sábado, 8 de novembro de 2008

Jefferson Luiz Maleski (Escritores sem Fronteiras)

Pintura de J. P. Martins Barata
O escritor é o ser livre mais humano que existe. Para ele pouco importa localização física, familiar ou financeira. Ele mesmo constrói a sua geografia, os amigos e amores e a riqueza. O escritor é escritor, não importa se está preso ou se vive na dinastia Ming. Mas ele é incompreendido por quem não é igual a ele. Não o entenderão quando o virem exausto e cambaleante depois de uma árdua batalha com as muitas faces de si que resolveu criar, misturando um sótão e um raio catalizador, nem tampouco a sua negativa em se aposentar de vez no próximo livro. O seu corpo pode definhar, mas o seu espírito incendeia.

O escritor é o cara mais narcisista e generoso que existe. Nega precisar de leitores, mas causa alegrias e tristezas em muitos quando chega ao ponto final. Não importa o que leiam, pois ele mesmo é o primeiro e maior leitor, assim como o mais violento crítico. Ele escreve para suprir a sua dose de heroína diária, de chicotadas, de orações. E o escritor ainda é doador universal de alma tipo O positivo. Que exijam toda a sua vitalidade e ele a dará. Sacrificará a vida pelas letras. Deixará como herança ecoando pelas eras o som das penas arranhando o papiro, do grafite sujando o Moleskine, dos toques na máquina de escrever pela madrugada afora ou das batidas frenéticas nas teclas do computador que não devolve o ultimo manuscrito, pois o quer ler sozinho.

O escritor é uma criança que brinca de Deus. Depois cansa, e passa para mocinho e bandido, cabra-cega e adedonha. Para ele, o que importa é imaginar. Criar mundos cheios de monstros, fazer o mocinho subir na torre enquanto a mocinha foge com o ogro, vencer guerras onde um encara e vence zilhões e viver se apaixonando pela pessoa errada. O escritor rejuvenesce e se eterniza a cada linha escrita. A vida pulula dentro dele. Os seus olhos são portais que, se olhados bem de perto, revelariam outra dimensão: a que só ele vê mas quer mostrar aos outros que existe. Qual delas é a real não se sabe ainda, somente que ele passeia pelas duas. Se um escritor sumir por algumas horas, pode saber que ele não está neste Universo.

O escritor é o filósofo das diferenças. Quando fala sobre algo não emite uma opinião própria. Mostra tudo o que já foi dito e o que ainda não disseram. Mas se escreve “Eu quero voar”, é ambíguo, deixa o leitor decidir se quem fala é o escritor, a personagem, o contexto ou se é uma fala do próprio leitor predita pelo escritor.

O escritor, antes de tudo, vive mais, mesmo que morra jovem. Não vive um pouquinho de cada vez, vive tudo e um pouco mais sempre que ilumina palavras pelo horizonte escuro. Deixa um rastro para os bebês que engatinham, mas que já olha o que será o tal do be-a-bá. Por isso, pouco importa a vida física do escritor. O que importa é o seu legado. Quantos Kafka’s desconhecidos não terão enterrado tesouros com eles na morte por não terem um amigo infiel a quem confiar? Quantas epopéias escritas em papiro, couro, madeira, pedra, papel que tal qual poemas escritos na areia não foram lavados pelas ondas do tempo? Quantos não tiveram sótãos para se esconder enquanto todos ao seu redor eram dizimados? Quantos não terão computador nem acesso à internet para ler uma boba e simples homenagem ao dia do escritor?

Fonte:
http://www.jefferson.blog.br

A Ordem Nacional dos Escritores diploma novos associados em Sorocaba



Nesta sexta-feira, dia 7, o Presidente da Ordem Nacional dos Escritores José Verdasca diplomou e entregou, na sede da FUNDEC em Sorocaba, colares a três dezenas de novos associados, apresentados pelo Diretor Coordenador do núcleo local Douglas Lara.

A cerimônia teve lugar no salão de exposições da Fundec, contou com a presença de mais de uma centena de pessoas, desenrolou-se entre as 18H00 e as 21H00, e foi abrilhantada por um cantor local, que a todos encantou.

Entre os diplomados encontravam-se cinco escritores adolescentes, todos com trabalhos já publicados na antologia "Roda Mundinho", sendo que um deles - José Estevão Pinto de Oliveira, 13 anos - ali lançou a sua obra "O Lobvampiro", onde nos apresenta 23 ESTÓRIAS interessantes e agradáveis de ler, como O Homem Misterioso, O Enigma da Lobvampiro e outras mais.

Também o confrade Guilem Rodrigues da Silva - oficial da Marinha de Guerra brasileira aposentado, que vive na Suécia desde 1968 - se deslocou expressamente ao Brasil, para o lançamento do livro de poemas "Saudade e uma Canção Desesperada", já anteriormente lançado em Lund, onde vive, obra cuja tradução em português agora podemos usofruir.

Do também confrade Nicanor Pereira, recebemos o romance "Vidas Entrelaçadas", e do associado Renato de Oliveira Leme "A Baleia que Aprendeu a Voar".

Enfim, foi uma tarde-noite maravilhosa, com agradável serviço de buffet, dedicada à literatura em prosa e poesia, prestigiada por muitas personalidades da intelectualidade local, como os Presidentes da Academia Sorocabana de Letras e do Gabinete de Leitura, evento que nem o temporal que se abateu sobre a cidade conseguiu ensombrar.

Os novos membros são:

Alexandre Latuf,
Ana Paula Cattai Pismel,
Aparecido Gonçalves Viana,
Carlos Sérgio Monteiro Ferreira,
Clevane Pessoa.
Douglas Santos Junior,
Edival Moraes Blagitz,
Erasmo Figueira Chaves,
Geraldo Bonadio,
Guilen Rodrigues da Silva,
João Oliveira Verlangieri,
José Antonio Rosa,
José Estevão Pinto de Oliveira,
Julia Mira dos Santos,
Juliana Guimarães Terse,
Larissa Vendrami,
Lourdinha Blagitz,
Lúcio Flávio Machado,
Marcelo Plácido,
Marcelo Torca,
Maria Antonia Canavezi Scarpa,
Marilda de Almeida,
Mário Pereira Neto,
Mylton Ottoni,
Nicanor Filadelfo Pereira,
Nilza Florentina Vendrami,
Oswaldo Biancardi Sobrinho,
Renato de Oliveira Leme,
Risomar Fasanaro,
Sandra M. Julio,
Sônia Maria Grando Orsiolli,
Ximenes Alves Martins

O Que é a ONE?

A Ordem Nacional dos Escritores, doravante designada ONE - fundada em 18 de maio de 1982 - é uma sociedade civil com fins culturais e científicos, sem objetivos ou finalidades lucrativas, sediada na cidade e município de São Paulo, abrange todo o espaço da LUSOFONIA

A ONE tem por objetivos primordiais promover, estimular e ou de qualquer modo incentivar as atividades literárias, e congregar, aconselhar e auxiliar os autores seus associados em quaisquer obras e ou produções artístico-literárias, técnicas e científicas, bem como propugnar a atuação do escritor lusófono na livre manifestação de seu pensamento e em defesa de seus trabalhos e direitos.

Fonte:
Douglas Lara.
http://www.sorocaba.com.br/acontece

Literatura Maltesa

(tradução do espanhol: José Feldman)
(Fonte Triton e Karozzin)
A literatura maltesa autônoma de desenvolveu mais tarde do que no resto da Europa. Já quando esta havia florecido em toda a Europa, em Malta estava começando a surgir. Os autores malteses se somaram ao movimento romântico da Europa. O tema dos escritores foi sobre todo o orgullo nacional.

No final do século XIX se desenvolveram dois gêneros novelísticos: a novela histórica e a gótica. A novela histórica se classificava em história maltesa, história em geral e religião. No caso da literatura gótica a temática é o mal, obscuro e terrível, que irrompe no idílio do mundo.

A primeira novela política de um autor maltês apareceu em 1905. Na novela política maltesa se criticava a sociedade e a autoridade, e se situavam os sucessos em lugares fictícios. Em 1920 se fundou a Academia de Autores Malteses. O realismo começou a se desenvolver lentamente a partir de 1930. Criticava-se a sociedade em retratos da sociedade. Na década dos ´30 e ´40 este tipo de novela tinha muita popularidade.

Em 1967 se iniciou o Movimento pela Reativação da Literatura Maltesa. Até os anos 60 os escritores estavam empenhados em conseguir um estilo comum, que seria típico da ilha. Os autores de finais do século XX aceitaram que Malta não era um mundo a parte e se deixaram influenciar pela literatura de outros países.

Alguns dos escritores mais representativos da literatura maltesa são: Igino Lombardi, Immanuel Mifsud, Joseph Abela, Charles Casha, Trevor Zahra, Adrian Grima, Francis Ebejer, Emilio Lombardi, Dun Karm Psaila y Oliver Friggieri.

Fonte:
http://www.maltaenred.com/content/guia_paises/malta/cultura/36

Ilha de Malta

(Foto: Kalkara)
Malta encontra-se no Mar Mediterrâneo, a menos de 100 km da Sicilia. Malta é um pequeno arquipélago do Mediterrâneo, constituído por quatro ilhas, das quais só as três maiores (Malta, Gozo e Comino) são habitadas. O terreno é pouco acidentado e rochoso, com um litoral de falésias.

Malta, país situado no coração do Mediterrâneo, é um espaço de convergência de várias civilizações, com uma história milenar. O seu território é habitado desde cerca de 5200 a.C., tendo existido nas ilhas uma importante civilização pré-histórica anterior à chegada dos Fenícios, que deram à ilha principal o nome de Malat, que significa “porto seguro”. Durante alguns séculos, as ilhas foram sede da Ordem dos Cavaleiros de São João do Hospital e, durante algum tempo, fizeram parte do Império Britânico, tendo acedido à independência em 1964.

Além do clima e das belezas naturais, o turismo cresce em Malta, a partir do fascínio que o país desperta pela fusão de elementos culturais árabes, ingleses e italianos.

