sábado, 17 de dezembro de 2011

Paraná em Trovas Collection - 31 - Mauricio Fernandes Leonardo (Ibiporã/PR)

Jorge Luis Borges (A Escrita de Deus)


O cárcere profundo e de pedra; sua forma de um hemisfério quase perfeito, embora o piso (também de pedra) seja algo menor que um círculo máximo, fato que de algum modo agrava os sentimentos de opressão e de grandeza. Um muro corta-o pelo meio; este, apesar de altíssimo, não toca a parte superior da abóbada; de um lado estou eu, Tzinacan, mago da pirâmide Qaholom, que Pedro de Alvarado incendiou; do outro há um jaguar, que mede com secretos passos iguais o tempo e o espaço do cativeiro. Ao nível do chão, uma ampla janela com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra (o meio-dia) abre-se um alçapão no alto e um carcereiro que os anos foram apagando manobra uma roldana de ferro, e nos baixa, na ponta de um cordel, cântaros de água e pedaços de carne. A luz entra na abóbada; neste instante posso ver o jaguar.

Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar nesta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que os deuses me destinam. Com a longa faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó.

Na véspera do incêndio da Pirâmide, os homens que desceram de altos cavalos me castigaram com metais ardentes para que revelasse o lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante de meus olhos, a imagem de Deus, mas este não me abandonou e me mantive silencioso entre os tormentos. Feriram-me, quebraram-me, deformaram-me e depois despertei neste cárcere, que não mais deixarei nesta vida mortal.

Premido pela fatalidade de fazer algo, de povoar de alguma forma o tempo, quis recordar, em minha sombra, tudo o que sabia. Gastei noites inteiras lembrando a ordem e o número de algumas serpentes de pedra ou a forma de uma árvore medicinal. Assim fui vencendo os anos, assim fui entrando na posse do que já era meu. Uma noite, senti que me aproximava de uma lembrança precisa; antes de ver o mar, o viajante sente uma agitação no sangue. Horas depois, comecei a avistar a lembrança; era uma das tradições do deus. Este, prevendo que no fim dos tempos ocorreriam muitas desventuras e ruínas, escreveu no primeiro dia da Criação uma sentença mágica, capaz de conjurar esses males. Escreveu-a de maneira que chegasse às mais distantes gerações e que não tocasse o azar. Ninguém sabe em que ponto a escreveu nem com que caracteres, mas consta-nos que perdura, secreta, e que um eleito a lerá. Considerei que estávamos, como sempre, no fim dos tempos e que meu destino de último sacerdote de Deus me daria acesso ao privilégio de intuir essa escritura. O fato de que uma prisão me cercasse não me vedava esta esperança; talvez eu tivesse visto milhares de vezes a inscrição de Qaholom e só me faltasse entendê-la.

Esta reflexão me animou e logo me intuiu uma espécie de vertigem. No âmbito da terra existem formas antigas, formas incorruptíveis e eternas; qualquer uma delas podia ser o símbolo buscado. Uma montanha podia ser a palavra de Deus, ou um rio ou o império ou a configuração dos astros. Mas no curso dos séculos as montanhas se aplainam e o caminho de um rio costuma desviar-se e os impérios conhecem mutações e estragos e a figura dos astros varia. No firmamento há mudança. A montanha e a estrela são indivíduos e os indivíduos caducam. Busquei algo mais tenaz, mais invulnerável. Pensei nas gerações do cereais, dos pastos, dos pássaros, dos homens. talvez em minha face estivesse escrita a magia, talvez eu mesmo fosse o fim de minha busca. Estava nesse afã quando recordei que o jaguar era um dos atributos do deus.

Então minha alma se encheu de piedade. Imaginei a primeira manhã do tempo, imaginei meu deus confiando a mensagem à pele viva dos jaguares, que se amariam e se gerariam eternamente, em cavernas, em canaviais, em ilhas, para que os últimos homens a recebessem. Imaginei essa rede de tigres, esse quente labirinto de tigres, dando horror aos prados e aos rebanhos para conservar um desenho. Na outra cela havia um jaguar; em sua proximidade percebi uma confirmação de minha conjectura e um secreto favor.

Dediquei longos anos a aprender a ordem e a configuração das manchas. Cada cega jornada me concedia um instante de luz, e assim pude fixar na mente as negras formas que riscavam o pêlo amarelo. Algumas incluíam pontos; outras formavam raias transversais na face inferior das pernas; outras, anulares, se repetiam. Talvez fossem um mesmo som ou uma mesma palavra. Muitas tinham bordas vermelhas.

Não falarei das fadigas de meu labor. Mais de uma vez gritei à abóbada que era impossível decifrar aquele texto. Gradualmente, o enigma concreto que me atarefava me inquietou menos que o enigma genérico de uma sentença escrita por um Deus. Que tipo de sentença (perguntei-me) construirá uma mente absoluta? Considerei que mesmo nas linguagens humanas não existe proposição que não envolva um universo inteiro; dizer o tigre é dizer os tigres que o geraram, os cervos e tartarugas que ele devorou, o pasto de que se alimentaram os cervos, a terra que foi a mãe do pasto, o céu que deu luz à terra. Considerei que na linguagem de um Deus toda palavra enunciaria essa infinita concatenação dos fatos, e não de um modo implícito, mas explícito, e não de um modo progressivo, mas imediato. Com o tempo, a noção de uma sentença divina pareceu-me pueril ou blasfematória. Um Deus, refleti, só deve dizer uma palavra e nessa palavra a plenitude. Nenhum som articulado por ele pode ser inferior ao universo ou menos que a soma do tempo. Sombras ou simulacros desse som, que eqüivale a uma linguagem e a quanto pode significar um linguagem, são as ambiciosas e pobres vozes humanas, tudo, mundo, universo.

Um dia ou uma noite – entre meus dias e minhas noites que diferença existe? – sonhei que no chão do cárcere havia um grão de areia. Voltei a dormir, indiferente; sonhei que despertava e que havia dois grãos de areia. Voltei a dormir, sonhei que os grãos de areia eram três. Foram, assim, multiplicando-se até encher o cárcere e eu morria sob este hemisfério de areia. Compreendi que estava sonhando; com um enorme esforço, despertei. O despertar foi inútil: a inumerável areia me sufocava. Alguém me disse: "Não despertaste para a vigília, mas para um sonho anterior. Esse sonho está dentro de outro, e assim até o infinito, que é o número dos grãos de areia. O caminho que terás que desandar é interminável e morrerás antes de haver despertado realmente".

Senti-me perdido. A areia me enchia a boca, mas grite: "Nenhuma areia sonhada pode matar-me nem existem sonhos dentro de sonhos". Um resplendor me despertou. Na treva superior abria-se um círculo de luz. Via a face e as mãos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os cântaros.

Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem é, afinal, suas circunstâncias. mais que um decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, eu era um encarcerado. Do incansável labirinto de sonhos regressei à dura prisão como à minha casa. Bendisse sua umidade, bendisse seu tigre, bendisse meu velho corpo dolorido, bendisse a treva e a pedra.

Então ocorreu o que não posso esquecer nem comunicar. Ocorreu a união com a divindade, com o universo (não sei se estas palavras diferem). O êxtase não repete seus símbolos; há quem tenha visto Deus num resplendor, há quem o tenha percebido numa espada ou nos círculos de uma rosa. Eu vi uma Roda altíssima, que não estava diante de meus olhos, nem atrás, nem nos lados, mas em todas as partes, a um só tempo. Essa Roda estava feita de água, mas era também de fogo, e era (embora visse a borda) infinita. Entretecidas, formavam-na todas as coisas que serão, que são e que foram, e eu era um dos fios dessa trama total, e Pedro de Alvarado, que me atormentou, era outro. Ali estavam as causas e os efeitos e me bastava ver essa roda para entender tudo, interminavelmente. Oh, felicidade de entender, maior que a de imaginar ou a de sentir! Vi o Universo e vi os íntimos desígnios do universo. Vi as origens narradas pelo Livro do Comum. Vi as montanhas que surgiram na água, vi os primeiros homens com seu bordão, vi as tinalhas que se voltaram contra os homens, vi os cães que lhes desfizeram os rostos. Vi o deus sem face que há por trás dos deuses. Vi infinitos processos que formavam uma só felicidade e, entendendo tudo, consegui também entender a escrita do tigre.

É uma fórmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais) e me bastaria dizê-la em voz alta para ser todo-poderoso. Bastaria dizê-la para abolir este cárcere de pedra, para que o dia entrasse em minha noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destruísse Alvarado, para afundar o santo punhal em peitos espanhóis, para reconstruir a pirâmide, para reconstruir o império. Quarenta sílabas, quatorze palavras, e eu, Tzinacan, regeria as terras que Montezuma regeu. Mas eu sei que nunca direi estas palavras, porque eu não me lembro de Tzinacan.

Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres. Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras, mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém? Por isto não pronuncio a fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão.

Fontes:
Pequena Antologia para se ler Jorge Luis Borges. Digital Source.

Larissa Fadel (Teia de Poesias)


RASGANDO O VERSO

Solto a palavra
me faço
abraço
de mim

Abro o verso
visto o reverso
contorno sem nexo
de mim

Canto o poema
me sinto serena
humana
de mim

Revolto olhares
concebo
alimento
de mim

Abro minha boca
e na fúria louca
grito a verdade
de mim

Danço e sorrio
construo e procrio
o melhor
de mim

Quem não entender
a porta é aberta
vou esquecer
vou aceitar
porque sei
de mim

Mas nunca mais deixo
não me permito
no ar ou escrito
o que há
o que pulsa
o que vive
EM MIM!

ROUBEI SIM

Roubei de ti o coração
e não tente tomá-lo de volta
porque ele está atravancado
no mais profundo recanto do meu ser
tal como a árvore imensa enraizada
por milênios existenciais da natureza...

Eu o roubei...
naquele instante em que me deste teu sorriso
naquele instante em que me estendeste as mãos
naquele instante em que eu já era a poesia por te querer
e num chamado eterno para seguirmos juntos
as estradas da vida... já éramos nós...

Eu o roubei...
roubei o teu coração e te digo:
não hás de tê-lo de volta
porque em troca
dei-te o meu coração repleto de amor
a minha alma iluminada por teus carinhos
a minha vida inteira
para amparar-te...
para aquecer-te...
para amar-te...
amar-te... e amar-te...
eternamente...

CUIDA-ME

Quero tirar a poeira do tempo
quero varrer as folhas do vento
limpar a casa
e caminhar

Procuro não olhar pra trás
já vivi o passado
não vou por lá mais passar

Não me culpe por olhar pra frente
sou assim, as vezes bem diferente
intrigante
talvez incoerente

Não me deixe voltar
cuida-me
deixa-me cuidar
se a felicidade é urgente
eu tenho pressa no caminhar

Não vou remoer minh’alma
quero serenidade e calma
quero esse louco desejar

Não tenho pretensão demasiada
quero a calma acelerada
amo
e quero ser amada!

