quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Miguel Perrone Cione (A Assombração)



A pequena e pacata cidade havia sido enormemente beneficiada com a chegada da eletricidade. Os postes plantados nas esquinas, sobre as calçadas, sustentavam galhardamente os luzidios fios de cobre, que levavam rapidamente à cidade a milagrosa iluminação inventada por Thomas Edison. Ajustado a essa nova maravilha do progresso, o pequeno rincão paulista relegava a um passado que jamais voltaria os prosaicos lampiões, que o romantismo da época tanto havia acariciado.

Daquela antiga fisionomia noturna, só restava ainda o fogo de artifício lançado pelas chaminés dos comboios de passageiros, que passavam invariavelmente à noite ao sul da cidade, vomitando de suas máquinas a habitual esteira de fagulhas incendiárias.

Agora, ao fim das tardes, apreciava-se um espetáculo inédito, vendo o funcionário da Empresa de Força e Luz ligar a chave do transformador, que ficava em frente à Praça da Matriz, e as lâmpadas todas ao mesmo tempo, como num passo de mágica, chisparem de luz, transformando a penumbra em um alegre recanto iluminado.

Depois desse avanço espetacular em direção à civilização moderna, certo dia, um senhor de aparência humilde bateu à porta de um dos professores da cidade; queria conversar com ele:

— Senhor professor, — começou ele — desejaria falar dois minutos com o senhor.

— Pois não, vamos entrar. Qual é o assunto?

— Como sei que o senhor é uma pessoa esclarecida, desejaria fazer-lhe uma pergunta.

— Perfeitamente, estou ao seu dispor.

— O senhor acredita em assombrações? Desejo falar-lhe de uma que apareceu há dias em minha casa.

— Não, não creio nessas coisas...

— Mais uma razão para o senhor certificar-se de que existe algo de sobrenatural no que venho observando em minha propriedade, e que gostaria de mostrar-lhe. Sinceramente, eu gostaria que o senhor visse com seus próprios olhos. A vizinhança toda já presenciou o que estou lhe relatando. Tive de mudar-me da casa. Não era possível ver todas as noites aquelas sombras ameaçadoras emergirem das paredes do nosso quarto e debruçarem-se sobre nós.

O professor observava o visitante com visível incredulidade, depois perguntou-lhe a que horas aparecia a assombração.

— Geralmente das 22 horas em diante, hora que costumamos nos deitar.

Depois de outras explicações, ficou combinado que naquela noite, o professor iria ver a discutida assombração.

Às dez da noite, o professor dirigiu-se ao local designado, onde já o esperava o homem que o visitara e mais três pessoas da vizinhança.

Adentraram a casa mal-assombrada. Todas as lâmpadas foram acesas. Dirigiram-se diretamente ao dormitório principal da residência, o “quartel-general” da assombração. Fez-se um silêncio total, todos aguardavam com certa emoção e, por que não dizer, com algum temor, a misteriosa e audaz personagem das sombras. Esperaram 5, 10, 20 minutos... nada se via de anormal. O quarto era forrado de madeira, paredes altas, como sói acontecer nas casas antigas. Ao redor da lâmpada, de aproximadamente 15W, via-se um globo de vidro e que outrora deveria ter sido transparente, mas no momento, apenas translúcido pela poeira acumulada.

Já estavam impacientes quando, de súbito, uma fantástica sombra apareceu numa das paredes do quarto. Tinha o aspecto de um esquisito monstro, cujo corpo era formado por uma massa compacta. Quatro braços de cada lado moviam-se, lentos, mas ameaçadores como os da hidra fabulosa e lendária. Realmente era de meter medo, mas enfim era apenas uma sombra.

Apesar das incredulidades do professor, parecia que todos encontravam-se diante do sobrenatural, de algum ser extraterrestre vivendo em outra dimensão.

Após alguns minutos, a sombra começou a circular pelas quatro paredes e até pelo teto do quarto, fazendo um footing diabólico. O professor, absorvido em seus pensamentos, olhava ora para a sombra, ora para o globo que pendia do forro. Pediu permissão para apagar a luz. O ser sobrenatural desapareceu, embora o quarto ainda recebesse claridade da sala adjacente. Evidentemente, a assombração não gostava da penumbra e logo que a lâmpada de novo se acendeu, ressurgiu até mais ameaçadora.

O professor esboçou um sorriso de triunfo; possivelmente já possuía a chave do mistério. Com uma escada, o globo foi removido. A sombra desapareceu como que por encanto. Dentro do globo empoeirado, o professor procurava o responsável por todo aquele rebuliço: era uma pequena, inofensiva aranha papa-moscas que residia na concavidade interior do globo de iluminação.

Quando a lâmpada aquecia o interior do globo de vidro, depois de certo tempo, o calor incomodava o inocente inseto; ele se agitava, começando com movimentos lentos e depois com uma corrida desesperada ao redor do globo. A luz amarelada da lâmpada projetava nas paredes do quarto a sua imagem imensamente aumentada pela projeção do objeto, reproduzindo, no interior do cômodo, também todos os movimentos da pequena aranha, que se tornavam pela dimensão alcançada deveras ameaçadores, transformando assim o pacífico inseto na famosa assombração daquela rua...

Fontes:
http://www.movimentodasartes.com.br/miguelcione/default.htm
Imagem = http://gatocomvertigens.blogs.sapo.pt/

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