A capital e principal porto do país é Valletta. É um movimentado porto de trânsito entre o sul da Europa e o norte da África. Após um famoso e fracassado cerco pelos Turcos Ottomanos em 1565, Valletta foi tão fortemente fortificada pelos Cavaleiros de Malta, que se tornou uma das maiores fortalezas do Mar Mediterrâneo.
(Igreja de Mosta)
O povo de Malta é mundialmente famoso pela sua amabilidade e sua hospitalidade. Hoje, Malta é um dos mais populares recantos de férias no Mediterrâneo.

Durante os meses de verão, o acontecimento mais interessante é definitivamente a festa religiosa das cidades, realizada nos finais de semana e dedicada ao santo padroeiro. Com tantas igrejas na ilha, até seis diferentes cidades, poderão celebrar a mesma festa no mesmo final de semana. Junto com a estátua do santo, a banda da cidade e os mundialmente famosos fogos, fazem do acontecimento, uma festa sem igual.

A agricultura é a principal ocupação de Malta. Em torno de 40% da terra é cultivada, mas por causa da densidade da população e da fraqueza da terra, é necessária a importação de alimentos. Os manifaturados mais importantes são: alimentação industrializada, tecidos e confecções, móveis e artefatos de madeira, equipamento de transporte e maquinário. O conserto de navios é também muito importante para e economia de Malta.

Os recursos mais significativos são a pedra sabão, situação geográfica favorável e uma força de trabalho produtiva. Malta produz somente 20% das suas necessidades de alimentação, tem abastecimento limitado de água potável, e não tem recursos naturais de energia. Portanto, a economia e altamente dependente do comércio e servços exteriores.

A Industrialização e o turismo dão a maior contribuição para a economia. A indústria é responsável por 27% do PIB, sendo as indústrias de eletrônicos e confecções os maiores contribuintes. Em 1995 a inflação foi de 3%. O PIB de $7,000 per capita, coloca Malta entre as nações de renda mais ou menos alta.

Fontes:
http://www.geocities.com/athens/acropolis/2214/maltap.html
http://europa.eu/abc/european_countries/eu_members/malta/index_pt.htm

Ray Bradbury (Um Som de Trovão)



O anúncio na parede parecia tremular sob uma película de água quente. Eckels sentiu suas pálpebras estremecerem sobre seu olhar, e o anúncio queimava, na momentânea escuridão:

SAFARIS NO TEMPO, INC.
SAFARIS PARA QUALQUER ANO DO PASSADO
VOCÊ DIZ QUE ANIMAL.
NÓS O LEVAMOS LÁ.
VOCÊ O ABATE.

Uma flegma quente acumulou-se na garganta de Eckels; engoliu e empurrou-a para baixo. Os músculos ao redor de sua boca forma­ram um sorriso enquanto ele estendeu sua mão lentamente pelo ar, e naquela mão, balançava-se um cheque de dez mil dólares, para o ho­mem atrás da escrivaninha.

— Este safári garante que eu volte vivo?
— Não garantimos nada — falou o funcionário — exceto os dinos­sauros. — Voltou-se. — Este é o Sr. Travis, seu Guia, no safári ao pas­sado. Ele vai dizer-lhe o que e aonde atirar. Se ele disser para não ati­rar, não se atira. Se desobedecer às instruções, há uma pesada multa de mais de dez mil dólares, mais um possível processo do governo, quando voltar.

Eckels olhou, através do amplo escritório, numa completa con­fusão disforme, de fios entrelaçados e caixas de aço zumbindo, para uma aurora que agora reluzia laranja, então prateada, e então, azul. Havia um som como uma descomunal pira queimando todo o Tempo, todos os anos e todos os calendários, todas as horas empilhadas e incendiadas.

Um toque da mão e esta queima, instantaneamente, se reverteria lindamente. Eckels lembrou-se literalmente das palavras da propagan­da. De carvões e cinzas, da poeira e das brasas, como salamandras douradas, os velhos tempos, os anos jovens, podem saltar; rosas sua­vizando o ar; cabelo branco enegrecendo-se, rugas desaparecendo; tu­do ,voltando totalmente à origem, fugir à morte, precipitar-se para o começo de tudo, o sol nascendo nos céus ocidentais, e pondo-se glo­riosamente no leste, luas devorando-se a si mesmas no sentido oposto ao costumeiro, e tudo se sobrepondo, como caixas chinesas, coelhos em cartolas, tudo e todos retornando à morte viva, a morte da se­mente, a morte verde, ao tempo de antes do começo. O toque da mão poderia fazê-lo, o mero toque da mão.

— Inacreditável. — Eckels respirava, com a luz da Máquina sobre seu rosto fino. — Uma verdadeira Máquina do Tempo. — Abanou a cabeça. — É de fazer pensar. Se a eleição tivesse ido mal ontem, eu poderia estar agora me afastando dos resultados. Felizmente Keith ganhou. Será um bom presidente para os Estados Unidos.
— Sim — falou o homem por trás da mesa. — Temos sorte. Se Deutscher tivesse ganho, teríamos a pior ditadura. Há sempre um homem anti-tudo, um militarista, um anti-Cristo, anti-humano, anti-intelectual. O povo nos requisitou, sabe, como que brincando, mas a sério. Diziam que se Deutscher se tornasse presidente, queriam vi­ver em 1492. Claro, não é o nosso negócio conduzir Fugas, mas orga­nizar Safáris. De qualquer maneira, Keth é o presidente, agora. Tudo com que precisa preocupar-se agora é...
— Caçar meu dinossauro — Eckels acabou para ele.
— Um Tyranossaurus rex. O Lagarto Tirano, o monstro mais ina­creditável de toda a história. Assine este termo. O que quer que aconteça com você, não somos responsáveis. Esses dinossauros são muito vorazes.
Eckels animou-se, nervoso. — Tentando assustar-me!
— Francamente, sim. Não queremos que vá alguém que entre em pânico ao primeiro tiro. Seis lideres de safári foram mortos no ano passado, e uma dúzia de caçadores. Estamos aqui para dar-lhe a maior emoção que um caçador de verdade jamais almejou. Mandá-lo de volta sessenta milhões de anos, para pegar a maior caça de to­dos os tempos. Seu cheque ainda está aqui. Pode rasgá-lo.

O Sr. Eckels olhou para o cheque. Seus dedos retorceram-se.

— Boa-sorte — falou o homem atrás da escrivaninha. — Sr. Tra­vis, ele é todo seu.

Moveram-se silenciosamente, atravessando a sala, levando suas armas com eles, em direção à Máquina, rumo ao metal prateado e às luzes gritantes.

Primeiro, um dia e então uma noite e então um dia e então uma noite, e então era dia-noite-dia-noite-dia. Uma semana, um mês, um ano. uma década! 2 055 a. D., 2 019 a. D., 1 999! 1 957! Partida! A máquina rugia.

Puseram suas máscaras de oxigênio e testaram os intercomunica­dores.

Eckels inclinou-se no assento estofado, rosto pálido, maxilar enrijecido. Sentia o tremor em seus braços, olhou para baixo e achou suas mãos firmes no novo rifle. Haviam quatro outros homens na Máquinas. Travis, o líder do Safári, seu assistente, Lesperance, e mais dois outros caçadores, Billings e Kramer. Sentavam-se olhando uns para os outros, e os anos ardiam à volta deles.

— Estas armas podem dar conta de um dinossauro? — Eckels sentiu sua boca dizendo.
— Se os acertar direito — disse Travis pelo rádio do capacete. — Alguns dinossauros têm dois cérebros, um na cabeça e outro no fim da espinha. Ficamos longe destes. É abusar da sorte. Atire as duas primeiras vezes nos olhos, se puder, e cegue-os, e volte a atirar no cérebro.

A Máquina bramia. O Tempo era um filme passado ao contrá­rio. Os sóis voavam e dez milhões de luas, atrás deles. — Pense só — disse Eckels. — Todos os caçadores que jamais viveram nos inveja­riam hoje. Isto faz a África parecer com o Illinois.

A Máquina desacelerou; seu grito caiu para um sussurro. A Má­quina parou.

O sol parou no céu.

A névoa que envolvera a Máquina dissipou-se e estavam num tempo antigo, muito antigo mesmo, três caçadores e dois chefes de safári com suas armas metálicas sobre os joelhos.

— Cristo ainda não nasceu — disse Travis. — Moisés ainda não foi à montanha, para falar com Deus. As pirâmides ainda estão na terra, esperando para serem recortadas e montadas. Lembrem-se disso. Ale­xandre; César; Napoleão; Hitler; nenhum deles existe.

O homem fez que sim.

— Aquilo. — Apontou o Sr. Travis — é a selva de sessenta milhões dois mil e cinqüenta e cinco anos antes do presidente Keith.

Mostrou o caminho de metal que cruzava o verde selvagem, so­bre um amplo pântano, por entre fetos e palmeiras.

E aquele — disse — é o Caminho, colocado por Safáris no Tempo, para seu uso. Flutua a seis polegadas acima da terra. Não toca se­não no máximo uma grama, flor ou árvore. É um metal antigravitacional. Seu propósito é evitar que vocês toquem, de qualquer manei­ra que seja, este mundo do passado. Fiquem no Caminho. Não saiam dele. Repito. Não saiam. Por qualquer razão que seja! Se caírem, se­rão multados. E não disparem em nenhum animal que não aprove­mos.

— Por quê? — perguntou Eckels.

Sentaram-se, na floresta antiga. Gritos distantes de pássaros vieram com o vento, e o cheiro de alcatrão e de um velho oceano salga­do, grama úmida, e flores da cor de sangue.

— Não queremos mudar o Futuro. Não pertencemos ao Passado. O governo não gosta de nós aqui. Temos que pagar muita propina para garantir nossa licença. A Máquina do Tempo é um negócio extremamente delicado. Sem saber, poderíamos matar um animal im­portante, um pequeno pássaro, uma barata; mesmo uma flor, assim destruindo um elo importante, numa espécie em evolução.