Tenho fome de vida
tenho pressa de criança
e...sinceramente
o medo também me invade
feroz
atroz
covarde? ...não!
Só temperamental

Minhas horas já foram longas
agora quero devagarzinho
só o meu lugar
agora quero bem de mansinho
sorrir
estar
ficar

Tento...
Um dia quem sabe aprendo
um dia quem sabe vou acertar

Enquanto isso
cuida-me
mais uma vez
enquanto isso
deixa-me cuidar

Quero o livre passarinho
o rouxinol na árvore
a prata da lua
o ouro do sol
e quando eu estiver triste
cuida-me
e quando vc estiver triste
permita-me cuidar

Minha voz reside na minha alma
assim como minha alma se reflete em meus olhos
em minha boca
em meu corpo
me calo!
E num contraste fascinante
grito!

Sem culpa
não volto
sigo
tiro a poeira do tempo
planto novas flores
rego tons e sabores
e me precipito
quem sabe...

Por isso...urgentemente...
Cuida-me
e deixe-me cuidar!

MISTURA DO AMOR

*Essa foi uma das minhas primeiras linhas. Acho que essa poesia tem sabor. Gosto do gosto dela!

Relaxe o corpo
A mente, o coração.
Deixe as emoções cavalgarem
Pelos espaços verdejantes

Viaje...
Sinta a brisa leve da manhã
Tocar seus cabelos despenteados
Ande descalço

Prove a sensação do barro nos seus pés.
Abra os braços para abraçar o cheiro
De menta da manhã.
Deite na aurora que anuncia a vida

Cheire as rosas da imaginação
Tome o mel, deguste o hortelã
Sinta na pele o toque suave da maçã.
Beba água do riacho

Ouça o canto das águas
O sussuro das árvores
A linguagem do céu azul
Banhe-se na energia dourada do sol

Role na grama, espreguice, morra de rir.
Perca-se na magia de uma fruta madura
Magia de uva, pera, laranja, limão.
Favo de mel, eucalípto, tentação
Atalho para a cereja do coração.

Viva! Se entregue à imaginação
Sonhe com paixão
Corra sem destino entre as árvores
Viaje no sabor!
Sinta a ternura de beijar a flor.

Deixe que o sabor fresco invada sua língua
Fruta molhada, sorvete, flocos de neve
Suave beijo de licor
Boca doce, gelada, refrescante
Essa é a mistura do amor!

SOLO DE AMOR

Cala a terra arada no pó
Espera a chuva no seu lugar
Quimera que fica na solidão
Ao relento dois destinos
E um só coração.

Harmonia que tira a guerra
Gira no amarelo do girassol
Planta semente e alento
Deixa vestígios na memória do vento

Antes que o sol acorde
Lembra a saudade da noite fria
Sinta brotar o pranto
Que rega a planta de calmaria

Inunda a terra de verde
com os olhos teus
pinta de vermelho as flores
com os desejos meus

Faz solo fértil com a boca tua
Semeia o ventre e a canção
Descansa no orvalho da terra crua
Colha minha doçura com tua mão

Canta vontades antes temidas
Que eu canto a imensidão

Faz poema que risca o céu
Contorne meu corpo com pincel
Traço de bem querer
Deitada na terra nua
Só tua eu quero ser!

A ARTE DE MORRER

Essência da vida.
Alma eterna.
Mistério definitivo,
Inexprimível,
Indefinível.

Respostas rejeitadas, colapso
Pergunta irrespondível
Milagre da mente
A arquitetar perguntas que desaparecem
E no saber, a experiência existencial

A semente cresce
Botão de rosa que sabe como abrir
E o conhecimento divaga
Nas raízes da mente

Na sabedoria
Você não é mais
Dentro do inexplorado
Interior da Existência

Viável à mente
Somente o silêncio
Nenhuma pergunta,
Nenhuma resposta,
Íntima sensação sem palavras
Só o incomunicável

Espada para cortar pensamentos
E todas as respostas
Escutar de corpo e alma
Os dois infinitos

Sonata de Beethoven
O coração em nostalgia
Mesmo com rota definida
Ninguém sabe onde está

Na Auto estrada da multidão
Todos estão na mesma posição
Indo a lugar nenhum
Mas na mesma direção

E então você fica só
Sua solidão total
É necessário morrer,
Cair pra renascer

Nas fontes infinitas de vida
É a arte de morrer

Cair para o coração...
Onde não há marcos de referência
Cair num abismo
Caída de amor
Uma queda

Mas caminho sólido não há
O coração não está cartografado.
O coração treme de medo

Quebrar paredes de pedra,
Libertar-se do rochoso pensamento;
Dogmas, preconceitos.
Libertar-se da prisão

Ter uma certa descontinuidade
Olhar pra trás
E Morrer...
Sentir que foi como um sonho
Uma história que jamais fora sua
E Nascer!

TEU VERBO

Singelos gestos
perfuram a grade do meu ser
Vibrantes beijos
encarceram o que sempre fingi não querer

Invadem e transformam
mutantes sentimentos
desprezam lamentos
me faz tempestade

Corro pra dentro de mim
mas esconder não consigo
deito nas corredeiras das palavras
implorando por um abrigo

Contemplo o céu de noite quente
calo com os dedos teu beijo ardente
deixo as pegadas da minha mão
na lembrança de afeto que te dei
Atravesso a calçada da vida
na procura do que ainda não sei

Navego o ritmo dos teus olhos
transpiro teu suor
Desisto de correr

Deixo-me a ti
respiro o teu ar
E morro no instante de conjugar
o verbo incessante
na rima vibrante
desse seu jeito de amar !

Fonte:
http://www.novaordemdapoesia.com/search/label/Larissa%20Fadel

J.B.Xavier (Aconteceu no Natal)


Você conhece alguém mais, além d’Ele, capaz de escrever certo por linhas tortas? Não? Eu também não conheço. Mas confesso que por muito tempo duvidei disso! Duvidei, de tanto ver a injustiça, a dor e o sofrimento espalharem-se como um câncer. Onde estaria a justiça divina?

Hoje é noite de Natal. Estamos numa grande festa que sempre dou nessa ocasião. É hora de abrirmos os presentes. É o momento mais esperado da noite. Meu filho mais velho, recém casado, chegou da viagem de núpcias especialmente para a festa, juntamente com seus sogros. Meu filho caçula e minha filha estão um pouco chocados, devido aos acontecimentos que lhes vou narrar. Mas estão ansiosos, como todos nós, pelas surpresas que receberemos de presente.

Sou médico. Trato de pessoas, mas aos poucos passei a acreditar mais na medicina do que em qualquer coisa que não possa ser explicada à luz da ciência.

Por conta dessa falta de fé, fui contaminando, sem perceber, toda a minha família, e devido a essa “contaminação”, meus filhos – dois rapazes e uma moça - foram crescendo acreditando que não valia a pena fazer esforços pessoais para melhorar as coisas.

Ela, principalmente, era a mais intolerante com as camadas sociais menos favorecidas. Enviei-a ao Canadá, num intercâmbio cultural, onde ela viveu por um ano. Depois disso, por livre vontade, ela permaneceu no país por mais quatro.

Quando enfim, ela regressou, percebi que nada havia mudado em seu comportamento, ao contrário, o contato com uma cultura mais evoluída acabou por deixa-la ainda mais irascível. Mesmo eu, que nunca fui um sujeito engajado em questões sociais, achava que ela exacerbava de vez em quando em suas opiniões de apoio a certas formas de racismo e à exclusão social. Não vale a pena comentar aqui seus argumentos – todos técnicos e lógicos – com os quais defendia suas idéias.

A verdade é que comecei a me preocupar seriamente com o desenvolvimento de sua personalidade, e no fundo de meu coração, comecei a desejar que algo a fizesse mudar sua visão do mundo. Mas eu sabia também, que nada a faria mudar suas idéias.

Uma das coisas que estava tornando difícil nossa convivência com ela, era a hostilidade que ela demonstrava em relação a uma empregada doméstica que tínhamos. Era uma moça de uns vinte e cinco anos, portanto, cinco apenas, mais velha que minha filha.

Desde que regressara do Canadá, ela já me pedira várias vezes que dispensasse a moça, mas eu jamais faria isso, porque ela estava conosco há um bom tempo e era de inteira confiança.

- Em negros não dá para confiar – repetia ela constantemente – mais cedo ou mais tarde, ela vai aprontar com vocês!

Então, há uma semana do Natal, quando o clima em minha casa era todo de expectativa pela festa que daríamos para toda a família, aconteceu o inevitável: Minha filha desentendeu-se com a empregada. Era por volta de umas oito horas da noite. Estávamos eu, minha esposa e meu filho caçula na sala, tratando dos últimos detalhes da festa natalina, quando ouvimos gritos vindos do quarto dela, no andar superior.

- Eu não sou ladrona! Eu não sou ladrona! Eu não sou ladrona! – gritava a doméstica, chorando, enquanto minha filha a mandava calar a boca em altos brados.

Corremos todos escada acima, e encontramos a moça descendo a escadaria, correndo e chorando. Subimos até o quarto e vimos nossa filha atirando os travesseiros contra a parede, enraivecida, enquanto gritava.

- Ladra, sua burra! É ladra! Nem falar direito você sabe! Você-é-uma-ladra! – gritou ela frisando cada palavra!

Minha esposa tentou acalmá-la, mas ela livrou-se do abraço da mãe e saiu porta afora, ainda gritando.

- Aquela safada roubou meu brinco de brilhantes que ganhei na formatura, no Canadá! Eu o guardava no estojo dentro de meu guarda roupas, e nem o estojo está lá! Já revirei o quarto inteiro! Há uma semana ainda mexi nele. Eu falei para o Zilo que eu usaria os brincos na festa de Natal! Droga! – Xingou ela, enquanto saía batendo violentamente a porta.

“Zilo” é o apelido de meu filho mais velho. Ele é artesão e possui uma pequena loja onde fabrica jóias personalizadas. Ele se casara recentemente e estava viajando. Só voltaria no dia 23 à noite, para a festa.

- Não acredito que isto esteja acontecendo! – disse minha esposa – e na véspera do Natal!

- Duvido que a Zilda tenha feito isso – disse o caçula – nunca sumiu nada aqui de casa...

- Sempre há uma primeira vez – disse eu – demonstrando claramente onde estava a origem do comportamento de minha filha.

