MURILO RUBIÃO
Nascido Murilo Eugênio Rubião, em lº de junho de 1916, um dos mais importantes cultores do conto fantástico no Brasil estreou em 1947, com o livro O Ex-Mágico.
Murilo Rubião dedicou-se exclusivamente ao conto, como poucos escritores brasileiros. Todos os grandes contistas brasileiros são também romancistas e poetas. É o caso de Machado de Assis.
Outra singularidade da Murilo – a dedicação ao fantástico. E por que isso? Ele mesmo responde: “Minha opção pelo fantástico foi herança da minha infância, das leituras que fiz, e também porque sou um sujeito que acredita muito no que está além das coisas: nunca me espanto com o sobrenatural, com o mágico, com o mistério.”
Carlos Vogt constata serem “poucos e magros" os espécimes do gênero fantástico, “tendo na solidão paciente do trabalho de Murilo um raro caso de expressão maior.” E é verdade. E até seria mais cômodo para o historiador ou o estudioso dedicar-se exclusivamente ao contista mineiro. Pois a literatura crítica brasileira é rica em artigos e ensaios que tem como foco o criador do Pirotécnico Zacarias. Em 1987 o Suplemento Literário do Minas Gerais, por exemplo, dedicou uma série de três edições a Rubião, com artigos e ensaios assinados por alguns dos melhores críticos literários brasileiros. A série intitulou-se “Murilo Rubião, 40 anos de ex-mágico”.
Um dos mais alentados ensaios da série é assinado por Nelly Novaes Coelho e tem por título “A civilização-da-culpa e o fantástico-absurdo muliriano”. Transcrevamos os dois primeiros parágrafos: “O fantástico é posterior à imagem de um mundo sem milagres, submetido a uma rigorosa causalidade... Só as culturas que chegarem a uma ordem constante, objetiva e imutável dos fenômenos, puderem dar origem, como por contraste, a essa forma particular de imaginação, que contradiz, expressamente, a regularidade perfeita (daquela ordem): o espanto do sobrenatural". (Rogar Caillois, in Antologia del Cuento Fantastico. Buenos Aires, Ed. Sudamericana, 1970).
Diríamos, porém, que o fantástico muriliano (tal como o de Kafka) é posterior ao espanto, de que fala Caillois. Este teria correspondido à primeira reação dos homens diante da nova imagem-do-homem-e-do-mundo que a Ciência positivista lhes revelara. Superado o espanto do primeiro momento, sobreveio a revolta e depois a resignação, a apatia ou o espanto congelado (de que fala Davi Arriguci), diante do inevitável. Nesse sentido, o que espanta o leitor de Murilo Rubião é o fato de nada espantar os seus personagens. Envolvidos, inexplicavelmente, nas situações mais fantásticas, trágicas e sem sentido, eles se deixam levar. Impotentes diante dos fatos ou incapazes de revolta, submetem-se passivamente à fatalidade dos acontecimentos.”
Outra dedicada crítica de Rubião é Eliane Zagury. Ao lembrar o tempo decorrido entre o primeiro e o segundo livro do contista, a ensaísta constata: “Murilo nunca teve pressa em exibir o novo que nos tinha a ofertar.” Em outro ensaio, “O contista do absurdo”, Zagury traça o perfil literário do contista – "o representante originalíssimo de uma literatura de ficção muito pouco explorada na literatura Brasileira, tão afeita às analogias mais primitivas da realidade que a sustém.”
Antonio Hohlfeldt vê no escritor mineiro o mais importante representante brasileiro do que ele chama de “conto alegórico”. No entender de Temístocles Linhares, no entanto, o fantástico não é o traço dominante na literatura de Rubião. “Na verdade, o sonho e a fantasia é que inspiram a maioria de seus contos”, diz ele. E noutra página de seus 22 Diálogos sobre o Conto Brasileiro Atual observa: que o fantástico praticado por Murilo no livro de estréia “era outro tipo de fantástico, um fantástico mais mágico, menos real, se assim me posso exprimir. As estórias de Rubião se desenvolviam mais em torno do sonho e da fantasia. Eram mais parábolas que continham muita verdade, sou o primeiro a reconhecer, mas que se afastavam desse outro tipo de fantástico mais próximo das velhas crenças humanas e que traduz de certa forma a volta a um estado da consciência bastante antigo, ou seja, a revivescência de sentimentos instintivos, tal como nos faz sentir José J. Veiga. – De qualquer modo, são apenas diferenças de tom, pois tanto o fantástico, como o mágico ou o feérico têm origem comum. – Sim, mas o fantástico pertence pelo espírito ao mundo do terror ou do medo, ao passo que o mágico, ou melhor, o feérico, talvez a melhor característica de Rubião, ao mundo da intercessão, do refúgio contra o terror ou o medo.” Mais adiante afirma: “O fantástico de Murilo Rubião talvez seja mais intelectual. Os seus fantasmas são mais concebidos pelo espírito...”
Neste diálogo, onde faz algumas comparações de J.J. Veiga com Murilo Rubião, ainda explica: “Os (contos) de Murilo Rubião giram mais em volta de gente da cidade, de mágicas, de almas penadas, de defuntos que revivem, de loucos, de mulheres monstruosas, etc. Quer dizer, um fantástico mais ligado às pessoas, aos seus costumes mágicos, ao passo que...”