— Isso não fica muito claro, — falou Eckels.
— Está bem — continuou Travis, — suponhamos que acidental­mente matemos um rato, aqui. Isso quer dizer que todos as futuras famílias deste rato, em particular, serão destruídas, certo?
— Certo.
— E todas as famílias das famílias, daquele rato! Com um pisão de seu pé, você aniquila primeiro um, então uma dúzia, então mil, um milhão, um bilhão de ratos, possivelmente!
— Então estarão mortos; e daí?
— E daí? — Travis torceu o nariz. — Bem, e as raposas que preci­sariam daqueles ratos para sobreviver? Para cada dez ratos a menos, morre uma raposa. Para cada dez raposas a menos, um leão morre de fome. Para cada leão a menos, insetos, abutres, infinitos bilhões de formas de vida são lançados ao caos e à destruição. Eventualmente, tudo recai no seguinte: cinqüenta e nove milhões de anos depois, um troglodita, um, de uma dúzia no mundo inteiro, vai caçar javalis ou tigres de dentes de sabre para comer. Mas você, amigo, pisou em todos os tigres daquela região. Pisando num só rato. Assim o troglodita morre de fome. E este homem das cavernas, note bem, não é qualquer um dispensável, não senhor! Ele é toda uma nação futura. Dele, teriam saído dez filhos. E destes, mais cem, e assim por diante, até a civilização. Destruindo este único homem, destrói-se uma raça, um povo, toda uma história. É comparável a matar um neto de Adão. O pisão de seu pé, num rato, poderia principiar um terremoto, cujos efeitos poderiam abalar nossa terra e destinos pelo Tempo afo­ra, até seus alicerces. Com a morte daquele troglodita, um bilhão de outros ainda não nascidos são mortos no útero. Talvez Roma nunca se erga sobre suas sete colinas. Talvez a Europa fique para sempre uma floresta espessa, e apenas a Ásia cresça, forte e saudável. Pise num rato e esmagará as Pirâmides. Pise num rato e deixará sua mar­ca, como um Grand Canyon, pela Eternidade. A rainha Elizabete poderá nunca nascer. Washington poderá não cruzar o Delaware, po­derá nunca haver Estados Unidos. Portanto, seja cuidadoso. Fique no caminho. Nunca pise fora!
— Percebo — comentou Eckels. — Então não poderíamos nem tocar a grama?
— Exato. Esmagar certas plantas poderia causar somas infinitesi­mais. Um erro mínimo seria multiplicado por sessenta milhões de anos, desmesuradamente. Claro, talvez nossa teoria esteja errada. Tal­vez o Tempo não possa ser alterado por nós. Ou talvez só possa ser alterado de maneiras sutis. Um rato morto aqui causa um desequilí­brio dos insetos ali, uma desproporção populacional mais tarde, uma colheita má mais adiante, uma depressão, fome, e finalmente uma mudança no temperamento social em países remotos. Algo muito mais sutil, como isso. Talvez algo ainda muito mais sutil. Talvez ape­nas uma respiração, um sussurro, um cabelo, um pólen no ar, uma mudança tão levezinha que se olhasse atentamente, não notaria. Quem sabe? Quem pode dizer que realmente sabe? Não sabemos. Estamos só adivinhando. Mas até que tenhamos certeza, se nossos passeios pelo Tempo podem fazer um barulhão ou um barulhinho na História, seremos cuidadosos.. Esta Máquina, este Caminho, suas rou­pas e corpo, foram esterilizados, como sabem, antes da viagem. Usa­mos estes capacetes de oxigênio de modo que não possamos introdu­zir bactérias nesta atmosfera primitiva.
— Como sabemos que animais abater?
— Estão marcados com tinta vermelha — explicou Travis. — Ho­je, antes da viagem, mandamos Lesperance aqui com a Máquina. Ele veio a esta época em particular e seguiu certos animais.
— Estudando-os?
— Isso — falou Lesperance. — Sigo-os por toda sua vida, obser­vando quais vivem mais. Quantas vezes se acasalam. Poucas vezes. A sua vida é curta. Quando vejo que algum vai morrer com uma árvore caindo em cima dele, ou um que se afoga num poço de alcatrão, ano­to a hora, minuto, e segundos exatos. Disparo um revólver de tinta. Deixa uma marca vermelha em seus flancos. Não podemos nos enga­nar. Então correlaciono com a chegada ao Caminho, de modo que encontremos o monstro a não mais de dois minutos de sua morte, inevitável. Desta forma, matamos apenas animais sem futuro, que nunca vão se acasalar de novo. Vê como somos cuidadosos?
— Mas se esta manhã você voltou no tempo, deve ter cruzado conosco mesmos, nosso safári! Como nos saímos? Tivemos sucesso? Conseguimos voltar todos... vivos?

Travis e Lesperance entreolharam-se.

— Isso seria um paradoxo, — falou este último. — O tempo não permite esse tipo de confusão; um homem encontrando a si mesmo. Quando há o risco de tais situações, o tempo desvia-se. Como um avião passando por um vácuo. Sentiu a Máquina pular antes de pararmos? Éramos nós passando por nós mesmos, a caminho do Futuro. Não vimos nada. Não há meio de dizer se esta expedição teve suces­so; se pegamos nosso monstro, ou se todos nós, isto é, o senhor, Sr. Eckels, saiu vivo.

Eckels sorriu, palidamente.

— Parem com essa conversa — interrompeu Travis. — Todos de pé!

Estavam prontos para deixar a Máquina.

A selva era alta, a selva era larga, e a selva era todo o mundo, pa­ra sempre. Sons como música, e sons como tendas voando, encheram o ar, e eram pterodátilos planando com cavernosas asas cinzentas, morcegos gigantescos de delírio e febre noturna. Eckels, equilibrado no estreito Caminho, apontou seu rifle, bem-humorado.

— Pare! — falou Travis. — Não aponte nem mesmo por brinca­deira, idiota! Se a arma dispara...

Eckels enrubesceu. — Aonde está nosso Tyranossaurus?

Lesperance checou seu relógio de pulso. — Logo à frente. Vamos estar no caminho dele em sessenta segundos. Atenção para a tinta vermelha! Não atire até que eu mande. Fique no caminho. Fique no Caminho!

Moveram-se adiante, pelo vento da manhã.

Estranho — murmurou Eckels. — Lá adiante, daqui a sessenta milhões de anos, fim das eleições. Keith presidente. Todos celebran­do. E aqui estamos, perdidos num milhão de anos, e eles não existem ainda. As coisas que nos preocuparam por meses, por uma vida intei­ra, nem nasceram nem foram idealizadas, ainda.

— Soltar as travas, todos! — ordenou Travis. Você dá o primeiro tiro, Eckels, Billings o segundo, e Kramer o terceiro.
— Já cacei tigre, javali, búfalo, elefante, mas agora, isto é incomparável — disse Eckels. — Estou tremendo como uma criança.
— Ah — fez Travis. Todos pararam.

Travis ergueu a mão. — À frente — falou, em voz baixa. — Na ne­blina. Lá está ele. Ali está Sua Majestade Real, agora.

A selva era ampla, e cheia de gorjeios, farfalhares, murmúrios e suspiros.

Subitamente, tudo cessou, como se alguém tivesse fechado a porta.

Silêncio.

Um som de trovão.

Da neblina, a cem jardas, vinha o Tyranossaurus rex.

— É ele — cochichou Eckels, — é ele... —Psss!

Ele veio sobre grandes pernas, oleosas, resilientes. Erguia-se a trinta pés, acima da metade das árvores, um grande deus do mal, do­brando suas delicadas garras de relojoeiro perto de seu peito oleoso, reptílico. Cada pata inferior era um pistão, mil libras de osso branco, mergulhadas em grossas cordas de músculos, revestidas por um brilho de uma pele pedregosa, como a malha de um terrível guerreiro. Cada coxa, uma tonelada de carne, marfim, e aço trançado. E da grande gaiola arquejante da parte superior do corpo, aqueles dois braços de­licados pendurados para a frente, braços que poderiam erguer e exami­nar os homens como brinquedos, enquanto se dobrava o pescoço de serpente. E a cabeça mesmo, uma tonelada de pedra esculpida, ergui­da com facilidade contra o céu. Sua boca escancarava-se, expondo uma cerca de dentes como dardos. Seus olhos rolavam, ovos de aves­truz, vazios de qualquer expressão, exceto fome. Fechava a boca num sorriso da morte. Corria, seus ossos pélvicos derrubando para os lados árvores e arbustos, seus pés, com garras, afundando-se na terra úmida, deixando marcas de seis polegadas de profundidade aonde quer que apoiasse seu peso. Corria com um passo deslizante de ballet, muito aprumado e equilibrado para suas dez toneladas. Movia-se, cansado, numa arena ensolarada, suas mãos lindamente reptilianas tateando o ar.

— Ora, vejam — Eckels torceu a boca. — Poderia esticar-se e pegar a lua.
— Pssst! — fez Travis, nervoso. — Ele ainda não nos viu.
— Não pode ser morto. — Eckels pronunciou seu veredito, quie­to, como se não pudesse haver discussão. Tinha avaliado a evidência, e era esta sua abalizada opinião. O rifle em sua mão parecia uma ar­ma de brinquedo. — Fomos loucos de ter vindo. Isto é impossível.
— Cale-se! — silvou Travis.
— Pesadelo.
— Dê meia volta — comandou Travis. — Vá em silêncio para a Máquina. Podemos reembolsar-lhe metade de sua passagem.
— Não percebia como seria grande, — falou Eckels. — Avaliei mal, foi isso. E agora, quero desistir.
— Ele nos viu!

Lá está a tinta vermelha em seu peito!

O Lagarto Tirano levantou-se. Sua carne de armadura rebrilhava como mil moedas verdes. As moedas, com uma crosta de lama, fer­viam. No lodo, pequenos insetos esperneavam, de modo que todo o corpo parecia retorcer-se e ondular, mesmo enquanto o monstro não se movia. Expirou. O cheiro de carne crua foi soprado pelos ermos.

— Deixe-me sair daqui — disse Eckels. — Nunca foi como isto, agora. Eu sempre estava certo de que poderia sair vivo. Eu tinha bons guias, bons safáris, e segurança. Desta vez, enganei-me. Encontrei algo que me supera, e reconheço. É demais para eu enfrentar.
— Não corra — falou Lesperance. — Dê a volta. Esconda-se na Máquina.
— Sim, — Eckels parecia entorpecido. Olhou para seus pés, como que tentando fazê-los mover-se. Deu um grunhido, incapaz.
— Eckels!

Deu alguns passos, piscando, hesitante,

— Não por aí!