O resultado de toda essa confusão foi que ficamos sem doméstica justamente quando mais precisávamos dela. A moça foi embora sem nem mesmo se despedir. Sequer o saldo de seu salário ela reclamou, o que nos induziu a pensar que talvez nossa filha tivesse razão, afinal de contas. Com um par de brincos de diamante para vender nas “bocas”, quem precisa do resto de um mísero salário?

Três dias se passaram depois desse incidente, durante os quais todos nós reviramos a casa inteira à procura dos brincos, sem resultado. Tive que admitir que eles não estavam na casa, e meio a contra gosto, fui forçado a acompanhar minha filha à uma delegacia de polícia, para dar queixa do roubo, já que se tratava de uma peça bastante valiosa.

Eu estava particularmente irritado. Afinal, era dia 23 de dezembro! Eu estava irritado não pelo ódio à empregada que minha filha demonstrava, que aliás, eu considerava um pouco exagerado, especialmente às vésperas do Natal, mas pela perda do “clima” natalino, que se fora de minha casa. Chegamos a considerar o cancelamento da festa, mas decidimos mantê-la para não piorar ainda mais o baixo-astral.

Então, fomos, ela, o caçula e eu à delegacia, para registrar um B. O .

- Ainda não acredito que a Zilda tenha feito isso!

- Você é um ingênuo. Acredita demais nas pessoas. Você não sabe nada ainda da vida – disse minha filha ao irmão – como se seus vinte anos de idade fossem já uma larga experiência de vida. Mas logo, logo, eu saberia que mesmo meus cinqüenta anos de idade – ou se setenta eu tivesse - nada contam como experiência de vida, se passarmos a existência repetindo as mesmas idéias dos vinte anos.

O caminho para o qüinquagésimo DP nos forçava a passar pela Estrada das Lágrimas, e, por conseguinte, praticamente por dentro de Heliópolis, a maior favela paulistana e a maior também da América Latina.

- Detesto esse caminho – disse minha filha – É pobreza por todo lado! Ô, país miserável, esse! Um bando de safados ricos no poder, e o povo morando em tocas, como bichos! Acho que uns duzentos anos de desenvolvimento separam o Brasil do Canadá. E os dois países foram descobertos ao mesmo tempo!

Não comentei nada para não criar polêmica e também porque no fundo eu concordava com tudo! Mas meu filho estava irredutível.

- A Zilda não faria isso!

- Vamos levar a polícia à casa dela – disse minha filha – e aí você vai ver aquela negrinha pilantra entregar o jogo!

Eu ia dizer qualquer coisa, mas o semáforo fechou e tive que parar. À minha frente havia uns cinco carros.

- Lá vem aquele bando de moleques encher o saco, tentando limpar o pára-brisas – disse minha filha.

Mas os moleques ficaram nos carros à nossa frente. Então, um menino negro, de uns oito anos aproximadamente, diferente de todos os outros, saiu de baixo de uma marquise, e, com passos vacilantes, veio até à janela do nosso carro, onde ficou a olhar-me intensamente, em silêncio.

- Não temos dinheiro! - Disse minha filha – Vá embora!

Levantei a mão pedindo a ela que parasse de falar. Algo no garoto me chamara a atenção. Ele não se vestia de andrajos, como os outros meninos. Seus cabelos não estavam sujos, e seus dentes eram bem cuidados e limpos.

- Pai! Não dê trela para essa gente! Ele deve estar nos distraindo, ou talvez marcando nosso carro com chiclete para que outros nos assaltem mais adiante.

O menino continuava a me olhar intensamente, de maneira perturbadora, e de repente, duas lágrimas escorreram de seus olhos.

- O que você quer? – perguntei, enquanto olhava em volta para ver se não haveria assaltantes.

O menino então baixou aquele olhar que me queimava a alma, e entre soluços, disse:

- Eu não sei pedir esmolas. Minha mãe nunca me deixou fazer isso...

- E por que você está fazendo? – Perguntei.

- Por que ela me pediu...ela está doente...não consegue caminhar...e não temos dinheiro nenhum...

Voltei a analisar o garoto. Ele calçava sapatinhos e meias limpas. Sua camiseta trazia uma foto da seleção brasileira de futebol. Essas camisetas não eram baratas, como não era barata, também, a bermuda com grandes bolsos, que ele usava. Sua mãe cuidava bem dele, sem dúvida. Não deviam ser assim tão pobres. Mas a menção à doença despertara meu instinto médico, e este falou mais alto.

O semáforo abriu. Intrigado, eu fiz então uma coisa inexplicável, e disse, sem pensar direito em minhas palavras.

- Entre no carro!

- Pai! Você ficou louco?

- Fique quieta, por favor. Esse garotinho não é um mendigo! Entre! Vamos ver sua mãe!

O garoto enxugou as lágrimas e entrou no carro, sentando-se no banco de trás, ao lado de meu filho.

- Onde você mora? – perguntei.

- Naquela rua – apontou.

- Pai! Isso é um golpe! Vão nos assaltar! – gritou minha filha em pânico.

Por via das dúvidas, passei direto pela rua que o garoto apontou e dei uma longa volta, de várias quadras, chegando ao local onde ele morava pelo outro lado da rua. Sei lá que estranha força me obrigava a correr esse risco desnecessário!

Desembarcamos, eu e meu filho, e seguimos o garotinho rua acima. Minha filha decidira ficar no carro, mas o medo de ficar sozinha foi maior e logo ela estava a caminhar resmungando, ao nosso lado.

O garotinho nos levou por uma servidão, um estreito caminho, que margeando um muro antigo, ligava a rua aos fundos de uma casa velha. Chegamos então a um pequenino átrio sem nenhum atrativo, mas bem cuidado. No canto do terreno, havia uma meia-água feita de tijolos sem argamassa. Uma cozinha e um quartinho, separados por uma cortina de plástico vermelho, era tudo no que consistia a casa. Havia louça suja numa pequenina pia, mas no geral as coisas estavam relativamente em ordem. Eu estava surpreso com a pobreza do local, mas também com o cuidado e a ordem em que as coisas na casa estavam.

- Onde está sua mãe? – perguntei.

Sem responder, o garotinho afastou a cortina e apontou para uma cama, onde dormia uma pessoa, coberta com um grosso cobertor, apesar do calor.

Com o instinto médico à flor da pele, percebi que a coisa era séria. Entrei no quarto acompanhado de minha filha, porque pedi que o caçula ficasse do lado de fora, cuidando do garotinho.

A mulher estava deitada de lado, de costas para nós, e respirava pausadamente, com o rosto iluminado pela luz que vinha da pequenina janela.

Ajudado por minha filha, virei-a sobre a cama. Então minha filha deu um grito e recuou como se tivesse visto um fantasma. A mulher sobre a cama era Zilda, nossa ex-empregada doméstica. Em sua mão direita ainda tinha a gilete com a qual cortara o pulso esquerdo. Arranquei o cobertor de cima dela e vimos a grande mancha de sangue que empapava os lençóis.

- Baixe o banco do carro! - Gritei instantaneamente para meu garoto que esperava fora da casa. – É uma emergência! Ela cortou os pulsos!

Enquanto o caçula disparava para o carro, rasguei em tiras a cortina de plástico, e improvisei um torniquete no braço de Zilda. Ela havia perdido muito sangue e estava pálida. Seu corpo estava flácido e mais frio do que deveria. Essa hipotermia muito me preocupou, pois talvez tivéssemos chegado tarde demais. Tomei-a nos braços e saí correndo da casa, enquanto gritava para minha filha, que estava em choque.

- Faça alguma coisa! Traga o garoto! Vamos para o hospital de São Caetano! É o mais próximo daqui!

Usei minha autoridade médica e meu nome bem conhecido para que ocorresse o pronto atendimento, sem muitas formalidades, e internei Zilda, por minha conta, na UTI do hospital, onde ainda se encontra, graças a Deus, já fora de risco de vida. Quanto ao garotinho, eu o levei para a casa de uma de suas tias, depois de dar, a ele e aos seus primos, muitos presentes.

Minha filha ficou chocada por saber que Zilda atentara contra a própria vida. Na verdade todos nós ficamos chocados ao saber que ela mantinha um filhinho de oito anos! Ela nunca nos dissera nada sobre o assunto, provavelmente por medo de ser demitida. Pobre gente, que, como disse Chico Buarque em sua música, “vai em frente, sem nem ter com quem contar”.

Comovi-me ao ver o esmero com que ela cuidava daquele filho, com os bons princípios que ela lhe transmitia e com o esforço que devia fazer para mantê-lo no caminho correto, mesmo vivendo num gueto de uma favela que é o berçário de futuros delinqüentes.

Minha filha, entretanto, mesmo chocada, não perdoara Zilda pelo roubo. Tentando parecer durona, ela frizou:

- Uma coisa não tem nada a ver com outra. Ladra é ladra e quem tenta se matar mostra que não tem nem moral nem coragem para encarar as conseqüências de seus atos. Vou denunciá-la mesmo assim, porque quero meu brinco de volta!”

O brinco! Nessa confusão até havia me esquecido dele! Nem tentei dissuadi-la de denunciar Zilda, porque eu também tinha dúvidas se isso deveria ser feito ou não.

Em todo caso, concordamos em nada dizer ao Zilo, na noite de Natal, para não estragar mais ainda o “clima” da ocasião e sua felicidade de recém casado. Além disso, eu achei que minha boa ação do Natal já estava feita. Mas sabe-se lá quão poderosos são os mecanismos que entram em funcionamento para ensinar-nos as grandes lições!

Então fui ao piano e comecei a tocar Noite Feliz – uma das duas únicas músicas que sei tocar, a outra é Parabéns a Você – e todo mundo começou a trocar presentes e se abraçar.

Meu caçula foi para o centro da sala e abriu seu presente: A última palavra em vídeo game que eu lhe comprara no exterior. Fez uma festa ao ver o presente.

Na vez de minha filha, ela ergueu o braço, tendo um pequeno embrulho na mão.

- Para os recém casados! - Disse ela.

A esposa de Zilo abriu o presente. Era um lindo camafeu de madrepérola e marfim feito por uma tribo de índios do Canadá. Meu filhão fez a maior festa, e disse, dirigindo-se à irmã:

- Rebusquei minha loja, mas o que se pode dar a uma “jóia” como você? Fiz o que foi possível. Veja se gosta.

Isto dizendo, ele lhe entregou uma linda caixa de onde minha filha retirou uma pulseira lindíssima, uma gargantilha com três pequenos brilhantes e...os brincos desaparecidos! Todas as peças formavam um belíssimo conjunto, umas com as outras.