A bibliografia de Murilo Rubião é a seguinte: O Ex-Mágico (1947), A Estrela Vermelha (1953), Os Dragões e Outros Contos (1965), O Pirotécnico Zacarias (1974), O Convidado (1974), e A Casa do Girassol Vermelho (1978). Seriam, pois, seis livros. No entanto, como explica Carlos Vogt no artigo “A construção lógica do absurdo”, a matemática muriliana não é bem assim, vez que o contista sempre reescreveu e reeditou seus contos, sob títulos diferentes de livros. Assim, A Casa do Girassol Vermelho contém os mesmos contos de A Estrela Vermelha “e contos que lá se encontravam foram, por sua vez, publicados em 1965 no volume Os Dragões e Outros Contos, que, por sua vez, continha trabalhos republicados em 1974, em O Pirotécnico Zacarias, título também de um conto já publicado no Ex-Mágico. Enfim, a circularidade é sem fim. Propositadamente. É que Murilo Rubião é, na verdade, um reescritor, no melhor e mais conseqüente sentido que este termo possa ter, quando aplicado a um autor que elabora e reelabora minuciosamente os seus contos e não apenas por zelo profissional”(...).
Na “síntese crítica” de Murilo Rubião, no didático Dicionário Prático de Literatura Brasileira, escreveu Assis Brasil: “Murilo Rubião é, no Brasil, um dos pioneiros do conto fantástico, que entraria mais em voga na década de 70, por influência de alguns escritores latino-americanos. Mas a linhagem é clássica, machadiana, enveredando quase sempre pelo clima da fantasia.”
JOSÉ J.VEIGA
Nascido José Jacinto Veiga, em 2 de fevereiro de 1915, outro nome fundamental da literatura fantástica no Brasil é José J. Veiga. A Enciclopédia de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa traz a seguinte sinopse do escritor goiano: “Estreou um pouco tarde, 1959, mas Os cavalinhos de Platiplanto chamou logo a atenção da crítica e o autor foi apontado como um dos introdutores do realismo mágico na literatura brasileira, em cuja linhagem, até então, só era citado Murilo Rubião. Entre o primeiro livro e o segundo houve um hiato de sete anos, mas A hora dos ruminantes, agora uma novela (inspirada num dos contos publicado antes) também chamou a atenção da crítica e dos leitores. J.J.V. passou a ser mais conhecido. Ultimamente vem se dedicando às narrativas mais longas (nov.), embora o seu forte, desde a estréia, sejam os contos mais sintéticos. Próximo ao realismo mágico ou ao Surrealismo, com um vigor kafkiano, o autor cria uma realidade bem brasileira, usando o nosso coloquial e localismos, como se estivesse escrevendo literatura regional. Mas a dimensão da sua ficção é universal, naquele ponto em que joga com problemas humanos e com o homem em qualquer quadrante.”
Numa entrevista, Veiga negou haver qualquer influência de García Márquez, Cortázar e Scorza em sua obra. Porque não os conhecia quando publicou Os cavalinhos de Platiplanto, A máquina extraviada e A hora dos ruminantes. E acrescentou: (...) “faço uma literatura realista. Nem fantástico, nem mágico.”
Veiga já chegou a ser comparado a Swift e Lewis Carrol. Há na sua obra “toques de humor, ora de ironia, às vezes de grotesco ou patético, resvalando pelo macabro,” comenta Ênio Silveira.
Em exaustiva análise da obra de Veiga, diz Temístocles Linhares: (...) “nele o fantástico se reveste daquilo que, a meu ver, lhe é mais determinante: o de se afastar de qualquer noção de Paraíso Terrestre, de Idade de Ouro ou da representação de sonhos, isto é, de lugares em que o homem médio pudesse viver em estado de completa proteção, como ocorre em Rubião.”
O autor de 22 Diálogos sobre o Conto Brasileiro Atual refere-se a J. Veiga em mais de um de seus diálogos. No de nº 3, dedicado a “nomes-chave do conto brasileiro atual”, alude a Veiga assim: "(...) também ele foi dos que conseguiram fundir sonho e realidade, chegando até a criar o ambiente de pesadelo para alguns de seus contos. Indiscutivelmente, ele é nome-chave para este capítulo dos “contos fantásticos”. Pena é que publique tão pouco.”
No diálogo 13 o ponto de referência central é o próprio autor de Aquele mundo de Vasabarros. Comparando-o a Murilo Rubião, afirma: “Em Veiga o fantástico flui mais das coisas, da natureza, dos acontecimentos, entrando em comunicação com o mundo visível mais imediatamente, mais naturalmente, para mostrar, sobretudo que o sentimento humano entra muitas vezes em contato com os espíritos elementares e que a terra, a água, o ar, os animais, sobretudo, são personalidades tão ativas quanto o eram para os filósofos pré-socráticos."
A obra de José J. Veiga tem sido objeto de incontestáveis estudos, tal a sua importância no panorama da Literatura Brasileira. Assim, em A literatura no Brasil, vasto painel crítico e histórico de nossa arte literária, seu nome e sua obra estão presentes em diversos capítulos. Em “Ciclo Central”, assinado por Wilson Lousada a parte de “O Regionalismo na Ficção”, Veiga aparece como narrador regionalista, apesar de seu mundo estar “construído sobre o grotesco e o onírico, absurdo e simbólico” (...).
Ivo Barbieri, em “Situação e Perspectivas”, capítulo “O Modernismo na Ficção”, assim define J.Veiga: “Na habilidade em flagrar detalhes reveladores do concreto cotidiano e nele inserir o fantástico que desorganiza a ordem de superfície, instaura o choque estilístico.”