O Monstro, ao primeiro movimento, impulsionou-se para a fren­te com um grito terrível. Cobriu cem jardas em seis segundos. Os rifles ergueram-se rapidamente e iluminaram-se, com o fogo. Um ven­daval da boca da besta engolfou-os na fedentina do lodo, e sangue envelhecido. O Monstro rugiu, dentes brilhando ao sol.

Eckels, sem olhar para trás, caminhou cegamente para a borda do Caminho, sua arma carregada frouxamente em seus braços, saiu do caminho, e andou, inadvertidamente, pela floresta. Seus pés afun­daram em musgo verde. Suas pernas o carregavam, e ele se sentia só e afastado dos eventos lá atrás.

Os rifles dispararam de novo. O som perdeu-se no grito e no tro­vão do lagarto. O grande volume da cauda do animal lançou-se para cima, e para o lado. Árvores explodiram em nuvens de folhas e ra­mos. O Monstro torceu suas mãos de joalheiro para acariciar os ho­mens, para dobrá-los ao meio, para esmagá-los, como frutinhas, para empurrá-los para seus dentes e sua garganta ruidosa. Seus olhos, quais rochedos, estavam ao nível dos homens. Viram-se espelhados. Dispararam nas pálpebras metálicas e na luminosa íris.

Como um ídolo de pedra, como uma avalanche de montanha, o Tyranossaurus caiu. Trovejando, agarrou árvores, e puxou-as consigo. Agarrou e cortou o Caminho. Os homens precipitaram-se para trás, e para longe. O corpo abateu-se, dez toneladas de carne fria e pedra. Os rifles dispararam. O Monstro brandiu sua cauda blindada, crispou suas mandíbulas de serpente, e imobilizou-se. Uma fonte de sangue jorrava de sua garganta. Em algum lugar lá dentro, um saco de fluido estourou. Borbotões nauseantes inundaram os caçadores. Lá estavam vermelhos, brilhantes.

O trovão dissipou-se.

A selva estava silenciosa. Depois da avalanche, uma paz verde. Depois do pesadelo, o amanhecer.

Billings e Kramer praguejavam pesadamente, com seus rifles ain­da fumegando.

Na Máquina do Tempo, face abatida, Eckels tremia. Tinha con­seguido voltar ao caminho, e subira na Máquina.

Travis chegou, olhou para Eckels, pegou gaze de algodão e, virou-se para os outros, que estavam sentados sobre o Caminho.

— Limpem-se.

Limparam o sangue de seus capacetes. Começaram a resmungar, também. O Monstro jazia ali como uma montanha de carne. Dentro dele, podia-se ouvir os sopros e murmúrios, enquanto seus recessos iam morrendo, os órgãos parando de funcionar, líquidos circulan do um último instante, de saco para a bolsa, para vesícula, tudo des­ligando-se, parando para sempre. Era como ficar perto de uma loco­motiva acidentada, ou uma escavadeira a vapor, no momento de des­ligar, com todas as válvulas sendo desativadas. Ossos estalavam; a tonelagem de sua própria carne, desequilibrada, peso morto, quebrava os delicados braços, do lado de baixo. A carne se assentava aos tre­mores.

Outro estalido. Mais acima, um enorme galho de árvore partiu de sua pesada ancoragem, caiu. Golpeou certeiramente a fera morta.

— Pronto. — Lesperance verificou seu relógio. — Bem na hora. Essa era a grande árvore que deveria cair e matar este animal, origi­nalmente. — Olhou para os dois caçadores. — Querem tirar a foto de troféu?
— Quê?
— Não podemos levar o troféu para o Futuro. O corpo deve fi­car aqui, aonde deveria originalmente morrer, de modo que os inse­tos, pássaros, e bactérias possam devorá-lo, como devem. Tudo equi­librado. O corpo fica. Mas podemos tirar uma fotografia de vocês a seu lado.
Os dois homens fizeram força para pensar, mas desistiram, aba­nando as cabeças.
Deixaram-se guiar ao longo do Caminho de metal. Afundaram cansados, nos assentos da Máquina. Olharam de novo para o Monstro arruinado, o montículo em estagnação, aonde já estranhos pássaros reptilianos e insetos dourados estavam ocupados com a fumegante armadura.
Um som no chão da Máquina do Tempo deixou-os tensos. Eckels estava lá, tremendo.
— Lamento muitíssimo — disse.
— Levante-se! — gritou Travis. Eckels levantou-se.
— Vá para o Caminho sozinho — falou Travis, com seu rifle apontado. Não vai voltar para a Máquina. Vamos deixá-lo aqui!

Lesperance agarrou o braço de Travis. — Espere...

— Fique fora disto! — Travis desvencilhou-se de sua mão. — Este louco quase matou-nos. Mas isso não é tanto assim. Vejam seus sapa­tos! Vejam! Ele saiu do Caminho. Isso nos arruína! Seremos multa­dos! Milhares de dólares de seguro! Garantimos que ninguém deixa o Caminho, e ele o deixou. Ora, o louco! Terei de informar o Governo. Poderão cancelar nossa licença para viajar. Quem sabe o que ele fez ao Tempo, à História!
— Calma, tudo o que ele fez foi pisar em alguma sujeira.
— Como saber? — gritou Travis. — Não sabemos nada! É um mistério! Saia, Eckels!

Eckels mexeu em sua camisa. — Pago qualquer coisa. Mil dóla­res!

Travis olhou para o talão de cheques de Eckels e cuspiu. — Saia. O Monstro está perto do Caminho. Afunde os braços até os cotove­los na boca dele. Então poderá voltar conosco.

— Isto é irrazoável!
— O Monstro está morto, seu idiota. As balas! As balas não po­dem ser deixadas para trás. Elas não pertencem ao Passado; poderão mudar alguma coisa. Aqui está a minha faca. Cave-as!

A selva estava viva de novo, cheia de antigos tremores e do baru­lho dos pássaros. Eckels voltou-se lentamente para olhar o monte de carniça primordial, aquela montanha de pesadelos e terror. Depois de um longo tempo, como um sonâmbulo, arrastou-se ao longo do Caminho.
Voltou, tremendo, cinco minutos depois, com seus braços enso­pados e vermelhos até os cotovelos. Estendeu as mãos. Cada uma se­gurava algumas balas de aço. Então caiu e ficou lá, imóvel.

— Você não precisava obrigá-lo a isso — comentou Lesperance.
— Não? É cedo ainda para dizer. — Travis tocou o corpo, com o pé. — Viverá. Da próxima vez não vai sair para caçar este tipo de ca­ça. OK. — Ergueu o polegar para Lesperance. — Dê a partida. Vamos para casa.

1492 . 1776 . 1812 .

Limparam suas mãos e faces. Trocaram de roupa. Eckels estava de pé de novo, mudo. Travis olhou para ele por dez minutos.

— Não olhe para mim, — exclamou Eckels. — Não fiz nada.
— Quem pode saber?
— Apenas saí do Caminho, foi tudo, um pouco de lama em meus sapatos; que quer que eu faça? Que me ajoelhe e reze?
— Talvez precisemos disso. Estou lhe avisando, Eckels! Posso matá-lo, ainda. Minha arma está engatilhada.
— Estou inocente. Não fiz nada! 1999 . 2000 . 2055 .

A Máquina parou.

— Saia — ordenou Travis.

A sala lá estava, tal como quando saíram. Mas não exatamente a mesma. O mesmo homem atrás da mesma escrivaninha. Mas o mes­mo homem não parecia estar sentado exatamente atrás da mesma escrivaninha.

Travis olhou em volta, depressa. — Tudo em ordem por aqui? — foi logo perguntando.

— Claro. Bem vindos ao lar!

Travis não relaxou. Parecia estar olhando para os próprios áto­mos do ar, e para o modo pelo qual o sol entrava pela janela alta.

— OK, Eckels, saia. E nunca mais volte. Eckels não podia mover-se.
— Ouviu-me, — falou Travis. — Para o quê está olhando? Eckels ficou, cheirando o ar, e havia algo no ar, uma substância tão tênue, tão sutil, que apenas um fraco aviso de seus sentidos su­bliminares avisavam-lhe que estava ali. As cores, branco, cinza, azul, laranja, na parede, na mobília, no céu, pela janela, eram... eram... E havia uma sensação. Sua carne crispava-se. Ficou bebendo aquela estranheza com os poros de seu corpo. Em algum lugar, alguém devia estar soprando naqueles apitos que só os cães podem ouvir. Seu cor­po gritava silenciosamente, em resposta. Além deste aposento, além desta parede, além deste homem, que não era exatamente o mesmo homem que estava sentado àquela mesa, que não era bem a mesma mesa... estava todo um mundo de ruas e gente. Que espécie de mun­do era agora, não havia como dizer. Ele podia senti-los mover-se ali, além das paredes, quase, como peças de xadrez por um vento quen­te...
Mas a coisa mais imediata era o anúncio pintado na parede do escritório, o mesmo que havia lido hoje ao entrar. De alguma forma, o anúncio havia mudado:

SEFARIS NU TENPO, INC.
SEFARIS PRA QUALQUER ANO PAÇADO.
CÊ DIS QUI ANIMAU.
NÔIS LEVAMOS CÊ LÃ.
CÊOABAT.

Eckels sentiu-se caindo numa cadeira. Ficou mexendo, como louco, na lama em suas botas. Ergueu um pedaço de algo enlameado, tremendo. — Não, não pode ser, não uma coisinha assim, não!

Embebida na lama, brilhando em verde e dourado e preto, havia uma borboleta, muito bela, e muito morta.

Não uma coisa assim! Não uma borboleta! — gritou Eckels.

Caiu ao chão, uma coisa exótica, pequena, que poderia desman­char equilíbrios e derrubar uma fila de dominós pequenos, e então grandes dominós, e então dominós gigantes, por todos os anos atra­vés do Tempo. A mente de Eckels turbilhonava. Não podia mudar as coisas. Matar uma borboleta não podia ser tão importante! Ou pode­ria?

Seu rosto estava frio. Sua boca hesitava, ao perguntar: — Quem... quem ganhou a eleição presidencial ontem?

O homem atrás da escrivaninha riu-se. — Está brincando? Sabe muito bem. Deutscher, claro! Quem mais? Não aquele maluco pusi­lânime do Keith. Temos um homem de ferro, agora, um homem de peito! — O funcionário parou. — O que há de errado?