- Desculpe por ter levado seus brincos emprestados por alguns dias e por não ter conseguido recoloca-los no lugar a tempo. Tinha que ser uma surpresa, por isso não lhe disse nada. Eu precisava deles para fazer as outras peças......Espero que você não tenha ficado chateada por isso…

Fonte:
http://www.jbxavier.com.br/visualizar.php?idt=7466

Cecília Meireles (Compras de Natal)


A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades. Enche-se de brilhos e cores; sinos que não tocam, balões que não sobem, anjos e santos que não se movem, estrelas que jamais estiveram no céu. As lojas querem ser diferentes, fugir à realidade do ano inteiro: enfeitam-se com fitas e flores, neve de algodão de vidro, fios de ouro e prata, cetins, luzes, todas as coisas que possam representar beleza e excelência. Tudo isso para celebrar um Meninozinho envolto em pobres panos, deitado numas palhas, há cerca de dois mil anos, num abrigo de animais, em Belém.

Todos vamos comprar presentes para os amigos e parentes, grandes e pequenos, e gastaremos, nessa dedicação sublime, até o último centavo, o que hoje em dia quer dizer a última nota de cem cruzeiros, pois, na loucura do regozijo unânime, nem um prendedor de roupa na corda pode custar menos do que isso.

Grandes e pequenos, parentes e amigos são todos de gosto bizarro e extremamente suscetíveis. Também eles conhecem todas as lojas e seus preços — e, nestes dias, a arte de comprar se reveste de exigências particularmente difíceis. Não poderemos adquirir a primeira coisa que se ofereça à nossa vista: seria uma vulgaridade. Teremos de descobrir o imprevisto, o incognoscível, o transcendente. Não devemos também oferecer nada de essencialmente necessário ou útil, pois a graça destes presentes parece consistir na sua desnecessidade e inutilidade. Ninguém oferecerá, por exemplo, um quilo (ou mesmo um saco) de arroz ou feijão para a insidiosa fome que se alastra por estes nossos campos de batalha; ninguém ousará comprar uma boa caixa de sabonetes desodorantes para o suor da testa com que — especialmente neste verão — teremos de conquistar o pão de cada dia. Não: presente é presente, isto é, um objeto extremamente raro e caro, que não sirva a bem dizer para coisa alguma.

Por isso é que os lojistas, num louvável esforço de imaginação, organizam suas sugestões para os compradores, valendo-se de recursos que são a própria imagem da ilusão. Numa grande caixa de plástico transparente (que não serve para nada), repleta de fitas de papel celofane (que para nada servem), coloca-se um sabonete em forma de flor (que nem se possa guardar como flor nem usar como sabonete), e cobra-se pelo adorável conjunto o preço de uma cesta de rosas. Todos ficamos extremamente felizes!

São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes os estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias.

Durável — apenas o Meninozinho nas suas palhas, a olhar para este mundo.

Fonte:
Quatro Vozes. RJ: Editora Record, 1998.

Trova Ecológica 61 - Wagner Marques Lopes (MG)

William Shakespeare (A Comédia dos Erros)


A Comédia dos Erros, a mais curta das peças de William Shakespeare, é inspirada no comediógrafo romano Plauto e gira em torno das confusões causadas por dois pares de gêmeos. É considerada pelos pesquisadores como a primeira peça de Shakespeare, com sua estréia nos palcos tendo ocorrido provavelmente em 1594.

Os erros a que se refere o título são enganos provocados pelas pessoas que conversam alternadamente com um gêmeo e o outro, sendo um residente de Éfeso, onde se passa a ação, e o outro, estrangeiro. Os gêmeos são idênticos e têm ambos o mesmo nome: Antífolo. As confusões multiplicam-se, assim como a comicidade da trama, porque há mais um par de gêmeos idênticos em cena, os irmãos que atende pelo nome de Drômio.

Entretanto, A Comédia dos Erros não deve ser confundida com uma comédia leve. Muito ao gosto de Shakespeare, ainda que em sua estréia como dramaturgo, os diálogos introduzem considerações sobre a condição feminina e sobre a condição servil; há credores e devedores e a honra de cada um; discute-se o lugar do ciúme no casamento; existe uma autoridade política que procura administrar justiça com compaixão; mais importante ainda, há a moderna busca pela identidade própria.

Tudo acontece quando dois irmãos gêmeos são seprados na infância e por ironia passam a ter o mesmo nome: Menecmo.

A ação se passa anos mais tarde, em Epidamno, cidade da Ilíria (hoje Albânia), aonde chega um dos Menecmos à procura de seu irmão, o outro Menecmo, que mora na cidade. Enquanto um, que acaba de chegar, é sucessivamente confundido pela amante do outro (que o explora), por Vassourinha, um vagabundo, que o delata a esposa do outro e ao sogro. Mas quem sucessivamente sofre punições pelo o que não fez é o outro Menecmo.

E assim, de engano em engano, a peça caminha para o seu final feliz, quando os irmãos se encontram e se reconhecem.
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Sinopse

Em Éfeso, um comerciante de Siracusa, chamado Egeu, é condenado à morte por ter cruzado a fronteira entre as duas cidades rivais. Próximo da hora da execução, Egeu conta a sua história a Solino, o duque de Éfeso. Vinte cinco anos antes Egeu e a sua família - a sua mulher, os dois filhos gêmeos e ainda dois escravos também gêmeos - tinham-se separado em consequência de um naufrágio. Um dos filhos e um dos escravos tinham permanecido com Egeu, mas tinham perdido o rasto dos outros e Egeu deslocara-se a Éfeso na esperança de os encontrar.

Comovido, o duque substitui a pena de morte por um resgate de mil marcos. Sem que Egeu saiba, também o filho e o escravo (Antífolo de Siracusa e Drômio), que sempre viveram com ele, se encontram na cidade com o mesmo objetivo o que vai provocar uma série de mal-entendidos.

Adriana, casada com Antífolo de Éfeso, confunde-o com o irmão de Siracusa e arrasta-o para casa. Pouco depois Antífolo de Éfeso vê-se impedido de entrar na sua própria casa. Entretanto Antífolo de Siracusa apaixona-se pela irmã de Adriana, Luciana, que fica chocada com o comportamento daquele que ela julga ser o seu cunhado.

Para complicar ainda mais a situação Antífolo de Éfeso é preso por se recusar a pagar uma corrente de ouro que comprara, mas que nunca chegara a receber por ela ter sido entregue, por engano, ao seu irmão.

Estranhando o comportamento do marido, Adriana pensa que ele enlouqueceu e recorre a um exorcista, o professor Pinch. Quanto a Antífolo de Siracusa e ao seu escravo, julgando que a cidade está enfeitiçada tentam fugir mas, ao sentirem-se ameaçados, refugiam-se numa abadia.

Quem acaba por resolver toda esta confusão é a abadessa, Emília, que é, nem mais nem menos, que a esposa desaparecida de Egeu. No final tudo acaba bem. Adriana reconcilia-se com o marido, o duque perdoa Egeu que se reúne com a esposa e Antífolo de Siracusa tenta a sua sorte com Luciana.

Fontes:
http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/a/a_comedia_dos_erros
http://pt.shvoong.com/books/1620628-comédia-dos-erros/

Cecy Barbosa Campos (Inter-Relação Cômico-Trágica em A Comédia dos Erros e Os Dois Menecmos)


Dificuldades na distinção entre comédia e tragédia. Conceitos de valorização de ambas. As teorias de Moelwyn Merchant sobre a presença de elementos cômicos e trágicos numa mesma obra, agindo como mecanismo de equilíbrio da tensão. A inter- relação cômico-trágica em A comédia dos erros, de Shakespeare e em Os dois Menecmos, de Plauto.

1. INTRODUÇÃO

Pretendemos neste estudo fazer uma abordagem da peça A comédia dos erros, de William Shakespeare, considerando a inter-relação cômico-trágica nela presente. Segundo Moelwyn Merchant, tanto o humor é indispensável ao alívio da tensão trágica, levando a novos índices de elevação de intensidade da dor, como momentos trágicos ajudam a arrefecer na comédia, os espasmos de riso que serão suscitados novamente, em manifestações de alegria indispensáveis à comédia..

Modernamente, o Teatro do Absurdo apresenta a característica de lidar com o cômico e o trágico ao mesmo tempo. A falta de objetivos na vida e a dificuldade de comunicação entre os seres humanos, aparecem simultaneamente a momentos cômicos, como acontece em Waiting for Godot, de Samuel Beckett.

Shakespeare, examinando de maneira sensível as relações humanas, as virtudes e os defeitos comuns ao homem, é capaz de apresentar um personagem cômico dentro de uma atmosfera sombria e de tratar a angústia humana com comicidade, pelas situações improváveis que é capaz de criar e através de personagens que levam o espectador ao riso, especialmente por suas falas irônicas, satíricas ou imbuídas de sarcasmo. Entretanto o riso que daí surge, não é um ríctus vazio, mas uma reação consciente e reflexiva, que conduz à análise dos graves problemas que atingem a humanidade.

2. TRAGÉDIA E COMÉDIA

É muito difícil fazer distinções precisas ou estabelecer o momento exato em que o trágico se transforma em cômico e vice-versa. É próprio da dualidade do ser humano que ele apresente características boas e más, tendências por vezes liberais e em outras conservadoras, momentos de alegria em que se veja acometido pela tristeza. Da mesma forma é difícil estabelecer uma distinção nítida entre Tragédia e Comédia. Tomando duas peças de Shakespeare, Hamlet e Sonho de uma noite de verão, não teremos dúvidas em enquadrá-las como tragédia e comédia, respectivamente, reforçando a afirmação de Byron, citada por Merchant, de que "Todas as tragédias terminam com morte/ Todas as comédias terminam com um casamento"(1) Entretanto, somos forçados a reconhecer que nem todas as tragédias e comédias terminam da mesma forma.

Uma das mais claras distinções entre a tragédia e a comédia, parece ser a falta, na segunda, daquela dimensão metafísica que é de principal importância na primeira. Também o fato de que o herói trágico, se não perde a vida no final, tem implicações trágicas e catastróficas em sua luta com o destino. Isto fica sem lugar na comédia: aqui o destino é substituído por uma oportunidade mais trivial, ou mais impessoal; e se, ao personagem cômico é permitido fazer reflexões filosóficas, estas são feitas como comentários sobre o que a vida nos reserva e são muito diferentes do que se refere ao destino trágico.

Outra maneira de distinguir tragédia e comédia, está sintetizada no aforismo de Horace Walpole, também citado por Merchant :"O mundo é uma comédia para aqueles que pensam, uma tragédia para aqueles que sentem"(2).