Segundo Assis Brasil, em Os Cavalinhos de Platiplanto J. Veiga “joga com dois elementos criativos essenciais: o fantástico e uma linguagem marcadamente brasileira. Assim, temos, em princípio, um “maravilhoso” nosso e não importado. O filão vem mais incisivamente de Kafka – cujo mundo se presta a muitos equívocos – e não podemos esquecer Allan Poe, o Papini de Og e Magog, e o Par Lakergvist dos contos diabólicos. A linhagem vem ainda de uma tradição imaginativa, o gótico, que tem enriquecido a ficção através dos tempos e hoje invadindo, com bastante eficácia, a ficção científica.”
Noutro trecho de sua análise, Assis Brasil lembra que “José J. Veiga não situa 'no mapa' (como se refere num de seus contos) as suas narrativas, mas temos um escritor brasileiro, pelas expressões que usa, pelos costumes que apresenta, e o maravilhoso e fantástico de seus trabalhos são apenas o pano de fundo de seus trabalhos, que têm a sua cor local característica.”
Hélio Pólvora frisou bem esse aspecto da obra de Veiga – “sua língua é a do homem do interior, os seus assuntos derivam da terra, dos homens – uma realidade nossa”.
José J. Veiga é regionalista, sim, porém da outro naipe. É inventivo, imaginativo. Daí a constante presença do elemento fantástico em sua obra. Poderíamos até dizer que o escritor goiano vê em mais profundidade o mundo, o pequeno, pobre e monótono mundo rural. Ou o vê em duas dimensões – a real e a irreal ou supra-real.
Wilson Martins sintetiza esse modo de ver de Veiga “suas experiências jogam agora perigosamente com elementos imediatos do realismo para obter a atmosfera de fantástico em que novas dimensões se acrescentam ao mundo visualmente perceptivo”.
São incontáveis os estudos dos contos e romances de Veiga. Se fôssemos apenas citar os títulos deles já careceríamos de dezenas de páginas. E isto é tão-somente um esboço histórico.
Encerremos, pois, esta parte. Antes, vamos nos valer de algumas observações de Mário da Silva Brito: “José J. Veiga por mais que se desgarre na fantasia e se entregue a lucubrações imaginosas, ou se emaranhe no absurdo – território que freqüenta com a mesma calma e serenidade do peixe em suas águas – não consegue, de modo algum, ser um habitante da torre de marfim, um distante das durezas da vida, um egoísta enamorado do próprio umbigo e corroído pela alienação.”
E logo adiante: “Se priva com Poe, Hoffmann, Kafka, Ionesco, Orwel ou Karel Kapek – esses captores de íncubos ou súcubos, esses sensíveis radares da realidade que se escondem atrás ou além daquilo que rotineiramente se costuma supor seja o real – também compartilha das vicissitudes do ser humano, mais do que isso, tem consciência de que este pode ser esmagado, sofrer deformações, passar de pessoa a objeto, regredir no seu trajeto histórico quando sob o império do arbítrio ou submetido a pressões que o anulam até o aniquilamento.”
PÉRICLES PRADE
Nascido Péricles Luís Medeiros Prade, em 7 de maio de 1942, o terceiro nome mais importante da literatura fantástica no Brasil não é dos mais conhecidos escritores brasileiros. Dedicado mais à poesia e ao ensaio, Péricles Prade é, no entanto, autor de dois dos mais instigantes livros do gênero fantástico: Os Milagres do Cão Jerônimo (1971) e Alçapão para Gigantes (1980).
Por este ou aquele motivo, não é sequer citado nos dois livros de Assis Brasil consultados para a elaboração deste esboço. O mesmo se dá com os Diálogos de Temístocles Linhares.
Contudo, Antonio Hohlfeldt o colocou ao lado de Murilo Rubião, Moacyr Scliar, Roberto Drummond e Victor Giudice, no capítulo “O Conto Alegórico” de seu bem elaborado Conto Brasileiro Contemporâneo. Copiemos trecho de sua análise: “Prade também não dispensa a ironia com que refere algumas narrativas, demonstrando sobretudo a solidão em que vive todo aquele que esteja de plena posse de sua consciência, tema que, como verificamos, não é absolutamente ausente da obra de Murilo Rubião. Por vezes a personagem de seus contos faz-nos pensar num alter-ego metaforizado. Em outras ocasiões, temos um narrador-revelador como personagem sobrevivente de alguma catástrofe qualquer. Misturem-se aqui profecias e narrativas míticas, num momento igualmente circular.”
Almeida Fischer, ao descobrir Péricles Prade (fala de “tremendo susto” ao ler seus livros), teceu-lhe muitas loas: “Péricles Prade é escritor singular na literatura brasileira, sem ninguém que se lhe assemelhe quanto à elaboração de seus escritos, em prosa ou em versos. Que seus textos são fantásticos, não há nenhuma dúvida, mas inteiramente diferentes de outros transgressores do real de nossas letras. Poderiam enquadrar-se como do chamado realismo mágico da literatura ibero-americana? Talvez, em parte. Mas não perfeitamente, emborca também neles haja magia. São textos claramente surrealistas, talvez os mais marcantes dessa tendência em nosso País. Vão, porém, além do surrealismo de André Breton e seus companheiros do grupo francês. À falta de melhor classificação, vamos dar-lhes o nome de surrealismo fantástico-maravilhoso.”