Eckels gemeu. Caiu de joelhos. Examinava a borboleta dourada com dedos trêmulos. — Não podemos — implorava ao mundo, a si mesmo, aos funcionários, à Máquina. — Não podemos levá-la de vol­ta, não podemos fazê-la viver de novo? Não podemos recomeçar? Não poderíamos...

Não se moveu. Olhos fechados, esperou, abalado. Ouviu Travis ofegando, na sala; ouviu Travis apontar o rifle, destravá-lo.

Houve um som de trovão.

Fonte:
BRADBURY, Ray. Os Frutos Dourados do Sol. São Paulo: Círculo do Livro.

Nilto Maciel (Literatura Fantástica no Brasil - Parte III)



MURILO RUBIÃO

Nascido Murilo Eugênio Rubião, em lº de junho de 1916, um dos mais importantes cultores do conto fantástico no Brasil estreou em 1947, com o livro O Ex-Mágico.

Murilo Rubião dedicou-se exclusivamente ao conto, como poucos escritores brasileiros. Todos os grandes contistas brasileiros são também romancistas e poetas. É o caso de Machado de Assis.

Outra singularidade da Murilo – a dedicação ao fantástico. E por que isso? Ele mesmo responde: “Minha opção pelo fantástico foi herança da minha infância, das leituras que fiz, e também porque sou um sujeito que acredita muito no que está além das coisas: nunca me espanto com o sobrenatural, com o mágico, com o mistério.”

Carlos Vogt constata serem “poucos e magros" os espécimes do gênero fantástico, “tendo na solidão paciente do trabalho de Murilo um raro caso de expressão maior.” E é verdade. E até seria mais cômodo para o historiador ou o estudioso dedicar-se exclusivamente ao contista mineiro. Pois a literatura crítica brasileira é rica em artigos e ensaios que tem como foco o criador do Pirotécnico Zacarias. Em 1987 o Suplemento Literário do Minas Gerais, por exemplo, dedicou uma série de três edições a Rubião, com artigos e ensaios assinados por alguns dos melhores críticos literários brasileiros. A série intitulou-se “Murilo Rubião, 40 anos de ex-mágico”.

Um dos mais alentados ensaios da série é assinado por Nelly Novaes Coelho e tem por título “A civilização-da-culpa e o fantástico-absurdo muliriano”. Transcrevamos os dois primeiros parágrafos: “O fantástico é posterior à imagem de um mundo sem milagres, submetido a uma rigorosa causalidade... Só as culturas que chegarem a uma ordem constante, objetiva e imutável dos fenômenos, puderem dar origem, como por contraste, a essa forma particular de imaginação, que contradiz, expressamente, a regularidade perfeita (daquela ordem): o espanto do sobrenatural". (Rogar Caillois, in Antologia del Cuento Fantastico. Buenos Aires, Ed. Sudamericana, 1970).

Diríamos, porém, que o fantástico muriliano (tal como o de Kafka) é posterior ao espanto, de que fala Caillois. Este teria correspondido à primeira reação dos homens diante da nova imagem-do-homem-e-do-mundo que a Ciência positivista lhes revelara. Superado o espanto do primeiro momento, sobreveio a revolta e depois a resignação, a apatia ou o espanto congelado (de que fala Davi Arriguci), diante do inevitável. Nesse sentido, o que espanta o leitor de Murilo Rubião é o fato de nada espantar os seus personagens. Envolvidos, inexplicavelmente, nas situações mais fantásticas, trágicas e sem sentido, eles se deixam levar. Impotentes diante dos fatos ou incapazes de revolta, submetem-se passivamente à fatalidade dos acontecimentos.”

Outra dedicada crítica de Rubião é Eliane Zagury. Ao lembrar o tempo decorrido entre o primeiro e o segundo livro do contista, a ensaísta constata: “Murilo nunca teve pressa em exibir o novo que nos tinha a ofertar.” Em outro ensaio, “O contista do absurdo”, Zagury traça o perfil literário do contista – "o representante originalíssimo de uma literatura de ficção muito pouco explorada na literatura Brasileira, tão afeita às analogias mais primitivas da realidade que a sustém.”

Antonio Hohlfeldt vê no escritor mineiro o mais importante representante brasileiro do que ele chama de “conto alegórico”. No entender de Temístocles Linhares, no entanto, o fantástico não é o traço dominante na literatura de Rubião. “Na verdade, o sonho e a fantasia é que inspiram a maioria de seus contos”, diz ele. E noutra página de seus 22 Diálogos sobre o Conto Brasileiro Atual observa: que o fantástico praticado por Murilo no livro de estréia “era outro tipo de fantástico, um fantástico mais mágico, menos real, se assim me posso exprimir. As estórias de Rubião se desenvolviam mais em torno do sonho e da fantasia. Eram mais parábolas que continham muita verdade, sou o primeiro a reconhecer, mas que se afastavam desse outro tipo de fantástico mais próximo das velhas crenças humanas e que traduz de certa forma a volta a um estado da consciência bastante antigo, ou seja, a revivescência de sentimentos instintivos, tal como nos faz sentir José J. Veiga. – De qualquer modo, são apenas diferenças de tom, pois tanto o fantástico, como o mágico ou o feérico têm origem comum. – Sim, mas o fantástico pertence pelo espírito ao mundo do terror ou do medo, ao passo que o mágico, ou melhor, o feérico, talvez a melhor característica de Rubião, ao mundo da intercessão, do refúgio contra o terror ou o medo.” Mais adiante afirma: “O fantástico de Murilo Rubião talvez seja mais intelectual. Os seus fantasmas são mais concebidos pelo espírito...”

Neste diálogo, onde faz algumas comparações de J.J. Veiga com Murilo Rubião, ainda explica: “Os (contos) de Murilo Rubião giram mais em volta de gente da cidade, de mágicas, de almas penadas, de defuntos que revivem, de loucos, de mulheres monstruosas, etc. Quer dizer, um fantástico mais ligado às pessoas, aos seus costumes mágicos, ao passo que...”

A bibliografia de Murilo Rubião é a seguinte: O Ex-Mágico (1947), A Estrela Vermelha (1953), Os Dragões e Outros Contos (1965), O Pirotécnico Zacarias (1974), O Convidado (1974), e A Casa do Girassol Vermelho (1978). Seriam, pois, seis livros. No entanto, como explica Carlos Vogt no artigo “A construção lógica do absurdo”, a matemática muriliana não é bem assim, vez que o contista sempre reescreveu e reeditou seus contos, sob títulos diferentes de livros. Assim, A Casa do Girassol Vermelho contém os mesmos contos de A Estrela Vermelha “e contos que lá se encontravam foram, por sua vez, publicados em 1965 no volume Os Dragões e Outros Contos, que, por sua vez, continha trabalhos republicados em 1974, em O Pirotécnico Zacarias, título também de um conto já publicado no Ex-Mágico. Enfim, a circularidade é sem fim. Propositadamente. É que Murilo Rubião é, na verdade, um reescritor, no melhor e mais conseqüente sentido que este termo possa ter, quando aplicado a um autor que elabora e reelabora minuciosamente os seus contos e não apenas por zelo profissional”(...).

Na “síntese crítica” de Murilo Rubião, no didático Dicionário Prático de Literatura Brasileira, escreveu Assis Brasil: “Murilo Rubião é, no Brasil, um dos pioneiros do conto fantástico, que entraria mais em voga na década de 70, por influência de alguns escritores latino-americanos. Mas a linhagem é clássica, machadiana, enveredando quase sempre pelo clima da fantasia.”

JOSÉ J.VEIGA

Nascido José Jacinto Veiga, em 2 de fevereiro de 1915, outro nome fundamental da literatura fantástica no Brasil é José J. Veiga. A Enciclopédia de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa traz a seguinte sinopse do escritor goiano: “Estreou um pouco tarde, 1959, mas Os cavalinhos de Platiplanto chamou logo a atenção da crítica e o autor foi apontado como um dos introdutores do realismo mágico na literatura brasileira, em cuja linhagem, até então, só era citado Murilo Rubião. Entre o primeiro livro e o segundo houve um hiato de sete anos, mas A hora dos ruminantes, agora uma novela (inspirada num dos contos publicado antes) também chamou a atenção da crítica e dos leitores. J.J.V. passou a ser mais conhecido. Ultimamente vem se dedicando às narrativas mais longas (nov.), embora o seu forte, desde a estréia, sejam os contos mais sintéticos. Próximo ao realismo mágico ou ao Surrealismo, com um vigor kafkiano, o autor cria uma realidade bem brasileira, usando o nosso coloquial e localismos, como se estivesse escrevendo literatura regional. Mas a dimensão da sua ficção é universal, naquele ponto em que joga com problemas humanos e com o homem em qualquer quadrante.”

Numa entrevista, Veiga negou haver qualquer influência de García Márquez, Cortázar e Scorza em sua obra. Porque não os conhecia quando publicou Os cavalinhos de Platiplanto, A máquina extraviada e A hora dos ruminantes. E acrescentou: (...) “faço uma literatura realista. Nem fantástico, nem mágico.”
Veiga já chegou a ser comparado a Swift e Lewis Carrol. Há na sua obra “toques de humor, ora de ironia, às vezes de grotesco ou patético, resvalando pelo macabro,” comenta Ênio Silveira.

Em exaustiva análise da obra de Veiga, diz Temístocles Linhares: (...) “nele o fantástico se reveste daquilo que, a meu ver, lhe é mais determinante: o de se afastar de qualquer noção de Paraíso Terrestre, de Idade de Ouro ou da representação de sonhos, isto é, de lugares em que o homem médio pudesse viver em estado de completa proteção, como ocorre em Rubião.”

O autor de 22 Diálogos sobre o Conto Brasileiro Atual refere-se a J. Veiga em mais de um de seus diálogos. No de nº 3, dedicado a “nomes-chave do conto brasileiro atual”, alude a Veiga assim: "(...) também ele foi dos que conseguiram fundir sonho e realidade, chegando até a criar o ambiente de pesadelo para alguns de seus contos. Indiscutivelmente, ele é nome-chave para este capítulo dos “contos fantásticos”. Pena é que publique tão pouco.”