Uma conseqüência desta distinção entre comédia e tragédia, entre pensar e sentir, reside no fato de que o enredo cômico é, às vezes, mais intrincado que o enredo trágico e menos plausível. Muitas vezes arbitrário, subordina-se aos trabalhos do acaso ou da sorte, fazendo com que o espectador se delicie com cada incidente inesperado ou que pareça impossível. O enredo cômico lança os personagens em situações inusitadas que lhes permitam mostrar sua loucura ou confusão. Isto acontece com freqüência em A comédia dos erros, de Shakespeare, onde a existência de dois irmãos gêmeos e de seus dois criados, também gêmeos, criam momentos bem pouco verossímeis. As confusões que surgem a partir do encontro dos quatro, são justamente resultantes do inverossímil da situação.

Na comédia muitas vezes há, não somente acontecimentos improváveis, mas também mudança de caráter ou de nível social - uma pessoa pouco inteligente torna-se repentinamente brilhante, o mau se degenera e o pobre transforma-se em dono de vultosa fortuna, culminando estas reviravoltas do destino com uma festa de casamento ou celebração final. É um recomeço, o surgimento de uma nova sociedade, a abertura de possibilidades, o início de uma outra vida com diferentes perspectivas.

Apresentando uma visão de mundo diversa daquela apresentada pela tragédia e mostrando variados estados psicológicos, a comédia tem a função de provocar o riso e chamar atenção para as incongruências e alegrias da vida, desenvolvendo o senso de humor.

3. O DRAMA CÔMICO

Originando-se dos festejos dionisíacos, nos quais os participantes cantavam, dançavam e faziam brincadeiras zombeteiras enquanto levavam a imagem de Dionísio, a comoedia associou-se logo à idéia de uma forma teatral que apresentava o homem numa perspectiva diferente, com seus defeitos e culpas.

Os dramaturgos romanos Plauto e Terêncio foram os agentes multiplicadores desta concepção mas o impulso criador veio de Atenas, com a Comédia Antiga, da qual Aristófanes foi o representante principal. Embora a questão da influência grega em ambos seja muito discutida, é inegável que, cada um a seu modo, apresenta características próprias que permitem à comédia latina ser reconhecida e respeitada.

De Plauto, possivelmente nascido em 254 AC, sabe-se que foi primeiramente ator, talvez escravo de um grupo de teatro ambulante, tendo passado a autor com extrema sensibilidade para saber o que agradaria a audiência. Quanto a Terêncio, nascido em 185 AC, como escravo, teve sua inteligência reconhecida e recebeu alforria, tornando-se um autor de linguagem refinada, banindo da comédia aquilo que considerava grosseiro e vulgar. Tanto Plauto quando Terêncio apresentam semelhanças em relação ao uso de convenções do teatro greco-romano, complementando a ação pelo uso de solilóquios, comentários simultâneos, saídas e entradas oportunas. Por outro lado, eles se diferenciam pelo uso que fazem do possível e do improvável. Terêncio atém-se muito mais que Plauto àquilo que se subordina à razão e à probabilidade.

É interessante que, justamente pela ênfase dada ao improvável, a comédia plautina vai se colocar lado a lado com a comédia shakespeariana. A presença de Plauto, através das peças Anfitrião e Os dois Menecmos faz-se sentir em A comédia dos erros de Shakespeare.

4. OS DOIS MENECMOS E A COMÉDIA DOS ERROS

A comédia de Plauto trata de confusão de identidades e tem o aspecto visual e a ação física como pontos básicos para a encenação. Há uma complicada estória de gêmeos que se separam aos sete anos, em virtude de um naufrágio. Vivendo em lugares distantes, sem notícias um do outro, aquele que permanece em companhia do pai assume, estranhamente, o nome do irmão desaparecido: Antífolo. Este fato vai complicar mais o enredo a partir do momento em que, já adultos, os dois se encontram na mesma cidade. Sendo absolutamente idênticos, a confusão é completa, pois nem mesmo a mulher e a amante de um deles, são capazes de distingui-los. Criados e outros personagens também não notam a diferença entre os indivíduos que respondem pelo mesmo nome. O “nonsense” da situação estende-se por toda a peça e o clímax da comicidade é atingido no momento em que a irascível esposa de um dos Menecmos é envolvida. A discórdia conjugal é aguçada pela intromissão do parasita Peniculos que denuncia as infidelidades daquele a quem explora. Parecendo ser um personagem importante para a ação, desaparece logo após dar esta contribuição para o estabelecimento do conflito. Neste momento, a confusão estabelecida já é tão grande e os mal entendidos tão numerosos, que ninguém sente falta de sua presença.

Toda esta mistura de confrontos físicos com a negação da razão culmina numa luta final em que todos se envolvem e que coloca a peça numa posição mais próxima da farsa do que da comédia.

Pertencente à fase de iniciação literária de Shakespeare, A comédia dos erros tem como enredo a triste estória do naufrágio de Egeu, que no acidente perde mulher e filho. O humor resulta de equívocos e trocadilhos duplicados pela existência de dois criados gêmeos que servem aos dois Antífolos, de Éfeso e de Siracusa. Assim como os patrões, os criados gêmeos também têm o mesmo nome, atendendo ambos por Drômio. Shakespeare coloca ainda duas mulheres em contraste significativo. Adriana, a esposa ciumenta e independente que reage contra a submissão feminina e Luciana, que considera os homens seres superiores. .

O enredo se expande e os intrincados conjuntos de relacionamentos pessoais tornam-se parte essencial da concepção cômica de Shakespeare. Entretanto, preocupado com a elaboração de um enredo de intriga, o dramaturgo inglês buscava um efeito mais complexo, qual seja o estabelecimento da ação cômica num quadro que se forma a partir de uma atmosfera notadamente séria.

A peça começa com Egeu, mercador de Siracusa, explicando o motivo de sua presença em Éfeso: a busca de mulher e filho há longos anos desaparecidos . Sua figura trágica e solitária leva o Duque a manifestar compaixão sem, entretanto, revogar a pena de morte a que Egeu fora condenado. Paralelamente à figura patética do velho mercador que sem amigos e sem dinheiro está condenado a morrer ao final do dia, os problemas de troca de identidades e o desenvolvimento das relações pessoais e comerciais instauram o cômico. Há, assim uma união perfeita de elementos aparentemente disparatados. A vida é representada não em situação normal, mas no absurdo de situações que são às vezes tristes e alegres simultaneamente.

Em momentos de grande lirismo já é possível entrever a genialidade do autor que começa a despontar. Apesar de alguns críticos reclamarem da irrealidade do tema, é por outro lado necessário admitir que a aceitação de um conjunto de circunstâncias absurdas é essencial à farsa e que este foi o tipo de entretenimento pretendido por Shakespeare.

5. A COMÉDIA SEGUNDO MERCHANT

Merchant analisa a mistura de gêneros e afirma que, para ser possível estudar profundamente a comédia, é necessário, primeiramente explorar suas incursões dentro da tragédia, começando com o teatro grego. Verifica que também no teatro shakespeariano o cômico acha-se presente, com muita freqüência, nas peças trágicas, servindo de alívio à tensão apresentada.

Merchant, ao falar do efeito que a intromissão do cômico exerce como intensificador do momento trágico, sugere que se use a intromissão trágica para diminuir a intensidade do cômico e depois incrementá-la novamente. É o que acontece em A comédia dos erros e em outras peças de Shakespeare. Algumas vezes, a seriedade de assuntos enfocados na comédia leva à insegurança quanto ao modo de classificá-las. Este fato é resultante da grande dificuldade de demarcaçao dos limites entre o trágico e o cômico, pois

Há momentos em que o espírito cômico invade um trabalho de predominante visão trágica, ou, inversamente, um lampejo de tragédia obscurece um trabalho de predominante comicidade; é aí que a demarcação entre tragédia e comédia não parece fácil de se definir; é quando [...] a comédia parece alcançar sua maior estatura não em independência mas em associação com as visões mais sombrias da tragédia. (3)

Desta forma, muitas das comédias shakespearianas, assim denominadas devido a um enquadramento feito a partir da resolução dos conflitos e das cenas finais, deixam o espectador/leitor, em dúvida a respeito da adequabiliade desta denominação, tão perto ficam da tragédia e da comédia ao mesmo tempo.

6. CONCLUSÕES

À primeira vista, lendo ou assistindo A comédia dos erros, temos a sensação de que Shakespeare graceja, faz brincadeiras tolas e que seu único objetivo através das confusões absurdas entre personagens que se duplicam é fazer rir, mas a modificação das fontes que serviram de inspiração para a peça dá-lhe um novo tom. Shakespeare chama a atenção para um problema sério que é a perda ou troca de identidades e as consequências daí advindas, como a desintegração familiar e social. Ao final, redescobrindo o seu próprio “eu” os personagens reassumem seu lugar no mundo, a ordem é restaurada e a violência é substituída pela delicadeza do amor. A ação cômica em toda sua vitalidade conduz a uma espécie de ressurreição, de renascimento, de restauração.

Os paradoxos da irracionalidade estão presentes nos incidentes que se nos apresentam e mesmo numa peça considerada menos importante na gloriosa carreira de Shakespeare, podemos observar a perspicácia do autor na análise do ser humano.

A comédia dos erros não se limita a propiciar uma descarga de energia psíquica liberada através do riso aliviando o espectador das tensões e inibições do mundo em que vive. Ela também induz à simpatia e a sentimentos de compaixão e solidariedade para com os problemas que nos cercam, levando-nos a compreender a importância da paciência e da abnegação para que a ordem possa se impor à desordem e para que o amor e a harmonia nas relações humanas possam ser restaurados no final.

Transcendendo à farsa, Shakespeare demonstrou com A comédia dos erros, que uma grande alegria é melhor sentida pela sua contraposição ao sofrimento, definindo um caminho para as comédias que viria a escrever posteriorrmente.

7. BIBLIOGRAFIA

1- BENDER, Ivo C. Comédia e riso: uma poética do teatro cômico. Porto Alegre, Editora
UFRGS/PURS. 1996.
2- CANOVA, Marie-Claude. La comédie. Paris, Hachette. 1993.
3- HOWARTH, W.D. (ed.). Comic drama. London, Methuen. 1978.
4- MERCHANT, Moelwyn. Comedy. London, Methuen. 1972.
5- NOGUEIRA, Goulart. História breve do teatro. (I) Lisboa, Editorial Verbo. 1962.
6- PLAUTO. Os dois Menecmos. Versão de Carlos Alberto L. Fonseca. Coimbra, Instituto
Nacional de Investigação Científica. 1983.
7- PLAUTO e TERÊNCIO. A comédia latina. Trad. Agostinho da Silva. Rio de Janeiro,
Ed. Tecnoprint (Ediouro). s.d.
8- SHAKESPEARE, William. The comedy of errors. New York, Washington Square
Press. 1963.
9- TRAVERSI, Derek. An approach to Shakespeare (I). London, Hollis and Carter. 1968.