No prefácio ao Alçapão para Gigantes, Tassilo Orpheu Spalding constata: “Atualmente são poucos os escritores que se dedicam à extraordinária tarefa de recriar a vida em parâmetros mágicos ou fantásticos. Em recriar outra vida, mais nova e mais gostosa. Porque temos todos duas vidas – a que vivemos e que não vivemos, segundo afirma Oscar Wilde: “Para a maioria de nós, a vida real é a vida que não vivemos’.”
A análise que faz da obra de Péricles Prade é fundamental para este estudo, vez que são raros os ensaios sobre a nossa literatura fantástica. Transcrevemos, pois, outros trechos do prefácio de Tassilo: “Estes contos curtos evocam toda uma magnificência oculta, mas real – daí a denominação que os críticos lhe dão de real-fantástico – que subjaz à consciência lúcida e vigilante.”
“Lendo-se os contos deste magnífico Alçapão para Gigantes vêm-nos à mente, de imediato, as obras de Jarry, Adamov, Wedekind e, sobretudo, Bert Brecht. Se este último apresenta a seus leitores um mundo demasiadamente explicado, Péricles Prade, por seu turno, revela-nos um cosmos totalmente hermético e incongruente, que tende a exprimir uma realidade tornada estranha e imperscrutável.”
“Às vezes as estórias parecem grotescas, bem no sentido do Teatro del Grottesco, dos Chiarelli e Nicodemi, mas, no fundo, o que existe é um mundo real que não pode ser apreendido pelos nossos sentidos convencionais. Quando o autor diz, por exemplo, que o Touro urinava peixes longos e brilhantes, é evidente que alia uma função fisiológica normal e comum – urinar – a uma desconcertante Einigkeit – os peixes."
“Péricles Frade de repente desfaz todas as leis a que estamos acostumados a obedecer. Suspende a ordem habitual das coisas, desfaz o convencional e cria o mágico fazendo-nos mergulhar numa outra vida, a de Oscar Wilde e Fernando Pessoa, entre outras.”
“Encontro nestes contos, e sobre isso, somente, quero me deter – o que já vislumbrei no fascinante Os Milagres do Cão Jerônimo, a saber, uma tendência nitidamente surrealista. No livro acima citado, esta tendência manifesta-se de modo muito sutil; neste, com toda a intensidade. Mas não me refiro ao Surrealismo de Hans Arp, de Salvador Dali, de Paul Delvaux, de Max Ernst, de René Magritte ou de Wolfgang Paalen. Refiro-me ao surrealismo candente de Bosch e Brueghel.”
E mais este trecho, já finalizando o prefácio: “Em termos isomórficos todos (os contos) têm a mesma característica daquilo que Todorov chama de fantástico-maravilhoso: emergem do cotidiano e nos fazem mergulhar fundo no inconsciente.”
Sobre os contos de Os Milagres do Cão Jerônimo assim falou Cassiano Ricardo: “Os contos de Péricles Prade penetram fundo o território brumoso do fantástico, num mundo alienante-surrealista cuja inteligência do texto se nega a qualquer tentativa de leitura ingênua.”
Luz e Silva é categórico: “Péricles Frade, sem favor algum, é a figura mais expressiva do conto fantástico brasileiro, podendo ser situado entre os escritores mais importantes da América Latina na atualidade.”
Segundo Lauro Junkes “o fantástico de Péricles Prade, porém, longe de ser pura especulação de emoções fáceis, de cenas mirabolantes e espetaculares, assume multívocas variantes que o enriquecem bem mais com o sugerido do que com o declarado, enveredando pelos ilimitados domínios do surreal, do demoníaco, do mítico e sobretudo do subconsciente.”
Carlos Jorge Appel esclarece: “Pode-se entender, assim, a adesão de Péricles Prade ao fantástico como instrumento adequado para criar o seu mundo de ficção, porque se opõe ao falso realismo, que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como o dava por assentado o otimismo filosófico e científico de outros tempos.”
Pródigo em elogios, José Afrânio Moreira Duarte afirma: “Péricles Prade revelou-se um dos maiores contistas brasileiros na linha do realismo mágico, com Os Milagres do Cão Jerônimo."
Péricles Prade é escritor singular. O fantástico de seus contos não encontra similar em nossa literatura, mesmo em Murilo Rubião ou em José J. Veiga.
Não nos parece aconselhável a transcrição de trechos de poemas e contos. No entanto, apenas como amostra da singularidade de Péricles Prade, vejamos dois fragmentos de um de seus livros:
“Quando, pela primeira vez, o gigante caiu no alçapão, o baque foi violento e surdo. Nas seguintes, a queda era suportada com prudência e habilidade." (“Alçapão para Gigantes”)
“No cesto encontrei doze ovos de chumbo. Desconfiado, olhei para os lados na expectativa de uma presença desconcertante. Não houve equívoco, pois em seguida um corpo indefinido arrastou-se em minha direcção.” (“O Servo de Schedin”)
Para finalizarmos este capítulo, pedimos de empréstimo a Hermann José Reipert duas palavras: “E, assim, se escrevendo pouco ressoa tanto, fá-lo com mão de mestre e os latidos do Cão Jerônimo ainda por aqui estão, dizendo coisas que os homens não compreendem, mas compreenderão um dia, nesse dia em que souberem que somos filhos do mistério, embora representando tão mal a nossa triste condição de duendes.”
