes cidadãos de nossa cidade.
Camilla, eu não queria ter visto, mas vi, pois do alvoroço da cena que tinha mobilizado a cidade, eu não escapei do canto da sereia. Eu vi quando o doutor tirou os óculos escuros e redondos de aro de tartaruga, as lentes eram espelhadas, vi os olhos dele, Camilla, os olhos não eram frios, e nem exalavam maldade, eram olhos blasfemos. Eram profundos, abissais e álgidos! Depois eles foram embora, como se nada fossemos, pois nem mesmo os políticos locais conseguiram convencer aquele homem estranho a ficar mais tempo na nossa cidade. Foram embora em uma limusine, levantando poeira.
Camilla, que cena, horrível ver aquele homem ali, eu senti na minha alma, eu bem sabia que algo de ruim estava por vir e veio. E o que passo a pensar que começou aqui, na nossa cidade, Camilla, vi nascer aqui a tempestade que te assola aí no litoral. É um sentimento meu, que guardo para mim e agora divido contigo.
Da tua irmã Cassilda.
Fonte> Fragmento do livro Sono paradoxal, de Samuel da Costa. Enviado pelo autor.
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