Na primeira noite depois do Ramadã, logo que chegamos ao palácio do califa fomos informados por um velho escriba, nosso companheiro de trabalho, que o soberano preparava estranha surpresa para o nosso amigo Beremiz.
Aguardava-se grave acontecimento. O calculista ia ser argüido, em audiência pública, por sete matemáticos de fama, três dos quais haviam chegado dias antes do Cairo.
Que fazer? Diante daquela ameaça procurei encorajar Beremiz, fazendo-lhe sentir que devia ter confiança absoluta em sua capacidade tantas vezes comprovada.
O calculista recordou-me um provérbio que ouvira de seu mestre Nô-Elin: "Quem não desconfia de si mesmo, não merece a confiança dos outros!".
Com pesada sombra de apreensões e tristeza entramos em palácio.
O grande e rutilante divã, profusamente iluminado, aparecia repleto de cortesãos e Xeques de renome.
À direita do califa achava-se o jovem príncipe Cluzir Schá, convidado de honra, que se fazia acompanhar de oito doutores hindus, ostentando roupagens vistosas de ouro e veludo e exibindo garbosos turbantes de Cachemira. À esquerda do trono perfilavam-se os vizires, os poetas, os cádis e os elementos de maior prestígio da alta sociedade de Bagdá. Sobre um estrado, onde se viam vários coxins de seda, achavam-se os sete sábios que iam interrogar o calculista. A um gesto do califa c Xeque Nuredin Barur tomou Beremiz pelo braço e conduziu-o, com Vida solenidade, até a uma espécie de tribuna erguida no centro do rico salão.
Um escravo negro agigantado fez soar três vezes pesado gongo de prata. Todos os turbantes se curvaram. Ia ter início a singular cerimônia.
Um imã tomou do livro Santo e leu, numa cadência invariável, proferindo lentamente as palavras, a prece do Alcorão:
- Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso! Louvado seja o Onipotente, Criador de todos os mundos!
A misericórdia é em Deus o atributo supremo!
Nós Te adoramos, Senhor, e imploramos a Tua divina assistência!
Conduze-nos pelo caminho certo! Pelo caminho daqueles que são esclarecidos e abençoados por Ti!
Logo que a última palavra do imã se perdeu com o seu cortejo de ecos pelas galerias do palácio, o rei avançou dois ou três passos, parou e disse:
- Ualá! O nosso amigo e aliado, príncipe Cluzir-ehdin-Moubarec Schá, senhor de Laore e Deli, pediu-me que proporcionasse aos doutores de sua comitiva um ensejo de admirar a cultura e a habilidade do geômetra persa, secretário do vizir Ibraim Maluf. Seria desairoso deixar de atender a essa solicitação de nosso ilustre hóspede. E, assim, sete dos mais famosos ulemás do Islã vão propor ao calculista Beremiz questões que se relacionam com a ciência dos números. Se ele souber responder a todas as perguntas, receberá (assim o prometo) recompensa tal, que o fará um dos homens mais invejados de Bagdá.
Vimos, nesse momento, o poeta Iezid aproximar-se do califa.
- Comendador dos crentes! - disse o Xeque. - Tenho em meu poder um objeto que pertence ao calculista. Trata-se de um anel encontrado em minha casa por uma das escravas do "harém". Quero restituí-lo ao calculista antes de ser iniciada a importantíssima prova a que vai submeter-se. É possível que se trate de um talismã e eu não desejo privar o calculista nem mesmo do auxílio dos recursos sobrenaturais.
Permitiu o monarca que o anel fosse, no mesmo instante, entregue ao calculista.
Mostrou-se Beremiz profundamente emocionado ao receber a jóia. Apesar da distância em que me achava, pude notar que alguma coisa de muito grave ocorria naquele momento. Ao abrir a pequenina caixa os seus olhos brilhantes se umedeceram. Soube depois que, juntamente com o anel, a piedosa Telassim havia colocado um papel no qual Beremiz leu emocionado: "Ânimo. Confia em Deus. Rezo por ti". Estaria o Xeque Iezid a par dessa mensagem secreta?
Fez-se profundo silêncio. O sábio indicado para iniciar a argüição, ergueu-se. Era uma figura respeitável de octogenário. As longas barbas brancas caíam-lhe fartas sobre o peito largo.
- Quem é aquele ancião? - perguntei, em surdina, a um oculista de rosto magro e bronzeado que se achava ao meu lado.
- É o célebre Mohadebe Ibhague-Abner-Raman - respondeu-me. - Dizem que conhece mais de quinze mil livros sobre o Alcorão. Ensina Teologia e Retórica.