8- NOTAS

As citações foram traduzidas pela autora deste trabalho, de acordo com a edição mencionada na bibliografia.
1-BYRON, APUD MERCHANT(1972:1)
2-WALPOLE, APUD MERCHANT (1972:2)
3-MERCHANT(1972:48)

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Decimar Biagini (Poesias Avulsas)


POÉTICA DIVAGANTE HODIERNA

Olhei para o canto inferior da tela
Naqueles dias de navegador intrépido
Lá estava o calendário da virtual janela
Mais um ano passando rápido

Na info-maré não se utiliza barco a vela
Nem cinzas ao mar, ou pomposa lápide
A poesia é uma utopia de “a vida é bela”
Mas será que temos aproveitado ela!

Que essência busca o poeta moderno?
Já não se morre de tuberculose
Sequer há rascunho ou algum caderno
Tampouco há tinteiro aqui perto
Aboliram o uso indiscriminado da celulose

Pouco a pouco o mundo inteiro ficará descoberto
Em um único clique de um curioso esperto
Enquanto alguns poetas morrem de overdose
E algumas coisas mudaram por certo
A velha semântica leva a mesma pitada de psicose!

LUZ PRÓPRIA

Todo pai
Vive uma tensão
Logo cai
A angústia do coração

Nem todo pai
Ama sua criação
E assim se vai
A grande contradição

Entre rimas de ai
Entre rimas de ão
O verso então sai
Sem deixar nenhuma lição

Cada filho traz consigo
Uma luz própria cintilante
Um anjo da guarda amigo
E Deus, as vezes distante
Mantém o filho esquecido
Como um enterrado diamante

Até que um belo dia
O mineiro amor, num instante
O ensina a brilhar com alegria
Eis a graça, o mistério triunfante!

NUMA PRAÇA

Por longos anos deixei de visitar aquele ambiente lúdico
Muitos enganos vivenciei ao me afastar, indiferente e pudico
Sim, eu tinha vergonha, de ir lá sem motivo algum
De não ter sequer uma semente para colocar no escorregador
Daí, veio a cegonha, e uma paternidade instintiva me trouxe um:
Filho, que inspira cuidado frequente, e exige brincadeira com amor.
Não vejo a hora de embalar os sonhos de Arthur num balanço
E percebo que agora, ao poetar ao lado desse abajur, não me canso:
De esperar que lá fora, possa caminhar com muita luz, em descanso,
numa praça.

PERCEPÇÕES

O carpete está sujo
O carpete estava sujo
Os pés estavam limpos
Mas os tênis tinham vincos

A lareira está suja
A lareira estava suja
Os deuses do Olimpo
Mantinham templos limpos

PAIXÕES ADORMECIDAS

Observo atentamente
Deus confirmando sua presença
Naquela energia latente
Ungida sobre a Musa e a criança

Sonho a cada dia
Com os olhos bem abertos
Eivado de alegria
Sem escolhos e dias incertos

A vida nos aproxima
Para entender a existência
E nada ela nos ensina
Se não buscarmos sua essência

Arthur está dormindo
A Musa esbanja excelência
Esse babão vai sorrindo
Com verso, rima e cadência

O TAL DE CHÁ DO BEBÊ

Então era Sábado, isso lá pelo meio dia
A Morena encomendava os salgados
A vovó do Arthur fazia o bolo e a torta fria
E eu pegava alguns produtos nos mercados

Entre uma lista de afazeres
Trocava a lâmpada que queimou na garantia
Filas, e alguns desprazeres
Fixava a tampa da caixa do vaso que se abria

Comprei uma pua de pedreiro
Uns parafusos, e cimento-cola
Então se foi todo meu dinheiro
Quando no semáforo dei esmola

Nisso joguei voley por uma hora
A Musa ficou brava, pois tinha de buscar a cunhada
E assim retornei, e vamos embora
E o tempo conspirava, contra a agenda alinhavada

DE noite, massagem na barriga, ninho do Arthur
A mão travava, o creme dava liga, e sem abajur
Eu me inclinava para apagar a tão esperada tomada

No domingo, tudo arrumado para o chá do bebê
Nunca vi tanta mulher falando no mesmo local
Parecia uma torre de Babel, não sei pra que
Me soquei no quarto, para assistir a dupla grenal

Numa que outra me chamavam para tirar foto
Depois que descobri como filmar foi um alívio
Então voltei para o quarto com salgados e um copo
Pois quando vi começou a esvaziar o comício
Um monte de fraldas descartáveis, ganhei na loto
No final, o último convidado disse: - é só o início

MAS TANTO FAZ, AFINAL VOCÊ ME LEU

Sabe que nunca vi um milionário
Tampouco conheci um José Rico
Sabe que nunca ouvi um canário
Tampouco o diferenciaria do tico-tico

Sabe que eu acho esse poema hilário
Falo coisas sem nenhum sentido
Sabe que lendo isso ao contrário
Eu calo por causa do meu improviso

8 MESES EM SEU VENTRE

Estou lhe escrevendo,
só para saber
o final do poema
A vida não é um conto de fada.

Mas não estou gostando.
Acalme-se para ver.
A leitura valerá a pena,
não pisque para não perder nada.

Bom, o último verso vem chegando.
Eu vim aqui para lhe dizer
o quanto amo você morena.
E o quão estou feliz em vê-la grávida!

TROPILHA DE RIMAS

Hoje me sinto
Despido da poesia
Por isso minto
Mais do que eu queria

A rima ainda se encontra
Lá no fundo de minh’alma
E o leitor se pergunta
Onde o poeta perdeu a calma?

Cansei de fazer poema
Mas a atividade lúdica me atrai
Pôr a rima no esquema
Ver como o improviso se sai!

Saudade, sim, dos amigos
Dos poetas parceiros
Dos leitores de meu umbigo
E dos inimigos traiçoeiros

Agora, que me despeço sem glória
Fazendo trilha com patas leves
Com tropilhas de rima na memória
Me sinto no fim dessa lúdica história
Um lobo sem matilha, com poemas em greve

Fonte:
http://www.novaordemdapoesia.com/search/label/Decimar%20Biagini

Autran Dourado (Ópera dos Mortos) Parte final

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Sobre o autor: http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/01/autran-dourado-1926.html
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Sendo essa uma narrativa composta de símbolos, não se pode ter idéia exata de como ela será interpretada, sentida. Pois esvaziada de sua carga significativa se transforma em signo. Assim sendo vejamos uma dentre muitas possibilidades de leituras que essa "ópera barroca" oferece.

1. O Sobrado

O habitar de Rosalina é feito em um jogo de contrários que compõe o sobrado. É a partir desse jogo que Rosalina é. O sobrado é uma coisa que faz com que a quadratura se manifeste em um jogo de movimento e repouso. Rosalina é a união permanente entre Lucas Procópio e João Capistrano porque só como só como essa unidade dual pode ser.

O sobrado é também símbolo da linguagem, pois ao se habitar o sobrado, constrói-se a linguagem, que é a casa do ser. Assim, a linguagem barroca não está em Ópera dos Mortos apenas com a função de descrever o sobrado. Não se trata de falar sobre a casa, mas de construí-la com a única linguagem possível. Em outros termos, só a linguagem plurissignificativa do barroco pode construir a história de uma personagem plural como Rosalina.

Em Ópera dos Mortos o sobrado é uma espécie de espaço cênico onde acontecem os grandes atos da ópera. É o local onde a narrativa começa e termina.

O narrador convida o leitor para que o veja com a memória e com o coração. Revela que o sobrado, além da sua beleza barroca, tem uma história e um significado profundo. Estique bem a vista, mire o casarão como num espelho, e procure ver do outro lado, no fundo do lago, mas além do além, no fim do tempo. O sobrado representa a Gente Honório Cota, os seus triunfos e derrotas, as noites de festas e as noites de solidão. Um verdadeiro referencial memorialístico dessa gente. Cada detalhe dele conta um pouco da história dos Honório Cota, relata os momentos ali vividos. O reboco caído em alguns trechos como grandes placas de ferida mostra a decadência dessa família com as suas feridas à mostra para toda a cidade.

O sobrado é o estigma Honório Cota fincado no centro da cidade como marco de orgulho e grandeza, sisudez e vulnerabilidade. Assim pode-se dizer que quando o espaço é dominante, a temporalidade é virtual, e que, quando o tempo é dominante, a espacialidade é virtual. Rosalina, assim como seu pai, Coronel João Honório Cota, também se sentia como o sobrado, o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos. Rosalina estava fincada ali, sem comunicação com nenhuma pessoa da cidade, exceto Quiquina, sua antiga ama, que era muda, e Emanuel, homem que cuidava dos seus negócios e filho do único amigo de seu pai, que a via apenas uma vez no ano para deixá-la informada de como andavam os seus bens. Ela preservava o orgulho da família não se mostrando a ninguém, permanecendo além das paredes do sobrado, conservando assim a grandeza da mágoa da sua gente.

Estava radicalmente fechada para o mundo desde a sua adolescência, quando seu pai morrera. Sofria a vulnerabilidade da sua dolorosa e imensa solidão. Fechou-se no sobrado assim como Des Esseintes, personagem do romance simbólico À Rebours de Huymans que fechou-se em seu quarto e tapou os ouvidos ao som do insistente exterior.

Rosalina, tal como o sobrado, era sólida, intransponível, mesmo em declínio. Enquanto o sobrado tinha uma arquitetura barroca, ela apresentava uma personalidade conflitante, fragmentada e contraditória. O narrador convida o leitor para que veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa…. É preciso que o leitor visualize a imagem do sobrado para melhor compreender a sua dimensão simbólica e a íntima ligação deste com os Honório Cota. E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para mais além da mais antiga memória.

Dessa forma, percebe-se que "o sobrado", construído em estilo barroco, valorizando os contrastes entre claros e escuros era a perfeita arquitetura para abrigar tantos conflitos entre o ser e o não ser, tantas antíteses sentimentais que habitavam aquele espaço imaculado e santo, sacro e profano, compostos de importantes detalhes e significantes arestas. João Capistrano fazia questão de que o sobrado fosse a união de dois tempos, duas gerações, duas histórias. Quando da sua construção, a casa era um só pavimento que retratava muito bem a alma do seu construtor, Lucas Procópio, homem da terra, inabalável, rústico e forte. No tempo de Lucas Procópio a casa era um só pavimento, ao jeito dele: pesada, amarrada ao chão, com as suas quatro janelas, no meio da porta grossa, rústica, alta..

