quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Lendas Árabes (O Livro do Destino)



Certa vez — há muitos anos — quando de volta de Bagdá, aonde fora vender uma grande partida de peles e tapetes, encontrei num caravançará, (1) perto de Damasco, velho árabe de Hedjaz que me chamou de certo modo a atenção. Falava agitado com os mercadores e peregrinos, gesticulando e praguejando sem cessar; fumava constantemente uma mistura forte de fumo e haxixe e quando ouvia de um dos companheiros uma censura qualquer, exclamava, apertando entre as mãos, o turbante esfarrapado:

— Mac Allah! ó muçulmanos! (2) Eu já fui poderoso! Eu já tive o Destino nesta mão!

— É um pobre diabo — diziam. — Não regula bem do miolo! Allah que o proteja!

Eu, porém, - confesso — sentia irresistível atração pelo desconhecido do turbante esfarrapado. Procurei aproximar-me dele discretamente, falei-lhe várias vezes com brandura e ao fim de algumas horas já lhe havia captado inteiramente a confiança.

— Os homens da caravana me tomam por doido — ele me disse uma noite quando cavaqueamos a sós. Não querem acreditar que já tive nas mãos o destino da humanidade inteira. Sim, senhor: o destino do gênero humano!

Esbugalhei os olhos assombrado.
Aquela afirmação insistente de que havia sido senhor do Destino era característica do seu pobre estado de demência.

O desconhecido, porém, que parecia não perceber os meus sustos e desconfianças, continuou:

— Segundo ensina o Alcorão — o livro de Allah — a vida de todos nós está escrita — maktub! (3) no grande “Livro do Destino”. Cada homem tem lá a sua página com tudo o que de bom ou de mau lhe vai acontecer. Todos os fatos que ocorrem na terra, desde o cair de uma folha seca, até a morte de um califa, estão escritos — estão fatalmente escritos — no Livro do Destino!

E sem esperar que eu o interrogasse narrou-me o seguinte:

— Em viagem pelo deserto sonhei, certa vez, com um velho feiticeiro que ia ser enforcado. Esse feiticeiro, em sinal de gratidão, deu-me um talismã raríssimo que possuía. E essa pedra maravilhosa permitia a entrada livre na famosa Gruta da Fatalidade, onde se acha — pela vontade de Allah — o Livro do Destino. Viajei dois anos a fim de chegar à gruta encantada. Um djim (4) — gênio bondoso que estava de sentinela à porta — deixou-me entrar, avisando-me, porém, de que só poderia permanecer na gruta por espaço de poucos minutos. Era minha intenção alterar o que estava escrito na página da minha vida e fazer de mim um homem rico e feliz. Bastava acrescentar com a pena que eu já levava. — “Terá muito dinheiro!” Lembrei-me, porém, dos meus inimigos. Poderia, naquele momento, fazer grande mal a todos eles. Movido pela idéia única do ódio e da vingança, abri a página de Ali Ben-Homed, o mercador. Li o que ia acontecer a esse meu rival! e acrescentei em baixo, sem hesitar, cheio de rancor: — “Morrerá pobre, sofrendo os maiores tormentos!” Na página de Zalfah-el-Abarj escrevi, impiedoso, alterando-lhe a vida inteira: — “Perderá todos os haveres; ficará cego e morrerá de fome e sede no deserto!”

— E, assim, sem piedade, arrasei, feri, retalhei a todos os meus desafetos!

— E na tua vida? — indaguei curioso. — Que fizeste, ó muçulmano, na página em que estava escrita a tua própria existência?

— Ah! meu amigo! prosseguiu o desconhecido, cheio de mágoa. — Nada fiz em meu favor. Preocupado em fazer o mal aos outros, esqueci-me de fazer o bem a mim mesmo. Agi como um miserável. Semeei largamente o infortúnio e a dor, e não colhi a menor parcela de felicidade. Quando me lembrei de mim, quando pensei em tornar feliz a minha vida, estava terminado o meu tempo. Sem que eu esperasse, surgiu-me pela frente um efrite — gênio feroz — que me agarrou fortemente e, depois de arrancar-me das mãos o talismã, me atirou fora da gruta. Caí entre as pedras e com a violência do choque perdi os sentidos. Quando recuperei a razão, achei-me ferido e faminto, muito longe da gruta, junto a pequeno oásis do deserto de Omã. Sem o talismã precioso, nunca mais pude descobrir o tortuoso caminho da Gruta do Destino. E concluiu, entre suspiros, numa atitude de profundo e irremediável desalento:

— Perdi a única oportunidade que tive de ser rico e feliz!

Seria verdadeira essa estranha aventura? Até hoje ignoro. O certo é que o triste caso do velho árabe de Hedjaz encerrava grande e precioso ensinamento. Quantos homens há, no mundo, que preocupados em levar o mal a seus semelhantes, se esquecem do bem que poderiam fazer a si próprios...
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(1) Refúgio construido pelo govêrno ou por pessoas piedosas à beira do caminho para servir de abrigo aos peregrinos. Espécie de “rancho” e grandes dimensões em que se acolhiam as caravanas.
(2) Mac Allah — exclamaçâo usual enfre os árabes — Por Deus!!! ou ainda: “Exaltado seja Allah!”
Muçulmanos — nome derivado de mouslin “aquele que se resigna à vontade de Deu”. Os muçulmanos seguem a religião de Mafoma e são, atualmente, em número de 200 milhões aproximadamente
(3) Maktub! — (estava escrito!) — particípio passado do verbo catab (escrever). Expressão que bem traduz o fatalismo muçulmana
(4) Djins e efrites são gênios sobrenaturais cuja existência os grabes admitiam. Essa crendice só subsiste nas classes incultas. Os djins são benfazejos ao passo que os efrites se divertem com o mal que podem fazer às criaturas.
Fonte:
TAHAN, Malba. Céu de Allah. Rio de Janeiro: Ed. Conquista, 1960.

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