As palavras do sábio Mohadebe eram pronunciadas em tom estranho e surpreendente, sílaba por sílaba, como se o orador pusesse empenho em medir o som de sua própria voz:
- Vou interrogar-vos, ó calculista!, sobre assunto de indiscutível importância para a cultura de um muçulmano. Antes de estudar a ciência de um Euclides ou de um Pitágoras, deve o muçulmano conhecer profundamente o problema religioso, pois a vida não é concebível quando se projeta divorciada da Verdade e da Fé. Aquele que não se preocupa com o problema de sua existência futura, com a salvação de sua alma, e desconhece os preceitos de Deus, não merece o qualificativo de sábio. Quero, portanto, que nos apresenteis neste momento, sem a menor hesitação, quinze indicações numéricas certas e notáveis sobre o Alcorão, o livro de Allah!
Seguiu-se profundo silêncio. Aguardava-se com ansiedade a palavra de Beremiz. Com uma tranqüilidade que causava assombro, o jovem calculista respondeu:
- O Alcorão, ó sábio e venerável Mufti, compõe-se de 114 suratas, das quais 70 foram ditadas em Meca e 44 em Medina. Divide-se em 611 "ashrs" e contém 6236 versículos, dos quais 7 do primeiro capítulo "Fatihat" e 8 do último "Os homens". A surata maior é a segunda, que encerra 280 versículos. O Alcorão contém 46439 palavras e 323670 letras; cada uma das quais encerra dez virtudes especiais! O nosso livro sagrado cita o nome de 25 profetas! Isa (Jesus), filho de Maria, é citado 19 vezes! Há cinco animais cujos nomes foram tomados para epígrafes de cinco capítulos: a vaca, a abelha, a formiga, a aranha e o elefante. A surata 102 tem por título "A contestação dos números". É notável esse capítulo do Livro Sagrado pela advertência que dirige, em seus 5 versículos, àqueles que se preocupam com disputas estéreis sobre números que não têm importância alguma no progresso espiritual dos homens. Eis aí, para atender ao vosso pedido, as indicações numéricas tiradas do Livro de Allah! Houve, apenas, na resposta que acabo de formular, um engano que me apresso a confessar. Em vez de 15 relações citei 16!
Confirmou o sábio Mohadebe todas as indicações dadas pelo calculista; até o número de letras do Livro de Allah fora enunciado sem erro de uma unidade!
Fontes:
TAHAN, Malba. O Homem que Calculava. SP: Circulo do Livro, 1983.
Capa do Livro: http://bibliaco.zip.net
Aguardava-se grave acontecimento. O calculista ia ser argüido, em audiência pública, por sete matemáticos de fama, três dos quais haviam chegado dias antes do Cairo.
Que fazer? Diante daquela ameaça procurei encorajar Beremiz, fazendo-lhe sentir que devia ter confiança absoluta em sua capacidade tantas vezes comprovada.
O calculista recordou-me um provérbio que ouvira de seu mestre Nô-Elin: "Quem não desconfia de si mesmo, não merece a confiança dos outros!".
Com pesada sombra de apreensões e tristeza entramos em palácio.
O grande e rutilante divã, profusamente iluminado, aparecia repleto de cortesãos e Xeques de renome.
À direita do califa achava-se o jovem príncipe Cluzir Schá, convidado de honra, que se fazia acompanhar de oito doutores hindus, ostentando roupagens vistosas de ouro e veludo e exibindo garbosos turbantes de Cachemira. À esquerda do trono perfilavam-se os vizires, os poetas, os cádis e os elementos de maior prestígio da alta sociedade de Bagdá. Sobre um estrado, onde se viam vários coxins de seda, achavam-se os sete sábios que iam interrogar o calculista. A um gesto do califa c Xeque Nuredin Barur tomou Beremiz pelo braço e conduziu-o, com Vida solenidade, até a uma espécie de tribuna erguida no centro do rico salão.
Um escravo negro agigantado fez soar três vezes pesado gongo de prata. Todos os turbantes se curvaram. Ia ter início a singular cerimônia.
Um imã tomou do livro Santo e leu, numa cadência invariável, proferindo lentamente as palavras, a prece do Alcorão:
- Em nome de Allah, Clemente e Misericordioso! Louvado seja o Onipotente, Criador de todos os mundos!
A misericórdia é em Deus o atributo supremo!
Nós Te adoramos, Senhor, e imploramos a Tua divina assistência!
Conduze-nos pelo caminho certo! Pelo caminho daqueles que são esclarecidos e abençoados por Ti!