Com a morte de Lucas Procópio, seu filho, João Honório Cota, mandou construir um outro pavimento que fosse a continuação do primeiro, não queria que se percebesse diferenças entre ambas, mas que apresentasse uma unidade de linhas, cores, que o sobrado tivesse uma só feição. Ele não queria a dissociação entre memória e imaginação. Não queria também descaracterizar a obra de seu pai, queria fazê-la crescer, ostentá-la e uni-la à sua. Não quero mudar tudo, disse. Não derrubo obra de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele. […] Eu quero uma casa só, inteira, eu e ele juntos pra sempre.. O sobrado era uma espécie de palco com uma permanente apresentação, um espetáculo que reverenciava o passado que é a memória, enquanto a mobília com seus significativos ornamentos compõe o cenário que mantém as personagens em atuação na Ópera dos Mortos. Assim, o sobrado era um espaço sagrado.

Longe de ser indiferente, o espaço num romance exprime-se, pois, em formas e reveste sentidos múltiplos até constituir por vezes a razão de ser da obra. Ele passa a ser não apenas o espaço físico onde habitam as personagens, mas apresenta-se como espaço de angústia quando Rosalina sente pesar a solidão, questiona o seu estado de abandono e convive com os conflitos; como espaço psicológico quando ele, através da sua imagem, e do seu significado, faz com que Rosalina recorde o seu passado. O espaço, quer seja "real" ou "imaginário", surge portanto associado, ou até integrado, às personagens, como o está à ação ou ao escoar do tempo. O narrador atento a essas possibilidades, mais uma vez, chama a atenção do leitor para sua metáfora maior, o sobrado. O espaço por ele criado meticulosamente para ser o símbolo principal da sua narrativa.

Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas sensação, imagina; veja a ilusão do barroco, mesmo em movimento é como um rio parado; veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo, veja: a casa ou a história.

2. A Escada

A escada, em Ópera dos Mortos, é uma ponte de ligação que une os dois pavimentos do sobrado, o térreo (a parte antiga) e o andar de cima (a parte nova) que representa a parte superior do sobrado e que dá a ele uma postura nobre e imponente. É dentro desse espaço que Rosalina se divide e faz da escada a ponte que a conduz para a travessia da sua existência. É por essa escada que ela, no ritual de descê-la ou subi-la, apresenta as mais importantes decisões da sua vida.

Para o povo da cidade o ato de descer as escadas está associado ao poder. Quem desce vem do andar superior, logo, reina. Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rainha…. Mantendo o mesmo mistério da descida ela sobe ritualisticamente deixando apenas um rastro de silêncio. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como desceu. Quando o seu pai morreu, o coronel João Capistrano Honório Cota, depois de muito tempo sem ter contato com o povo da cidade e sem receber esse povo no sobrado, Rosalina só apareceu uma vez no velório, foi ao descer a escada para colocar o relógio de ouro que o pai usava na parede ao lado do outro. Descia a escada, todo mundo de olho nela.

Depois, num outro momento significativo da sua vida, Rosalina usou a escada para fugir dos braços de Juca Passarinho quando já se entregava a ele. Quando ele procurou Rosalina, viu-a no meio da escada, correndo fugia. Temos aqui a escada como elemento de fuga, uma ponte de ligação também entre o corpo (térreo) e o espírito (o andar de cima). Rosalina se refugiava no andar de cima do mundo e de suas tentações. O andar de cima era para ela a redoma do seu espírito. Seu quarto, o seu mais íntimo recanto. Por meio dessa admirável divisa, a casa e o quarto são marcados por uma intimidade inolvidável. Com efeito, haverá imagem de intimidade mais condensada, mais segura de seu centro que o sonho do porvir de uma flor ainda encerrada e recolhida em sua semente?

Perturbada com o que sentia por Juca Passarinho e envergonhada de quase ter concretizado totalmente a sua paixão, chegou a pensar em nunca mais usar a escada para não fundir a Rosalina introspectiva à Rosalina expansiva que desabrochava. E se não descesse, se não descesse nunca mais?. A escada era o passaporte dos seus conflitos, só queria transpô-la quando se sentia forte, segura, senhora de si, sem os arroubos da paixão. Recomposta, ela desceu.. Essa mesma escada conduzia Rosalina embriagada pelo vinho e pela paixão ao andar de cima onde finalmente ela resolve abrir o seu quarto para viver intensamente a sua paixão nos braços de Juca. O vinho, a sensualidade e a paixão foram os ingredientes afrodisíacos que deram a Rosalina coragem para conduzir pela escada o seu amante e ter com ele uma noite dionisíaca. …toda noite, como num ritual, quando subiam a primeira coisa que ele fazia era soltar-lhe os cabelos.

No entanto, quando Rosalina depois de todas as transgressões que fizera, abrindo o seu quarto, o seu mundo, o seu corpo, perde o domínio sobre todas as Rosalinas, sobe pela última vez permanecendo no mundo da ilusão, no mundo lúdico dos loucos e desce quando tem que deixar o sobrado para ir para um sanatório, mas pensando que vai viver um sonho ou mais uma ilusão. Antes de terminar de percorrer ritualisticamente toda a escada, quando estava no último degrau ela parou, talvez estivesse se despedindo do sobrado e dos seus mortos, não se sabe, mas foi ainda na escada que ela proferiu sua última palavra no sobrado, encerrando ali o seu "solo" naquela ópera. Quando Rosalina chegou no último degrau da escada, parou, disse qualquer coisa baixinho… ninguém ouviu..

3. A Janela

Era da janela que Rosalina tinha uma comunicação passiva com a cidade. Uma comunicação pelo olhar. Da janela, por trás da cortina, ela observava a cidade e o povo que andava pelas ruas. Assim, através de uma camada protetora, Rosalina filtrava instantâneos da vida lá fora.

Rosalina conhecia o Largo do Carmo palmo a palmo, desde sempre olhando detrás das cortinas a igreja, as casas fronteiras, a Escola Normal, a estrada. Os olhos vazios e mornos miravam o silêncio coalhado da praça, a solidão do descampado às três horas da tarde, o céu de verão sem nuvens, o sol estorricando a terra, reverberando nas paredes brancas, os burricos peados junto ao cruzeiro, os jacás vazios esperando os donos - […] - alguém que entrava no Largo, […] e ela o seguia com a vista, a atenção neutra dos desocupados, até que dobrava a esquina ou se perdia de vista no fim da rua.

O povo via Rosalina somente quando ela aparecia na janela, mas era uma visão sombria, a cortina, feito uma tênue membrana, não, deixava que o povo a visse nitidamente e ainda a protegia contra os olhares curiosos. O próprio narrador direciona o olhar e a curiosidade do leitor em relação a Rosalina, adverte que é necessário antes ver o sobrado, o espaço existencial dela.

Se quiser, o senhor pode ver Rosalina, acompanhar os seus mínimos gestos, como ela acompanhava os passeantes, […] Mas veja antes a casa, deixa Rosalina pra depois, tem tempo.

Para Rosalina a janela era uma espécie de olho do sobrado, através dela gostava de olhar, porém quando via que estava sendo observada logo desviava o seu foco. A cidade vivia em constante expectativa, o povo estava sempre atento a uma aparição de Rosalina. E então, silêncio. Rosalina vai chegar na janela. Tal como se fosse uma celebridade que satisfaz a curiosidade do público com a sua rápida aparição. Rosalina se isolava por trás da cortina para além da janela. Aquele parecia ser o seu casulo intransponível, ela não gostava de ser vista, mas apreciava ver o povo da cidade, afinal essa era a imagem mais viva que a sua visão vislumbrava. Amanhã, da janela do seu quarto, escondida detrás da cortina, ia ver a procissão sair.

4. Flor de Seda

Fazer flores era a única ocupação de Rosalina desde que se fechara dentro do sobrado. As flores tão bonitas que ela fazia. Pra divertimento, era rica, não carecia. Tinha, no seu silêncio permanente, como única forma de expressão, fazer flores de papel crepom e seda. Eram essas flores a única coisa sua que o povo da cidade podia ver, pegar e lembrar dela, isso devido a Quiquina, sua empregada antiga que as vendia na cidade. Quiquina cuidava da venda das flores. Quem contratava, marcava os preços.

Essas flores, símbolo das virtudes, sobretudo de Rosalina, eram para a cidade, também, símbolo de comunicação, pois era através delas, das suas cores e formas, que eles imaginavam Rosalina que há mais ou menos quatorze anos não viam. Rosalina era, para o povo, a flor do sobrado, uma rara flor, vista poucas vezes. Era através das flores que fazia que ela indiretamente participava dos eventos sociais da cidade. As suas flores, todos os anos, ornamentavam o andor de Nossa Senhora do Carmo, o que dava a ela um certo orgulho. …o andor de Nossa Senhora do Carmo especialmente preparado […] Queria ver as flores de papel e de pano, aquelas flores que só ela sabia fazer tão bem. Assim, ela fabricava flores para festas de cidade grande, as flores de laranjeira quando tinha casamento (as que ela menos gostava de fazer), os lírios de primeira comunhão etc. O ofício de fazer flores era também para Rosalina uma forma de atenuar a pesada carga que carregava ao longo dos anos.

O fato de se tornar a guardiã da memória dos seus ancestrais e enclausurar-se em casa tal como os mortos no túmulo aumentava o peso da vida (que) está em toda forma de opressão; acaba por aprisionar cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas. Por isso o ato de fabricar flores, atividade tão delicada, representa a saída que Rosalina encontrou para suavizar o enorme peso que era a sua vida. Ela, apesar de toda uma existência conflituosa, movida pela vivacidade e inteligência, sabia que para contrapor tamanho peso era necessária a leveza, uma leveza consciente. Confirma-se assim em Rosalina a busca da leveza como reação ao peso do viver.

5. Rosalina

Rosalina, como personificação do sobrado (e da linguagem que ele simboliza) é também metáfora ou imagem da memória dos mortos que compõem o sobrado. Rosalina é quem mantém Lucas Procópio e João Capistrano presentes para a cidade que deseja esquecê-los, mas não pode. A cena do enterro de João Capistrano mostra que Rosalina, contrariando o desejo da cidade, não enterrou seus mortos:

Foi assim que Rosalina fez, todos os gestos medidos: viu o pai no caixão, o corpo coberto de flores, cruzou os dedos como quem ia rezar mas não rezou. Súbito se voltou para onde tinha vindo. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como desceu.

Rosalina não enterrou o pai, não cumpriu o ritual esperado pela cidade. Essa foi uma das formas de mantê-los presentes, pois o sobrado é Lucas Procópio e João Capistrano, mas Rosalina é a memória dos dois. Entende-se assim porque Autran Dourado compara, na sua Poética de Romance: matéria de carpintaria, os mortos de Rosalina aos mortos de Antígona. A lei de Rosalina é a lei dos deuses ("Não esqueço, ninguém deve esquecer") que se opõe à lei da pólis. Enterrar João Capistrano significaria enterrar sua briga com a cidade, mas para Rosalina isso significaria tirar a dignidade do pai, assim como não enterrar Polínices significaria, para Antígona, tirar a dignidade do irmão.