No diálogo 13 o ponto de referência central é o próprio autor de Aquele mundo de Vasabarros. Comparando-o a Murilo Rubião, afirma: “Em Veiga o fantástico flui mais das coisas, da natureza, dos acontecimentos, entrando em comunicação com o mundo visível mais imediatamente, mais naturalmente, para mostrar, sobretudo que o sentimento humano entra muitas vezes em contato com os espíritos elementares e que a terra, a água, o ar, os animais, sobretudo, são personalidades tão ativas quanto o eram para os filósofos pré-socráticos."

A obra de José J. Veiga tem sido objeto de incontestáveis estudos, tal a sua importância no panorama da Literatura Brasileira. Assim, em A literatura no Brasil, vasto painel crítico e histórico de nossa arte literária, seu nome e sua obra estão presentes em diversos capítulos. Em “Ciclo Central”, assinado por Wilson Lousada a parte de “O Regionalismo na Ficção”, Veiga aparece como narrador regionalista, apesar de seu mundo estar “construído sobre o grotesco e o onírico, absurdo e simbólico” (...).

Ivo Barbieri, em “Situação e Perspectivas”, capítulo “O Modernismo na Ficção”, assim define J.Veiga: “Na habilidade em flagrar detalhes reveladores do concreto cotidiano e nele inserir o fantástico que desorganiza a ordem de superfície, instaura o choque estilístico.”

Segundo Assis Brasil, em Os Cavalinhos de Platiplanto J. Veiga “joga com dois elementos criativos essenciais: o fantástico e uma linguagem marcadamente brasileira. Assim, temos, em princípio, um “maravilhoso” nosso e não importado. O filão vem mais incisivamente de Kafka – cujo mundo se presta a muitos equívocos – e não podemos esquecer Allan Poe, o Papini de Og e Magog, e o Par Lakergvist dos contos diabólicos. A linhagem vem ainda de uma tradição imaginativa, o gótico, que tem enriquecido a ficção através dos tempos e hoje invadindo, com bastante eficácia, a ficção científica.”

Noutro trecho de sua análise, Assis Brasil lembra que “José J. Veiga não situa 'no mapa' (como se refere num de seus contos) as suas narrativas, mas temos um escritor brasileiro, pelas expressões que usa, pelos costumes que apresenta, e o maravilhoso e fantástico de seus trabalhos são apenas o pano de fundo de seus trabalhos, que têm a sua cor local característica.

Hélio Pólvora frisou bem esse aspecto da obra de Veiga – “sua língua é a do homem do interior, os seus assuntos derivam da terra, dos homens – uma realidade nossa”.

José J. Veiga é regionalista, sim, porém da outro naipe. É inventivo, imaginativo. Daí a constante presença do elemento fantástico em sua obra. Poderíamos até dizer que o escritor goiano vê em mais profundidade o mundo, o pequeno, pobre e monótono mundo rural. Ou o vê em duas dimensões – a real e a irreal ou supra-real.

Wilson Martins sintetiza esse modo de ver de Veiga “suas experiências jogam agora perigosamente com elementos imediatos do realismo para obter a atmosfera de fantástico em que novas dimensões se acrescentam ao mundo visualmente perceptivo”.

São incontáveis os estudos dos contos e romances de Veiga. Se fôssemos apenas citar os títulos deles já careceríamos de dezenas de páginas. E isto é tão-somente um esboço histórico.

Encerremos, pois, esta parte. Antes, vamos nos valer de algumas observações de Mário da Silva Brito: “José J. Veiga por mais que se desgarre na fantasia e se entregue a lucubrações imaginosas, ou se emaranhe no absurdo – território que freqüenta com a mesma calma e serenidade do peixe em suas águas – não consegue, de modo algum, ser um habitante da torre de marfim, um distante das durezas da vida, um egoísta enamorado do próprio umbigo e corroído pela alienação.

E logo adiante: “Se priva com Poe, Hoffmann, Kafka, Ionesco, Orwel ou Karel Kapek – esses captores de íncubos ou súcubos, esses sensíveis radares da realidade que se escondem atrás ou além daquilo que rotineiramente se costuma supor seja o real – também compartilha das vicissitudes do ser humano, mais do que isso, tem consciência de que este pode ser esmagado, sofrer deformações, passar de pessoa a objeto, regredir no seu trajeto histórico quando sob o império do arbítrio ou submetido a pressões que o anulam até o aniquilamento.”

PÉRICLES PRADE

Nascido Péricles Luís Medeiros Prade, em 7 de maio de 1942, o terceiro nome mais importante da literatura fantástica no Brasil não é dos mais conhecidos escritores brasileiros. Dedicado mais à poesia e ao ensaio, Péricles Prade é, no entanto, autor de dois dos mais instigantes livros do gênero fantástico: Os Milagres do Cão Jerônimo (1971) e Alçapão para Gigantes (1980).

Por este ou aquele motivo, não é sequer citado nos dois livros de Assis Brasil consultados para a elaboração deste esboço. O mesmo se dá com os Diálogos de Temístocles Linhares.

Contudo, Antonio Hohlfeldt o colocou ao lado de Murilo Rubião, Moacyr Scliar, Roberto Drummond e Victor Giudice, no capítulo “O Conto Alegórico” de seu bem elaborado Conto Brasileiro Contemporâneo. Copiemos trecho de sua análise: “Prade também não dispensa a ironia com que refere algumas narrativas, demonstrando sobretudo a solidão em que vive todo aquele que esteja de plena posse de sua consciência, tema que, como verificamos, não é absolutamente ausente da obra de Murilo Rubião. Por vezes a personagem de seus contos faz-nos pensar num alter-ego metaforizado. Em outras ocasiões, temos um narrador-revelador como personagem sobrevivente de alguma catástrofe qualquer. Misturem-se aqui profecias e narrativas míticas, num momento igualmente circular.”

Almeida Fischer, ao descobrir Péricles Prade (fala de “tremendo susto” ao ler seus livros), teceu-lhe muitas loas: “Péricles Prade é escritor singular na literatura brasileira, sem ninguém que se lhe assemelhe quanto à elaboração de seus escritos, em prosa ou em versos. Que seus textos são fantásticos, não há nenhuma dúvida, mas inteiramente diferentes de outros transgressores do real de nossas letras. Poderiam enquadrar-se como do chamado realismo mágico da literatura ibero-americana? Talvez, em parte. Mas não perfeitamente, emborca também neles haja magia. São textos claramente surrealistas, talvez os mais marcantes dessa tendência em nosso País. Vão, porém, além do surrealismo de André Breton e seus companheiros do grupo francês. À falta de melhor classificação, vamos dar-lhes o nome de surrealismo fantástico-maravilhoso.”

No prefácio ao Alçapão para Gigantes, Tassilo Orpheu Spalding constata: “Atualmente são poucos os escritores que se dedicam à extraordinária tarefa de recriar a vida em parâmetros mágicos ou fantásticos. Em recriar outra vida, mais nova e mais gostosa. Porque temos todos duas vidas – a que vivemos e que não vivemos, segundo afirma Oscar Wilde: “Para a maioria de nós, a vida real é a vida que não vivemos’.”

A análise que faz da obra de Péricles Prade é fundamental para este estudo, vez que são raros os ensaios sobre a nossa literatura fantástica. Transcrevemos, pois, outros trechos do prefácio de Tassilo: “Estes contos curtos evocam toda uma magnificência oculta, mas real – daí a denominação que os críticos lhe dão de real-fantástico – que subjaz à consciência lúcida e vigilante.”

Lendo-se os contos deste magnífico Alçapão para Gigantes vêm-nos à mente, de imediato, as obras de Jarry, Adamov, Wedekind e, sobretudo, Bert Brecht. Se este último apresenta a seus leitores um mundo demasiadamente explicado, Péricles Prade, por seu turno, revela-nos um cosmos totalmente hermético e incongruente, que tende a exprimir uma realidade tornada estranha e imperscrutável.”

Às vezes as estórias parecem grotescas, bem no sentido do Teatro del Grottesco, dos Chiarelli e Nicodemi, mas, no fundo, o que existe é um mundo real que não pode ser apreendido pelos nossos sentidos convencionais. Quando o autor diz, por exemplo, que o Touro urinava peixes longos e brilhantes, é evidente que alia uma função fisiológica normal e comum – urinar – a uma desconcertante Einigkeit – os peixes."

Péricles Frade de repente desfaz todas as leis a que estamos acostumados a obedecer. Suspende a ordem habitual das coisas, desfaz o convencional e cria o mágico fazendo-nos mergulhar numa outra vida, a de Oscar Wilde e Fernando Pessoa, entre outras.”

Encontro nestes contos, e sobre isso, somente, quero me deter – o que já vislumbrei no fascinante Os Milagres do Cão Jerônimo, a saber, uma tendência nitidamente surrealista. No livro acima citado, esta tendência manifesta-se de modo muito sutil; neste, com toda a intensidade. Mas não me refiro ao Surrealismo de Hans Arp, de Salvador Dali, de Paul Delvaux, de Max Ernst, de René Magritte ou de Wolfgang Paalen. Refiro-me ao surrealismo candente de Bosch e Brueghel.”

E mais este trecho, já finalizando o prefácio: “Em termos isomórficos todos (os contos) têm a mesma característica daquilo que Todorov chama de fantástico-maravilhoso: emergem do cotidiano e nos fazem mergulhar fundo no inconsciente.”

Sobre os contos de Os Milagres do Cão Jerônimo assim falou Cassiano Ricardo: “Os contos de Péricles Prade penetram fundo o território brumoso do fantástico, num mundo alienante-surrealista cuja inteligência do texto se nega a qualquer tentativa de leitura ingênua.”

Luz e Silva é categórico: “Péricles Frade, sem favor algum, é a figura mais expressiva do conto fantástico brasileiro, podendo ser situado entre os escritores mais importantes da América Latina na atualidade.

Segundo Lauro Junkes “o fantástico de Péricles Prade, porém, longe de ser pura especulação de emoções fáceis, de cenas mirabolantes e espetaculares, assume multívocas variantes que o enriquecem bem mais com o sugerido do que com o declarado, enveredando pelos ilimitados domínios do surreal, do demoníaco, do mítico e sobretudo do subconsciente.”