Logo que a última palavra do imã se perdeu com o seu cortejo de ecos pelas galerias do palácio, o rei avançou dois ou três passos, parou e disse:
- Ualá! O nosso amigo e aliado, príncipe Cluzir-ehdin-Moubarec Schá, senhor de Laore e Deli, pediu-me que proporcionasse aos doutores de sua comitiva um ensejo de admirar a cultura e a habilidade do geômetra persa, secretário do vizir Ibraim Maluf. Seria desairoso deixar de atender a essa solicitação de nosso ilustre hóspede. E, assim, sete dos mais famosos ulemás do Islã vão propor ao calculista Beremiz questões que se relacionam com a ciência dos números. Se ele souber responder a todas as perguntas, receberá (assim o prometo) recompensa tal, que o fará um dos homens mais invejados de Bagdá.
Vimos, nesse momento, o poeta Iezid aproximar-se do califa.
- Comendador dos crentes! - disse o Xeque. - Tenho em meu poder um objeto que pertence ao calculista. Trata-se de um anel encontrado em minha casa por uma das escravas do "harém". Quero restituí-lo ao calculista antes de ser iniciada a importantíssima prova a que vai submeter-se. É possível que se trate de um talismã e eu não desejo privar o calculista nem mesmo do auxílio dos recursos sobrenaturais.
Permitiu o monarca que o anel fosse, no mesmo instante, entregue ao calculista.
Mostrou-se Beremiz profundamente emocionado ao receber a jóia. Apesar da distância em que me achava, pude notar que alguma coisa de muito grave ocorria naquele momento. Ao abrir a pequenina caixa os seus olhos brilhantes se umedeceram. Soube depois que, juntamente com o anel, a piedosa Telassim havia colocado um papel no qual Beremiz leu emocionado: "Ânimo. Confia em Deus. Rezo por ti". Estaria o Xeque Iezid a par dessa mensagem secreta?
Fez-se profundo silêncio. O sábio indicado para iniciar a argüição, ergueu-se. Era uma figura respeitável de octogenário. As longas barbas brancas caíam-lhe fartas sobre o peito largo.
- Quem é aquele ancião? - perguntei, em surdina, a um oculista de rosto magro e bronzeado que se achava ao meu lado.
- É o célebre Mohadebe Ibhague-Abner-Raman - respondeu-me. - Dizem que conhece mais de quinze mil livros sobre o Alcorão. Ensina Teologia e Retórica.
As palavras do sábio Mohadebe eram pronunciadas em tom estranho e surpreendente, sílaba por sílaba, como se o orador pusesse empenho em medir o som de sua própria voz:
- Vou interrogar-vos, ó calculista!, sobre assunto de indiscutível importância para a cultura de um muçulmano. Antes de estudar a ciência de um Euclides ou de um Pitágoras, deve o muçulmano conhecer profundamente o problema religioso, pois a vida não é concebível quando se projeta divorciada da Verdade e da Fé. Aquele que não se preocupa com o problema de sua existência futura, com a salvação de sua alma, e desconhece os preceitos de Deus, não merece o qualificativo de sábio. Quero, portanto, que nos apresenteis neste momento, sem a menor hesitação, quinze indicações numéricas certas e notáveis sobre o Alcorão, o livro de Allah!
Seguiu-se profundo silêncio. Aguardava-se com ansiedade a palavra de Beremiz. Com uma tranqüilidade que causava assombro, o jovem calculista respondeu:
- O Alcorão, ó sábio e venerável Mufti, compõe-se de 114 suratas, das quais 70 foram ditadas em Meca e 44 em Medina. Divide-se em 611 "ashrs" e contém 6236 versículos, dos quais 7 do primeiro capítulo "Fatihat" e 8 do último "Os homens". A surata maior é a segunda, que encerra 280 versículos. O Alcorão contém 46439 palavras e 323670 letras; cada uma das quais encerra dez virtudes especiais! O nosso livro sagrado cita o nome de 25 profetas! Isa (Jesus), filho de Maria, é citado 19 vezes! Há cinco animais cujos nomes foram tomados para epígrafes de cinco capítulos: a vaca, a abelha, a formiga, a aranha e o elefante. A surata 102 tem por título "A contestação dos números". É notável esse capítulo do Livro Sagrado pela advertência que dirige, em seus 5 versículos, àqueles que se preocupam com disputas estéreis sobre números que não têm importância alguma no progresso espiritual dos homens. Eis aí, para atender ao vosso pedido, as indicações numéricas tiradas do Livro de Allah! Houve, apenas, na resposta que acabo de formular, um engano que me apresso a confessar. Em vez de 15 relações citei 16!
Confirmou o sábio Mohadebe todas as indicações dadas pelo calculista; até o número de letras do Livro de Allah fora enunciado sem erro de uma unidade!
Fontes:
TAHAN, Malba. O Homem que Calculava. SP: Circulo do Livro, 1983.
Capa do Livro: http://bibliaco.zip.net
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