Fontes:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/6.html
Imagem = http://infernoticias.blogspot.com
Nascido Murilo Eugênio Rubião, em lº de junho de 1916, um dos mais importantes cultores do conto fantástico no Brasil estreou em 1947, com o livro O Ex-Mágico.
Murilo Rubião dedicou-se exclusivamente ao conto, como poucos escritores brasileiros. Todos os grandes contistas brasileiros são também romancistas e poetas. É o caso de Machado de Assis.
Outra singularidade da Murilo – a dedicação ao fantástico. E por que isso? Ele mesmo responde: “Minha opção pelo fantástico foi herança da minha infância, das leituras que fiz, e também porque sou um sujeito que acredita muito no que está além das coisas: nunca me espanto com o sobrenatural, com o mágico, com o mistério.”
Carlos Vogt constata serem “poucos e magros" os espécimes do gênero fantástico, “tendo na solidão paciente do trabalho de Murilo um raro caso de expressão maior.” E é verdade. E até seria mais cômodo para o historiador ou o estudioso dedicar-se exclusivamente ao contista mineiro. Pois a literatura crítica brasileira é rica em artigos e ensaios que tem como foco o criador do Pirotécnico Zacarias. Em 1987 o Suplemento Literário do Minas Gerais, por exemplo, dedicou uma série de três edições a Rubião, com artigos e ensaios assinados por alguns dos melhores críticos literários brasileiros. A série intitulou-se “Murilo Rubião, 40 anos de ex-mágico”.
Um dos mais alentados ensaios da série é assinado por Nelly Novaes Coelho e tem por título “A civilização-da-culpa e o fantástico-absurdo muliriano”. Transcrevamos os dois primeiros parágrafos: “O fantástico é posterior à imagem de um mundo sem milagres, submetido a uma rigorosa causalidade... Só as culturas que chegarem a uma ordem constante, objetiva e imutável dos fenômenos, puderem dar origem, como por contraste, a essa forma particular de imaginação, que contradiz, expressamente, a regularidade perfeita (daquela ordem): o espanto do sobrenatural". (Rogar Caillois, in Antologia del Cuento Fantastico. Buenos Aires, Ed. Sudamericana, 1970).
Diríamos, porém, que o fantástico muriliano (tal como o de Kafka) é posterior ao espanto, de que fala Caillois. Este teria correspondido à primeira reação dos homens diante da nova imagem-do-homem-e-do-mundo que a Ciência positivista lhes revelara. Superado o espanto do primeiro momento, sobreveio a revolta e depois a resignação, a apatia ou o espanto congelado (de que fala Davi Arriguci), diante do inevitável. Nesse sentido, o que espanta o leitor de Murilo Rubião é o fato de nada espantar os seus personagens. Envolvidos, inexplicavelmente, nas situações mais fantásticas, trágicas e sem sentido, eles se deixam levar. Impotentes diante dos fatos ou incapazes de revolta, submetem-se passivamente à fatalidade dos acontecimentos.”
Outra dedicada crítica de Rubião é Eliane Zagury. Ao lembrar o tempo decorrido entre o primeiro e o segundo livro do contista, a ensaísta constata: “Murilo nunca teve pressa em exibir o novo que nos tinha a ofertar.” Em outro ensaio, “O contista do absurdo”, Zagury traça o perfil literário do contista – "o representante originalíssimo de uma literatura de ficção muito pouco explorada na literatura Brasileira, tão afeita às analogias mais primitivas da realidade que a sustém.”
Antonio Hohlfeldt vê no escritor mineiro o mais importante representante brasileiro do que ele chama de “conto alegórico”. No entender de Temístocles Linhares, no entanto, o fantástico não é o traço dominante na literatura de Rubião. “Na verdade, o sonho e a fantasia é que inspiram a maioria de seus contos”, diz ele. E noutra página de seus 22 Diálogos sobre o Conto Brasileiro Atual observa: que o fantástico praticado por Murilo no livro de estréia “era outro tipo de fantástico, um fantástico mais mágico, menos real, se assim me posso exprimir. As estórias de Rubião se desenvolviam mais em torno do sonho e da fantasia. Eram mais parábolas que continham muita verdade, sou o primeiro a reconhecer, mas que se afastavam desse outro tipo de fantástico mais próximo das velhas crenças humanas e que traduz de certa forma a volta a um estado da consciência bastante antigo, ou seja, a revivescência de sentimentos instintivos, tal como nos faz sentir José J. Veiga. – De qualquer modo, são apenas diferenças de tom, pois tanto o fantástico, como o mágico ou o feérico têm origem comum. – Sim, mas o fantástico pertence pelo espírito ao mundo do terror ou do medo, ao passo que o mágico, ou melhor, o feérico, talvez a melhor característica de Rubião, ao mundo da intercessão, do refúgio contra o terror ou o medo.” Mais adiante afirma: “O fantástico de Murilo Rubião talvez seja mais intelectual. Os seus fantasmas são mais concebidos pelo espírito...”
Neste diálogo, onde faz algumas comparações de J.J. Veiga com Murilo Rubião, ainda explica: “Os (contos) de Murilo Rubião giram mais em volta de gente da cidade, de mágicas, de almas penadas, de defuntos que revivem, de loucos, de mulheres monstruosas, etc. Quer dizer, um fantástico mais ligado às pessoas, aos seus costumes mágicos, ao passo que...”