A questão da memória está visceralmente ligada à do tempo. São símbolos do tempo em Ópera dos Mortos os relógios e as voçorocas, como já citado.

6. Relógios

Os relógios, embora parados referem-se à dinâmica do tempo. Para Autran Dourado, o tempo não é concebido como mera sucessão de passado, presente e futuro, mas uma ciranda, uma roda.

O primeiro relógio que pára em Ópera dos Mortos é o comemorativo da independência que João Capistrano pendura na parede da sala do sobrado no início de sua briga política, depois o relógio armário, quando da morte de sua esposa, Dona Genu e, por fim, o relógio de ouro, parado por Rosalina no dia da morte de João Capistrano. Os relógios parados permanecem presentes para marcar o tempo contínuo dos mortos. Mesmo mortos, continuam a operar, marcam tanto a vida do sobrado e de Rosalina como a da cidade. Mesmo em todo seu isolamento Rosalina e o sobrado participam da vida da cidade. Isso pode ser observado em várias passagens pela fala do narrador, como no segundo bloco, quando conta ao observador sobre a chegada do relógio armário ao sobrado:

E vinha gente de longe regalar a vista (...) deliciar os ouvidos com a música prateada das pancadas finas, aquela música que mais tarde, quando o relógio parado, ia marcar as horas do nosso remorso.

Observamos que, no momento da narração, o relógio já estava parado, mas sua música ainda se fazia ouvir.

Os relógios, mesmo parados, estão em movimento, mostrando que passado, presente e futuro não se sucedem, mas se imbricam:

Foi quando o coronel João Capistrano Honório Cota morreu. Tudo foi de novo, igualzinho relógio de repetição.
(...)
Tudo repetido, a gente assistia tudo de novo pra trás. De novo se voltava feito numa fita-em-série onde o herói ficou em perigo e a gente não sabia como é que ele vai sair para continuar suas cavaleiranças. A gente esperava que a cena se repetisse para ter uma outra solução mais conforme, não a que ficou parada, sugerida.

Entretanto, a cena não tem solução, pois isso significaria parar a roda do tempo.

A morte de D. Genu marca o início do silêncio entre o sobrado e a cidade, e a de João Capistrano o estabelecimento desse silêncio, mas o silêncio não cessa a comunicação, pois o sobrado determina, em certos aspectos a vida da cidade, como já observado.

Os relógios também se imbricam na personalidade de Rosalina, o que não é nada mais nada menos que o imbricamento das questões do tempo, da linguagem e da memória:

Mas ela não podia mexer nos relógios, não devia nunca mexer naqueles relógios. Os relógios eram um quebranto, parados eles batiam como de noite aquele coração penado no meio da casa (...).

O tempo aqui é como um rio: mesmo parado continua em movimento. Rosalina não pode mexer nos relógios porque não pode mexer no tempo, mas como memória pode fazer com que aquilo que já não é retorne a ser, pode tornar o tempo uma ciranda que gira permanentemente e que se transforma também no tempo da cidade. O sobrado, símbolo da linguagem, é o que guarda esse tempo-ciranda e, em seu silêncio, fala à cidade.

7. Voçorocas

O trabalho do tempo, que transforma as coisas em ruínas é simbolizado pelas voçorocas. Elas provocam estranhamento em que as vê porque traz à tona aquilo que é a única certeza do homem, mas que lhe é absolutamente desconhecido: a morte. A dificuldade de encarar as goelas de gengivas vermelhas das voçorocas é a dificuldade de encarar a finitude humana, o limite. Por isso elas assustam tanto Juca Passarinho, sempre alegre e falante: elas o colocam de frente para o nada e provocam a experiência do silêncio:

Já vi aluvião, erosão virar voçoroca, disse José Feliciano, mas deste tamanhão, nunca na minha vida!
Desta vez não mentia, não exagerava no elogio. Tinha até medo de olhar aquelas goelas de gengivas vermelhas e escuras (...). Que coisa mais medonha, seu Silvino. Parece que não acaba mais essa começão de terra. Coisa do diabo, mais parece esta fome toda de terra.

As voçorocas remetem, assim como os relógios, remetem à dinâmica do tempo: são a própria presença do passado, do que já não é naquilo que é (presente), mas não indicam futuro a não ser a morte, a destruição. Não há futuro para a cidade, assim como não há futuro para Rosalina. Trata-se de uma cidade marcada pelo trabalho (ópera) dos mortos, que Rosalina / memória cuidou de manter presentes tanto para si como para a cidade. Tudo é determinado pelo sobrado e seus mortos. Mesmo em ruínas, é o sobrado que se mostra ao narrador e a partir dele desenrola-se a narrativa. As voçorocas estão para a cidade assim como os relógios estão para o sobrado: "O sobrado era o túmulo, as voçorocas, as veredas sombrias".

Observações gerais

O narrador de Ópera dos Mortos também contribui para a concepção de tempo como ciranda, continuidade e contigüidade. A obra é narrada sob vários focos narrativos, o que implica dizer que não há um, mas vários narradores. Por ser segundo o autor, uma obra mais trágica do que romanesca, destacamos aqui o narrador coral, que interpreta os eventos à moda do drama ático. Já no primeiro bloco, observa-se a presença do coro, como nos parênteses do fragmento abaixo:

Um recuo no tempo pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa (não, oh tempo, pare as suas engrenagens e areias, deixe a casa como é, foi ou era, só pra gente ver, a gente carece de ver; impossível com a sua mediação destruidora, que cimenta, castradora); esqueça por um momento os sinais, os avisos surdos das ruínas, dos desastres, do destino.

Principalmente a partir do capítulo “A Semente no Corpo, na Terra” (Rosalina grávida), quando, ainda segundo Autran Dourado, Rosalina fala, mas sem discurso, só presença, tem-se o discurso do coro. É ele que interpreta as muitas Rosalinas, que Juca Passarinho não consegue entender:

Mas o corpo era o mesmo, com dificuldade ele via o mesmo corpo onde as duas se alternavam. O corpo sem a noite continuava a existir? Era possível só a luz, a escuridão total?
Ele [Juca Passarinho] se perdia em pensamentos absurdos, não esses, outros – feitos de imagens concretas (...) mas que desses pensamentos se aproximava na sua luta incessante de querer entendê-la para repousar em duas Rosalinas(...) que tinham de comum entre si o traço de união, o corpo...
(...)
E de repente descobriu com espanto: ela era três e não duas. A dona Rosalina que existia entes de sua chegada ao sobrado e continuou a existir até aquela noite (...), a Rosalina das noites em fogo e sangue, em fúria consumida, e a dona Rosalina diurna de agora, perto de quem humildemente ele ficava (...) Essas distinções eram demais para ele, homem simples.

E assim o agregado desiste de entendê-la e passa a aceitá-la, mas é o coro quem interpreta, porque um narrador onisciente seria contraditório com a concepção de linguagem dessa obra que barroca que dialoga com a tragédia. Se a tensão harmônica dos contrários é a base da narrativa, não pode haver certezas absolutas exclusivas de um narrador.

Ópera dos Mortos interpreta as questões linguagem, memória, ser e tempo em uma perspectiva deliberadamente ambígua. A obra recusa os conceitos maniqueístas e concebe a unidade na dualidade. A linguagem barroca e trágica revela a imanência recíproca das questões abordadas em sua originalidade. Nesse sentido é um “acontecer poético” e cria mundo, mas não um mundo paralelo ao chamado “real”. O mundo magistralmente criado em Ópera dos Mortos é real naquilo que tem de inaugural: a paródia de elementos barrocos e trágicos interpretando originalmente as questões que inquietam a humanidade desde seus primórdios.

Fontes:
Denilson Albano Portácio - Universidade Federal do Ceará
Laura Goulart Fonseca - doutoranda em Ciência da Literatura, Teoria Literária, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Marilúze Ferreira de Andrade e Silva - Departamento das Filosofias e Métodos - FUNREI
Carla Aparecida Alves Bento, Mestranda em Literatura Brasileira - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/opera_dos_mortos

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 428)

Árvore Natalina em Natal/RN
Uma Trova Nacional

Natal... que festa mimosa
todos felizes, contentes
fraternidade gostosa
com vinho, pão e presentes.
–NILTON MANOEL/SP–

Uma Trova Potiguar

Tocam sinos de alegria
no encanto do firmamento...
E a luz da estrela anuncia
Jesus em seu nascimento!
–MARA MELINNI GARCIARN–

Uma Trova Premiada

1999 - Fuzeta/Portugal
Tema: Natal - venc.

É Natal... tempo de prece,
de amor, de fraternidade!
Do céu, um Menino desce
e mostra, ao mundo, a Verdade!
–MARINA BRUNA/SP–

Uma Trova de Ademar

Neste Natal, que o Senhor,
num ritual de orações,
plante uma árvore de amor
em todos os corações.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


É Natal! A casa cheia
e a família reunida
no amor de Deus faz a ceia,
dividindo o pão da vida!
–VERA MARIA BASTOS/MG–

Simplesmente Poesia

M O T E : Neoly Vargas/RS

Quisera colher a estrela
com um brilho sem igual,
e a vocês oferecê-la
com carinho no natal!

G L O S A: Gislaine Canalles/SC

Quisera colher a estrela
que nasce de uma amizade,
pois, com amor, posso vê-la
trazendo felicidade!

Quero pôr na sua vida
com um brilho sem igual,
essa estrela, tão querida,
essa joia de cristal!

Com afeição, vou fazê-la
ficar, ainda, mais linda,
e a vocês oferecê-la
com uma ternura infinda!

Com muito amor, eu desejo,
na luz da estrela especial,
mandar, a todos, meu beijo,
com carinho no natal!

Estrofe do Dia

O senhor, Papai Noel,
esqueceu meu endereço.
Por que é que eu não mereço
um presente aí do céu?
o guri do bacharel
todo ano tem presente,
mas, a mim, que sou carente
nunca deste um presentinho.
Tudo bem, sou pobrezinho,
mesmo assim, também, sou gente.
–TARCÍSIO FERNANDES/RN-DF–

Soneto do Dia

Natal
–AUTA DE SOUZA/RN–

É meia noite ... O sino alvissareiro,
lá da igrejinha branca pendurado,
como num sonho místico e fagueiro,
vem relembrar o tempo do passado.

Ó velho sino, ó bronze abençoado,
na alegria e na mágoa companheiro!
Tu me recordas o sorrir primeiro
de menino Jesus imaculado.

E enquanto escuto a tua voz dolente,
meu ser que geme dolorosamente
da desventura, aos gélidos açoites ...

Bebe em teus sons tanta alegria, tanta!
sino que lembras uma noite santa,
noite bendita mais que as outras noites!

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