Carlos Jorge Appel esclarece: “Pode-se entender, assim, a adesão de Péricles Prade ao fantástico como instrumento adequado para criar o seu mundo de ficção, porque se opõe ao falso realismo, que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como o dava por assentado o otimismo filosófico e científico de outros tempos.”

Pródigo em elogios, José Afrânio Moreira Duarte afirma: “Péricles Prade revelou-se um dos maiores contistas brasileiros na linha do realismo mágico, com Os Milagres do Cão Jerônimo."
Péricles Prade é escritor singular. O fantástico de seus contos não encontra similar em nossa literatura, mesmo em Murilo Rubião ou em José J. Veiga.

Não nos parece aconselhável a transcrição de trechos de poemas e contos. No entanto, apenas como amostra da singularidade de Péricles Prade, vejamos dois fragmentos de um de seus livros:
Quando, pela primeira vez, o gigante caiu no alçapão, o baque foi violento e surdo. Nas seguintes, a queda era suportada com prudência e habilidade." (“Alçapão para Gigantes”)

No cesto encontrei doze ovos de chumbo. Desconfiado, olhei para os lados na expectativa de uma presença desconcertante. Não houve equívoco, pois em seguida um corpo indefinido arrastou-se em minha direcção.” (“O Servo de Schedin”)

Para finalizarmos este capítulo, pedimos de empréstimo a Hermann José Reipert duas palavras: “E, assim, se escrevendo pouco ressoa tanto, fá-lo com mão de mestre e os latidos do Cão Jerônimo ainda por aqui estão, dizendo coisas que os homens não compreendem, mas compreenderão um dia, nesse dia em que souberem que somos filhos do mistério, embora representando tão mal a nossa triste condição de duendes.”

Fontes:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/6.html
Imagem =
http://infernoticias.blogspot.com

Mário de Andrade (O peru de Natal)



O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de conseqüências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a idéia de fazer uma das minhas chamadas "loucuras". Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de "louco". "É doido, coitado!" falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes...), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas "loucuras":

- Bom, no Natal, quero comer peru.

Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

- Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania... Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo...

- Meu filho, não fale assim...

- Pois falo, pronto!

E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus "gostos", já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a... culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

- É louco mesmo!...

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado:assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

- Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus... Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

- Eu que sirvo!

“É louco, mesmo" pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heróica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da "casca", cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

- Se lembre de seus manos, Juca!

Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

- Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

- Só falta seu pai...

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

- É mesmo... Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente... (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que "vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai", um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever «felicidade gustativa», mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.

Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor... Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de "bem-casados". Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!...

Fontes:
SALES, Herberto (organizador). Antologia de Contos Brasileiros. São Paulo: Ediouro, 2005. p. 135-140.
Desenho = http://drisantos.blogspot.com

Raul Pompéia (Comércio de Flores)



Flores! Quem quer as flores?

Todas as noites ali, principalmente às invernosas, quando são mais belas às flores, todas as noites à porta do teatro.

A alegria passava. Cavalheiros brilhantes de alvos peitilhos, pontuados de pedras rútilas, senhoras sérias, coradas de sangue feliz e rico, as beldades desordeiras, de uma em uma picando o passo com os finíssimos borzeguins feéricos, deixando na areia do átrio vestígios mínimos como os pés das corças, outras em atropelo, tossindo risos de bacante, permutando palavras confusas de estranhos idiomas, confusas e quentes como um hálito de alcova, como o rápido fulgor das cabeleiras louras que se agitavam na passagem, felizes e louras como a madureza dos trigos e a opulência das messes.

Quando a chuva caía, eram ainda alegres.

- Flores! Quem quer as flores?

Como são belas as flores quando chove!...

E elas passavam, as mulheres louras, confortadas nas mantilhas espessas, veludosas, que lembravam as friorentas ovelhas despidas.

- Quem quer as flores?

Todas rápidas a fugir do inverno que lhe não compravam um ramalhete. Entretanto, a pequenina mostrava, no tabuleiro de folha de dous fundos, que lindas cousas! As violetas, perpetuamente murchas como o sorriso dos pobres, mas que vão tão bem à mão das luvas claras, com o segredo artístico dos contrastes... Quando não: tinha, para os menos contemplativos, as rubras rosas como gargalhadas presas, vivas, rorejadas da chuva, luzindo ao gás como de um orvalho de topázios, bebendo a frescura d'água, no tabuleiro verde de flandres, vivas, à noite, como se guardassem nas pétalas todo o esplendor de um dia.

Ninguém comprava. Apenas o tentador, o mau! aquele elegante dissimulado, que olhava, falando, para outra banda, e torcia o bigode... Comprava tudo, mas que lhe fosse vender à casa... De que maneira ter às mãos tantas flores, se as comprasse ali?

Quem sabe, tem a miséria um encanto próprio? Talvez fosse a menina sedutora, de algum sabor amargo, novo, que os saciados prezam, variedade descendente que convida.

Ah! O tentador, o mau! Voltava sempre, como um pêndulo que tonteja!

Era bela a mercadora. Quinze anos. Miúda como de doze, feita porém como as mulheres em ponto.

Ao nariz, às faces, três sinais sangüíneos. Bela desse capricho, às vezes, de formosura que parece uma ironia da necessidade, redonda como as camélias dobradas, que às vezes tinha; diríamos nutrida, se não fosse a fome.

Tinha os dedos roídos de agulha. À tarde, uma senhora dava-lhe flores para vender.

- Quem quer as flores?

Até que uma noite ele veio; ela foi.

Ninguém comprava; tinha mãe doente, um incêndio de febre à testa, delírios, desmaios. Ninguém comprava!

Quando voltou à casa, tinha morrido a enferma.

E ela não teve uma flor para enfeitar a morta, que o tentador comprara todas.

Fontes:
http://www.biblio.com.br
Pintura = http://blogdofavre.ig.com.br

Machado de Assis (Noite de Almirante)



Deolindo Venta-Grande (era uma alcunha de bordo) saiu do arsenal de marinha e enfiou pela rua de Bragança. Batiam três horas da tarde. Era a fina flor dos marujos e, de mais, levava um grande ar de felicidade nos olhos. A corveta dele voltou de uma longa viagem de instrução, e Deolindo veio à terra tão depressa alcançou licença. Os companheiros disseram-lhe, rindo:

- Ah! Venta-Grande! Que noite de almirante vai você passar! ceia, viola e os braços de Genoveva. Colozinho de Genoveva...

Deolindo sorriu. Era assim mesmo, uma noite de almirante, como eles dizem, uma dessas grandes noites de almirante que o esperava em terra. Começara a paixão três meses antes de sair a corveta. Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido. Encontraram-se em casa de terceiro e ficaram morrendo um pelo outro, a tal ponto que estiveram prestes a dar uma cabeçada, ele deixaria o serviço e ela o acompanharia para a vila mais recôndita do interior.

A velha Inácia, que morava com ela, dissuadiu-os disso; Deolindo não teve remédio senão seguir em viagem de instrução. Eram oito ou dez meses de ausência. Como fiança recíproca, entenderam dever fazer um juramento de fidelidade.

- Juro por Deus que está no céu. E você?

- Eu também.

- Diz direito.

- Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte.

Estava celebrado o contrato. Não havia descrer da sinceridade de ambos; ela chorava doidamente, ele mordia o beiço para dissimular. Afinal separaram-se, Genoveva foi ver sair a corveta e voltou para casa com um tal aperto no coração que parecia que "lhe ia dar uma coisa". Não lhe deu nada, felizmente; os dias foram passando, as semanas, os meses, dez meses, ao cabo dos quais, a corveta tornou e Deolindo com ela.

Lá vai ele agora, pela rua de Bragança, Prainha e Saúde, até ao princípio da Gamboa, onde mora Genoveva. A casa é uma rotulazinha escura, portal rachado do sol, passando o cemitério dos Ingleses; lá deve estar Genoveva, debruçada à janela, esperando por ele. Deolindo prepara uma palavra que lhe diga. Já formulou esta: "Jurei e cumpri", mas procura outra melhor. Ao mesmo tempo lembra as mulheres que viu por esse mundo de Cristo, italianas, marselhesas ou turcas, muitas delas bonitas, ou que lhe pareciam tais. Concorda que nem todas seriam para os beiços dele, mas algumas eram, e nem por isso fez caso de nenhuma. Só pensava em Genoveva. A mesma casinha dela, tão pequenina, e a mobília de pé quebrado, tudo velho e pouco, isso mesmo lhe lembrava diante dos palácios de outras terras. Foi à custa de muita economia que comprou em Trieste um par de brincos, que leva agora no bolso com algumas bugigangas. E ela que lhe guardaria? Pode ser que um lenço marcado com o nome dele e uma âncora na ponta, porque ela sabia marcar muito bem. Nisto chegou à Gamboa, passou o cemitério e deu com a casa fechada. Bateu, falou-lhe uma voz conhecida, a da velha Inácia, que veio abrir-lhe a porta com grandes exclamações de prazer. Deolindo, impaciente, perguntou por Genoveva.

- Não me fale nessa maluca, arremeteu a velha. Estou bem satisfeita com o conselho que lhe dei. Olhe lá se fugisse. Estava agora como o lindo amor.

- Mas que foi? que foi?

A velha disse-lhe que descansasse, que não era nada, uma dessas coisas que aparecem na vida; não valia a pena zangar-se. Genoveva andava com a cabeça virada...

- Mas virada por quê?

- Está com um mascate, José Diogo. Conheceu José Diogo, mascate de fazendas? Está com ele. Não imagina a paixão que eles têm um pelo outro. Ela então anda maluca. Foi o motivo da nossa briga. José Diogo não me saía da porta; eram conversas e mais conversas, até que eu um dia disse que não queria a minha casa difamada. Ah! meu pai do céu! foi um dia de juízo. Genoveva investiu para mim com uns olhos deste tamanho, dizendo que nunca difamou ninguém e não precisava de esmolas. Que esmolas, Genoveva? O que digo é que não quero esses cochichos à porta, desde as aves-marias... Dois dias depois estava mudada e brigada comigo.

- Onde mora ela?

- Na praia Formosa, antes de chegar à pedreira, uma rótula pintada de novo.