A bibliografia de Murilo Rubião é a seguinte: O Ex-Mágico (1947), A Estrela Vermelha (1953), Os Dragões e Outros Contos (1965), O Pirotécnico Zacarias (1974), O Convidado (1974), e A Casa do Girassol Vermelho (1978). Seriam, pois, seis livros. No entanto, como explica Carlos Vogt no artigo “A construção lógica do absurdo”, a matemática muriliana não é bem assim, vez que o contista sempre reescreveu e reeditou seus contos, sob títulos diferentes de livros. Assim, A Casa do Girassol Vermelho contém os mesmos contos de A Estrela Vermelha “e contos que lá se encontravam foram, por sua vez, publicados em 1965 no volume Os Dragões e Outros Contos, que, por sua vez, continha trabalhos republicados em 1974, em O Pirotécnico Zacarias, título também de um conto já publicado no Ex-Mágico. Enfim, a circularidade é sem fim. Propositadamente. É que Murilo Rubião é, na verdade, um reescritor, no melhor e mais conseqüente sentido que este termo possa ter, quando aplicado a um autor que elabora e reelabora minuciosamente os seus contos e não apenas por zelo profissional”(...).
Na “síntese crítica” de Murilo Rubião, no didático Dicionário Prático de Literatura Brasileira, escreveu Assis Brasil: “Murilo Rubião é, no Brasil, um dos pioneiros do conto fantástico, que entraria mais em voga na década de 70, por influência de alguns escritores latino-americanos. Mas a linhagem é clássica, machadiana, enveredando quase sempre pelo clima da fantasia.”
JOSÉ J.VEIGA
Nascido José Jacinto Veiga, em 2 de fevereiro de 1915, outro nome fundamental da literatura fantástica no Brasil é José J. Veiga. A Enciclopédia de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa traz a seguinte sinopse do escritor goiano: “Estreou um pouco tarde, 1959, mas Os cavalinhos de Platiplanto chamou logo a atenção da crítica e o autor foi apontado como um dos introdutores do realismo mágico na literatura brasileira, em cuja linhagem, até então, só era citado Murilo Rubião. Entre o primeiro livro e o segundo houve um hiato de sete anos, mas A hora dos ruminantes, agora uma novela (inspirada num dos contos publicado antes) também chamou a atenção da crítica e dos leitores. J.J.V. passou a ser mais conhecido. Ultimamente vem se dedicando às narrativas mais longas (nov.), embora o seu forte, desde a estréia, sejam os contos mais sintéticos. Próximo ao realismo mágico ou ao Surrealismo, com um vigor kafkiano, o autor cria uma realidade bem brasileira, usando o nosso coloquial e localismos, como se estivesse escrevendo literatura regional. Mas a dimensão da sua ficção é universal, naquele ponto em que joga com problemas humanos e com o homem em qualquer quadrante.”
Numa entrevista, Veiga negou haver qualquer influência de García Márquez, Cortázar e Scorza em sua obra. Porque não os conhecia quando publicou Os cavalinhos de Platiplanto, A máquina extraviada e A hora dos ruminantes. E acrescentou: (...) “faço uma literatura realista. Nem fantástico, nem mágico.”
Veiga já chegou a ser comparado a Swift e Lewis Carrol. Há na sua obra “toques de humor, ora de ironia, às vezes de grotesco ou patético, resvalando pelo macabro,” comenta Ênio Silveira.
Em exaustiva análise da obra de Veiga, diz Temístocles Linhares: (...) “nele o fantástico se reveste daquilo que, a meu ver, lhe é mais determinante: o de se afastar de qualquer noção de Paraíso Terrestre, de Idade de Ouro ou da representação de sonhos, isto é, de lugares em que o homem médio pudesse viver em estado de completa proteção, como ocorre em Rubião.”
O autor de 22 Diálogos sobre o Conto Brasileiro Atual refere-se a J. Veiga em mais de um de seus diálogos. No de nº 3, dedicado a “nomes-chave do conto brasileiro atual”, alude a Veiga assim: "(...) também ele foi dos que conseguiram fundir sonho e realidade, chegando até a criar o ambiente de pesadelo para alguns de seus contos. Indiscutivelmente, ele é nome-chave para este capítulo dos “contos fantásticos”. Pena é que publique tão pouco.”
No diálogo 13 o ponto de referência central é o próprio autor de Aquele mundo de Vasabarros. Comparando-o a Murilo Rubião, afirma: “Em Veiga o fantástico flui mais das coisas, da natureza, dos acontecimentos, entrando em comunicação com o mundo visível mais imediatamente, mais naturalmente, para mostrar, sobretudo que o sentimento humano entra muitas vezes em contato com os espíritos elementares e que a terra, a água, o ar, os animais, sobretudo, são personalidades tão ativas quanto o eram para os filósofos pré-socráticos."
A obra de José J. Veiga tem sido objeto de incontestáveis estudos, tal a sua importância no panorama da Literatura Brasileira. Assim, em A literatura no Brasil, vasto painel crítico e histórico de nossa arte literária, seu nome e sua obra estão presentes em diversos capítulos. Em “Ciclo Central”, assinado por Wilson Lousada a parte de “O Regionalismo na Ficção”, Veiga aparece como narrador regionalista, apesar de seu mundo estar “construído sobre o grotesco e o onírico, absurdo e simbólico” (...).
Ivo Barbieri, em “Situação e Perspectivas”, capítulo “O Modernismo na Ficção”, assim define J.Veiga: “Na habilidade em flagrar detalhes reveladores do concreto cotidiano e nele inserir o fantástico que desorganiza a ordem de superfície, instaura o choque estilístico.”