Deolindo não quis ouvir mais nada. A velha Inácia, um tanto arrependida, ainda lhe deu avisos de prudência, mas ele não os escutou e foi andando. Deixo de notar o que pensou em todo o caminho; não pensou nada. As idéias marinhavam-lhe no cérebro, como em hora de temporal, no meio de uma confusão de ventos e apitos. Entre elas rutilou a faca de bordo, ensangüentada e vingadora. Tinha passado a Gamboa, o Saco do Alferes, entrara na praia Formosa. Não sabia o número de casa, mas era perto da pedreira, pintada de novo, e com auxílio da vizinhança poderia achá-la. Não contou com o acaso que pegou de Genoveva e fê-la sentar à janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e parou; ela, vendo o vulto de um homem, levantou os olhos e deu com o marujo.

- Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.

E, levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria alvoroçado de esperanças, tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser que a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a cantiga do mascate estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa do raciocínio ou da reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a porta aberta, fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem e achou-o mais gordo; nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta de faca, bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho de gente, e durante os primeiros minutos não pensou em outra coisa.

- Sei tudo, disse ele.

- Quem lhe contou?

Deolindo levantou os ombros.

- Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?

- Disseram.

- Disseram a verdade.

Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em seguida disse que, se lhe abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo. Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as propostas do mascate, as suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.

- Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.

Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados. Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação eterna, diante da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se embarcou, foi porque ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou; foram elas que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte...

- Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a gostar dele...

- Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém...

- Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...

- A que horas volta José Diogo?

- Não volta hoje.

- Não?

- Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar sexta-feira ou sábado... E por que é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?

Pode ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma expressão tão cândida, não de propósito, mas involuntariamente. Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras. Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo. Genoveva olhou para ele com desprezo, sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo. Que perjúrio? que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era verdade. Nossa Senhora, que ali estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade ou não. Era assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que tanto enchia a boca de fidelidade, tinha-se lembrado dela por onde andou?

A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela abriu-o, aventou as bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não eram nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau gosto, mas faziam uma vista de todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois foi ao espelho de pataca, suspenso na parede, entre a janela e a rótula, para ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da direita para a esquerda e da esquerda para a direita.

- Sim, senhor, muito bonitos, disse ela, fazendo uma grande mesura de agradecimento. Onde é que comprou?

Creio que ele não respondeu nada, não teria tempo para isso, porque ela disparou mais duas ou três perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber um mimo a troco de um esquecimento. Confusão de cinco ou quatro minutos; pode ser que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse na caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua parte começou a crer que, assim como a perdeu, estando ausente, assim o outro, ausente, podia também perdê-la; e, provavelmente, ela não lhe jurara nada.

- Brincando, brincando, é noite, disse Genoveva.

Com efeito, a noite ia caindo rapidamente. Já não podiam ver o hospital dos Lázaros e mal distinguiam a ilha dos Melões; as mesmas lanchas e canoas, postas em seco, defronte da casa, confundiam-se com a terra e o lodo da praia. Genoveva acendeu uma vela. Depois foi sentar-se na soleira da porta e pediu-lhe que contasse alguma coisa das terras por onde andara. Deolindo recusou a princípio; disse que se ia embora, levantou-se e deu alguns passos na sala. Mas o demônio da esperança mordia e babujava o coração do pobre diabo, e ele voltou a sentar-se, para dizer duas ou três anedotas de bordo. Genoveva escutava com atenção. Interrompidos por uma mulher da vizinhança, que ali veio, Genoveva fê-la sentar-se também para ouvir "as bonitas histórias que o Sr. Deolindo estava contando". Não houve outra apresentação. A grande dama que prolonga a vigília para concluir a leitura de um livro ou de um capítulo, não vive mais intimamente a vida dos personagens do que a antiga amante do marujo vivia as cenas que ele ia contando, tão livremente interessada e presa, como se entre ambos não houvesse mais que uma narração de episódios. Que importa à grande dama o autor do livro? Que importava a esta rapariga o contador dos episódios?

A esperança, entretanto, começava a desampará-lo e ele levantou-se definitivamente para sair. Genoveva não quis deixá-lo sair antes que a amiga visse os brincos, e foi mostrar-lhos com grandes encarecimentos. A outra ficou encantada, elogiou-os muito, perguntou se os comprara em França e pediu a Genoveva que os pusesse.

- Realmente, são muito bonitos.

Quero crer que o próprio marujo concordou com essa opinião. Gostou de os ver, achou que pareciam feitos para ela e, durante alguns segundos, saboreou o prazer exclusivo e superfino de haver dado um bom presente; mas foram só alguns segundos.

Como ele se despedisse, Genoveva acompanhou-o até à porta para lhe agradecer ainda uma vez o mimo, e provavelmente dizer-lhe algumas coisas meigas e inúteis. A amiga, que deixara ficar na sala, apenas lhe ouviu esta palavra: "Deixa disso, Deolindo"; e esta outra do marinheiro: "Você verá." Não pôde ouvir o resto, que não passou de um sussurro.

Deolindo seguiu, praia fora, cabisbaixo e lento, não já o rapaz impetuoso da tarde, mas com um ar velho e triste, ou, para usar outra metáfora de marujo, como um homem "que vai do meio caminho para terra". Genoveva entrou logo depois, alegre e barulhenta. Contou à outra a anedota dos seus amores marítimos, gabou muito o gênio do Deolindo e os seus bonitos modos; a amiga declarou achá-lo grandemente simpático.

- Muito bom rapaz, insistiu Genoveva. Sabe o que ele me disse agora?

- Que foi?

- Que vai matar-se.

- Jesus!

- Qual o quê! Não se mata, não. Deolindo é assim mesmo; diz as coisas, mas não faz. Você verá que não se mata. Coitado, são ciúmes. Mas os brincos são muito engraçados.

- Eu aqui ainda não vi destes.

- Nem eu, concordou Genoveva, examinando-os à luz. Depois guardou-os e convidou a outra a coser. - Vamos coser um bocadinho, quero acabar o meu corpinho azul...

A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, alguns dos companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-o pela noite de almirante, e pediram-lhe notícias de Genoveva, se estava mais bonita, se chorara muito na ausência, etc. Ele respondia a tudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso de pessoa que viveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade e preferiu mentir.

Fontes:
SALES, Herberto (organizador). Antologia de Contos Brasileiros. São Paulo: Ediouro, 2005.p.167-173.
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Passo Fundo (RS) tem maior índice de leitores do país



por André Trigueiro

Nosso programa é sobre iniciativas bem sucedidas de estímulo à leitura em nosso país. Em média, cada brasileiro lê menos de dois livros por ano. A repórter Roberta Salinet mostra o que tem feito a diferença em Passo Fundo (RS), onde a média de leitura é de 6,5 livros por habitante/ano.

A palavra falada, escrita, contada, pensada ou não pronunciada, seja qual for a forma que tenha, sempre fez parte da minha vida. Li muito durante a minha infância e sigo assim até hoje. Sempre me comoveu demais saber que meu pai, já falecido, havia lido uma enciclopédia inteira numa biblioteca pública de Passo Fundo porque não tinha dinheiro para comprar livros. Antes de me formar jornalista me formei professora de literatura. Por isso a leitura faz parte da minha vida, tanto, tanto, que me arrisquei a falar um pouco sobre isso antes de contar a experiência maravilhosa que foi para mim produzir essa matéria para o Cidades e Soluções.

Passo Fundo é uma bela cidade de 185 mil habitantes no norte do Rio Grande do Sul e assim como tantas outras tem problemas nas áreas de segurança, saúde… estamos no Brasil.

Mas Passo Fundo é diferente de todas as outras cidades brasileiras quando o assunto é leitura, literatura. Isso porque a cidade é palco de um encontro sem igual, que a cada dois anos reúne escritores e leitores: a Jornada Nacional de Literatura.

Na preparação para os encontros, os alunos das redes particular e pública têm contato com as obras, discutem em sala de aula e se preparam de tal forma, que quando encontram os autores já estão íntimos dos livros.

A conseqüência desse namoro com a literatura é concreta: o maior índice de leitores do país. Uma média por habitante de 6,5 livros lidos ao ano, três vezes maior do que a brasileira.

Bem, assim que recebemos o convite, feito pela equipe do programa, para contar a solução adotada por Passo Fundo para atingir esse índice, partimos eu e o repórter cinematográfico Jeferson Barbosa. A produção do VT teve o auxílio da produtora Natália Fávero.

Isso foi depois de um domingo inteiro de orações para que o tempo melhorasse e que a chuva, que tem sido constante aqui no sul, nos desse uma trégua. Deu certo.

Na nossa jornada encontramos seu Martins, motorista do ônibus Fabuloso, uma biblioteca itinerante que percorre as escolas do município. Logo que gravei a entrevista com ele tive certeza de que tudo sairia conforme o esperado. Seu Martins passa horas com os olhos grudados nos livros enquanto as crianças visitam o Fabuloso.

“A leitura transforma, abre a mente, me faz ser um pessoa provida de senso crítico, é a faculdade que eu não pude fazer”, me disse ele.

Bem, depois disso ainda visitamos o Mundo da Leitura, um espaço da Universidade de Passo Fundo (UPF), onde alunos especiais da APAE se divertiam com um teatro de sombras, conferimos a alegria dos estudantes no Largo da Literatura e por fim, contamos a história de Gustavo Melo, um jovem escritor pernambucano que trocou o mar pelo frio de Passo Fundo. Tudo isso mostrado através da percepção estética apuradíssima do Jeferson, que é incansável em buscar ângulos novos para ressaltar a beleza das cenas…

Bem, está sendo uma delícia dividir com os telespectadores a alegria de perceber que há soluções para problemas considerados graves, como a questão da leitura em nosso país.

E se o exemplo do Circo das Letras, idealizado em Passo Fundo por uma professora chamada Tânia Rösing, hoje reconhecida por alguns dos maiores escritores do Brasil e do Mundo, inspirar alguém que assita a reportagem a fazer o mesmo em sua cidade, nosso trabalho vai ter valido ainda mais a pena.
Roberta Salinetrepórter da RBS TV - Passo Fundo

Fonte:
07 novembro de 2008.
Boletim Jornada Literária da UPF.
http://especiais.globonews.globo.com/cidadesesolucoes/