Segundo Assis Brasil, em Os Cavalinhos de Platiplanto J. Veiga “joga com dois elementos criativos essenciais: o fantástico e uma linguagem marcadamente brasileira. Assim, temos, em princípio, um “maravilhoso” nosso e não importado. O filão vem mais incisivamente de Kafka – cujo mundo se presta a muitos equívocos – e não podemos esquecer Allan Poe, o Papini de Og e Magog, e o Par Lakergvist dos contos diabólicos. A linhagem vem ainda de uma tradição imaginativa, o gótico, que tem enriquecido a ficção através dos tempos e hoje invadindo, com bastante eficácia, a ficção científica.”
Noutro trecho de sua análise, Assis Brasil lembra que “José J. Veiga não situa 'no mapa' (como se refere num de seus contos) as suas narrativas, mas temos um escritor brasileiro, pelas expressões que usa, pelos costumes que apresenta, e o maravilhoso e fantástico de seus trabalhos são apenas o pano de fundo de seus trabalhos, que têm a sua cor local característica.”
Hélio Pólvora frisou bem esse aspecto da obra de Veiga – “sua língua é a do homem do interior, os seus assuntos derivam da terra, dos homens – uma realidade nossa”.
José J. Veiga é regionalista, sim, porém da outro naipe. É inventivo, imaginativo. Daí a constante presença do elemento fantástico em sua obra. Poderíamos até dizer que o escritor goiano vê em mais profundidade o mundo, o pequeno, pobre e monótono mundo rural. Ou o vê em duas dimensões – a real e a irreal ou supra-real.
Wilson Martins sintetiza esse modo de ver de Veiga “suas experiências jogam agora perigosamente com elementos imediatos do realismo para obter a atmosfera de fantástico em que novas dimensões se acrescentam ao mundo visualmente perceptivo”.
São incontáveis os estudos dos contos e romances de Veiga. Se fôssemos apenas citar os títulos deles já careceríamos de dezenas de páginas. E isto é tão-somente um esboço histórico.
Encerremos, pois, esta parte. Antes, vamos nos valer de algumas observações de Mário da Silva Brito: “José J. Veiga por mais que se desgarre na fantasia e se entregue a lucubrações imaginosas, ou se emaranhe no absurdo – território que freqüenta com a mesma calma e serenidade do peixe em suas águas – não consegue, de modo algum, ser um habitante da torre de marfim, um distante das durezas da vida, um egoísta enamorado do próprio umbigo e corroído pela alienação.”
E logo adiante: “Se priva com Poe, Hoffmann, Kafka, Ionesco, Orwel ou Karel Kapek – esses captores de íncubos ou súcubos, esses sensíveis radares da realidade que se escondem atrás ou além daquilo que rotineiramente se costuma supor seja o real – também compartilha das vicissitudes do ser humano, mais do que isso, tem consciência de que este pode ser esmagado, sofrer deformações, passar de pessoa a objeto, regredir no seu trajeto histórico quando sob o império do arbítrio ou submetido a pressões que o anulam até o aniquilamento.”
PÉRICLES PRADE
Nascido Péricles Luís Medeiros Prade, em 7 de maio de 1942, o terceiro nome mais importante da literatura fantástica no Brasil não é dos mais conhecidos escritores brasileiros. Dedicado mais à poesia e ao ensaio, Péricles Prade é, no entanto, autor de dois dos mais instigantes livros do gênero fantástico: Os Milagres do Cão Jerônimo (1971) e Alçapão para Gigantes (1980).
Por este ou aquele motivo, não é sequer citado nos dois livros de Assis Brasil consultados para a elaboração deste esboço. O mesmo se dá com os Diálogos de Temístocles Linhares.
Contudo, Antonio Hohlfeldt o colocou ao lado de Murilo Rubião, Moacyr Scliar, Roberto Drummond e Victor Giudice, no capítulo “O Conto Alegórico” de seu bem elaborado Conto Brasileiro Contemporâneo. Copiemos trecho de sua análise: “Prade também não dispensa a ironia com que refere algumas narrativas, demonstrando sobretudo a solidão em que vive todo aquele que esteja de plena posse de sua consciência, tema que, como verificamos, não é absolutamente ausente da obra de Murilo Rubião. Por vezes a personagem de seus contos faz-nos pensar num alter-ego metaforizado. Em outras ocasiões, temos um narrador-revelador como personagem sobrevivente de alguma catástrofe qualquer. Misturem-se aqui profecias e narrativas míticas, num momento igualmente circular.”
Almeida Fischer, ao descobrir Péricles Prade (fala de “tremendo susto” ao ler seus livros), teceu-lhe muitas loas: “Péricles Prade é escritor singular na literatura brasileira, sem ninguém que se lhe assemelhe quanto à elaboração de seus escritos, em prosa ou em versos. Que seus textos são fantásticos, não há nenhuma dúvida, mas inteiramente diferentes de outros transgressores do real de nossas letras. Poderiam enquadrar-se como do chamado realismo mágico da literatura ibero-americana? Talvez, em parte. Mas não perfeitamente, emborca também neles haja magia. São textos claramente surrealistas, talvez os mais marcantes dessa tendência em nosso País. Vão, porém, além do surrealismo de André Breton e seus companheiros do grupo francês. À falta de melhor classificação, vamos dar-lhes o nome de surrealismo fantástico-maravilhoso.”
No prefácio ao Alçapão para Gigantes, Tassilo Orpheu Spalding constata: “Atualmente são poucos os escritores que se dedicam à extraordinária tarefa de recriar a vida em parâmetros mágicos ou fantásticos. Em recriar outra vida, mais nova e mais gostosa. Porque temos todos duas vidas – a que vivemos e que não vivemos, segundo afirma Oscar Wilde: “Para a maioria de nós, a vida real é a vida que não vivemos’.”
A análise que faz da obra de Péricles Prade é fundamental para este estudo, vez que são raros os ensaios sobre a nossa literatura fantástica. Transcrevemos, pois, outros trechos do prefácio de Tassilo: “Estes contos curtos evocam toda uma magnificência oculta, mas real – daí a denominação que os críticos lhe dão de real-fantástico – que subjaz à consciência lúcida e vigilante.”
“Lendo-se os contos deste magnífico Alçapão para Gigantes vêm-nos à mente, de imediato, as obras de Jarry, Adamov, Wedekind e, sobretudo, Bert Brecht. Se este último apresenta a seus leitores um mundo demasiadamente explicado, Péricles Prade, por seu turno, revela-nos um cosmos totalmente hermético e incongruente, que tende a exprimir uma realidade tornada estranha e imperscrutável.”
“Às vezes as estórias parecem grotescas, bem no sentido do Teatro del Grottesco, dos Chiarelli e Nicodemi, mas, no fundo, o que existe é um mundo real que não pode ser apreendido pelos nossos sentidos convencionais. Quando o autor diz, por exemplo, que o Touro urinava peixes longos e brilhantes, é evidente que alia uma função fisiológica normal e comum – urinar – a uma desconcertante Einigkeit – os peixes."
“Péricles Frade de repente desfaz todas as leis a que estamos acostumados a obedecer. Suspende a ordem habitual das coisas, desfaz o convencional e cria o mágico fazendo-nos mergulhar numa outra vida, a de Oscar Wilde e Fernando Pessoa, entre outras.”
“Encontro nestes contos, e sobre isso, somente, quero me deter – o que já vislumbrei no fascinante Os Milagres do Cão Jerônimo, a saber, uma tendência nitidamente surrealista. No livro acima citado, esta tendência manifesta-se de modo muito sutil; neste, com toda a intensidade. Mas não me refiro ao Surrealismo de Hans Arp, de Salvador Dali, de Paul Delvaux, de Max Ernst, de René Magritte ou de Wolfgang Paalen. Refiro-me ao surrealismo candente de Bosch e Brueghel.”
E mais este trecho, já finalizando o prefácio: “Em termos isomórficos todos (os contos) têm a mesma característica daquilo que Todorov chama de fantástico-maravilhoso: emergem do cotidiano e nos fazem mergulhar fundo no inconsciente.”
Sobre os contos de Os Milagres do Cão Jerônimo assim falou Cassiano Ricardo: “Os contos de Péricles Prade penetram fundo o território brumoso do fantástico, num mundo alienante-surrealista cuja inteligência do texto se nega a qualquer tentativa de leitura ingênua.”
Luz e Silva é categórico: “Péricles Frade, sem favor algum, é a figura mais expressiva do conto fantástico brasileiro, podendo ser situado entre os escritores mais importantes da América Latina na atualidade.”
Segundo Lauro Junkes “o fantástico de Péricles Prade, porém, longe de ser pura especulação de emoções fáceis, de cenas mirabolantes e espetaculares, assume multívocas variantes que o enriquecem bem mais com o sugerido do que com o declarado, enveredando pelos ilimitados domínios do surreal, do demoníaco, do mítico e sobretudo do subconsciente.”
Carlos Jorge Appel esclarece: “Pode-se entender, assim, a adesão de Péricles Prade ao fantástico como instrumento adequado para criar o seu mundo de ficção, porque se opõe ao falso realismo, que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como o dava por assentado o otimismo filosófico e científico de outros tempos.”
Pródigo em elogios, José Afrânio Moreira Duarte afirma: “Péricles Prade revelou-se um dos maiores contistas brasileiros na linha do realismo mágico, com Os Milagres do Cão Jerônimo."
Péricles Prade é escritor singular. O fantástico de seus contos não encontra similar em nossa literatura, mesmo em Murilo Rubião ou em José J. Veiga.
Não nos parece aconselhável a transcrição de trechos de poemas e contos. No entanto, apenas como amostra da singularidade de Péricles Prade, vejamos dois fragmentos de um de seus livros:
“Quando, pela primeira vez, o gigante caiu no alçapão, o baque foi violento e surdo. Nas seguintes, a queda era suportada com prudência e habilidade." (“Alçapão para Gigantes”)
“No cesto encontrei doze ovos de chumbo. Desconfiado, olhei para os lados na expectativa de uma presença desconcertante. Não houve equívoco, pois em seguida um corpo indefinido arrastou-se em minha direcção.” (“O Servo de Schedin”)
Para finalizarmos este capítulo, pedimos de empréstimo a Hermann José Reipert duas palavras: “E, assim, se escrevendo pouco ressoa tanto, fá-lo com mão de mestre e os latidos do Cão Jerônimo ainda por aqui estão, dizendo coisas que os homens não compreendem, mas compreenderão um dia, nesse dia em que souberem que somos filhos do mistério, embora representando tão mal a nossa triste condição de duendes.”
Fontes:
http://www.vastoabismo.xpg.com.br/6.html
Imagem = http://infernoticias.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário