Dona Benta estava ensinando Pedrinho a cortar as unhas da mão direita quando Emília apareceu na porta e piscou para ele com os seus novos olhos de seda azul, feitos na véspera. Pedrinho respondeu a essa piscadela com outra, que na linguagem do “pisco” (como dizia a boneca) significava: “Que há de novo?”
— Narizinho está chamando! — respondeu Emília, tão baixinho que dona Benta nada percebeu.
— Para quê? — indagou o menino ainda na língua do “pisco”.
— Para ajudá-la a arrumar a sala e salvar o Visconde.
Desta vez dona Benta pilhou a palavra “arrumar” e, erguendo os óculos para testa, perguntou:
— Que arrumação é essa, Pedrinho?
— Não é nada, vovó. Uma simples festinha que vamos dar aos nossos amigos do País das Maravilhas.
— Quer dizer que vamos ter novamente aqui o príncipe e aqueles bichinhos todos do mar?...
Pedrinho riu-se.
— A senhora não entende disto... Eu disse — amigos do País das Maravilhas, e não do Reino das Águas Claras. Há muita diferença.
— Pois vá receber seus amigos — disse dona Benta depois que acabou de lhe aparar as unhas — mas primeiro lave essa cara. Você comeu manga e está com dois bigodes amarelos.
— Foi de propósito, vovó — inventou o menino. — Quero que eles pensem que sou o conde dos Bigodes de Manga!...
Narizinho estava muito atrapalhada para salvar o Visconde que havia uma semana caíra atrás da estante. Logo que Pedrinho apareceu, gritou-lhe:
— Venha acudir o Visconde. Estou vendo um pedaço dele lá no fundo; com certeza o resto foi devorado pelas aranhas de pernas compridas. Temos que salvá-lo depressa — e vesti-lo, porque os convidados não tardam.
— Mandou os convites?
— Pois de certo. Mandei-os por um beija-flor que todos os dias vem beijar as rosas do pé de rosa da Emília. Cheguei-me a ele e disse: “Sabe ler?”
— “Sei, sim!” — respondeu a galanteza. — “Então pegue estas cartinhas no bico e vá entregá-las aos donos.” E ele pegou as cartinhas e partiu!... lá se foi...
— Para quem mandou convites?
— Para todos — para Cinderela, para Branca de Neve, para o Pequeno Polegar, Capinha Vermelha, Ali Babá, Gato de Botas — todos!
— Não esqueceu Peter Pan?
— Está claro que não. Nem Aladim, nem o Gato Félix verdadeiro. Até ao Barba Azul convidei. Pedrinho não gostou da idéia.
— Acho que não devíamos convidar esse monstro. Vovó vai morrer de medo.
— Não faz mal — conciliou a menina. — Mandei-lhe um convite bem seco, mas se mesmo assim ele vier nós fecharemos a porta bem no nariz dele — há!... Convidei-o de tanta vontade que tenho de ver se a tal barba é mesmo azul como dizem. Mas tratemos de salvar o Visconde.
Pedrinho ajudou-a a desencostar a estante de modo que pudessem pescar o pedaço do Visconde com o cabo da vassoura. Não era pedaço, não; estava inteirinho; apenas mais embolorado do que nunca – todo sujo de poeira e teias de aranha...
— Agora é que vai ficar um sábio completo! Tia Nastácia não acredita em sábio que toma banho, faz a barba e perfuma-se. Diz que sábio de verdade é assim — bem sujinho.
Depois de limpo mal e mal, o Visconde recebeu ordem de pendurar-se no alto da janela com o binóculo de dona Benta a fim de espiar a estrada.
— Assim que aparecer uma poeirinha lá longe, avise. Agora vou buscar Rabicó.
Rabicó veio de má vontade como sempre, porque fora obrigado a interromper uma comilança de mandioca. Pedrinho amarrou-lhe na cauda a célebre fitinha vermelha e pendurou-lhe nas orelhas dois brincos de amendoim.
— Você vai ficar na porta para ir recebendo os convidados.
Assim que chegar um e bater, abra, pergunte quem é e anuncie: “O senhor ou senhora Fulano de Tal!” Mas comporte-se e não vá comer os brincos como da outra vez.
A boneca estava num grande assanhamento a varrer, com o pincel de goma-arábica que lhe servia de vassoura, um lugar do chão que o Visconde sujara de verde com o seu bolor. Narizinho implicou-se.
— Chega, Emília! Assim você fura o assoalho de vovó. Antes vá tomar banho e vestir aquele vestido cor do pomar com todas as suas laranjas. Ponha ruge, não esqueça. Está um tanto pálida hoje.
A boneca, tec, tec, tec, muito esticadinha para trás, foi vestir-se.
Assim que ela saiu, o Visconde, já no alto da janela, de binóculo apontado, anunciou, numa voz rouca de sábio embolorado:
— Estou vendo uma poeirinha lá longe!
— Ainda não, Visconde! É muito cedo. Temos de ir tomar café primeiro. Só na volta é que o senhor começa a ver poeirinhas.
O café, que já estava na mesa, foi tomado a galope. Vendo aquela pressa, dona Benta perguntou:
— Que reinação vamos ter hoje, Narizinho?
— Nem é bom falar, vovó! Vai ser uma festa linda até não poder mais. Só reis e príncipes e princesas e fadas...
— Muito bem — disse dona Benta — mas tenho que escrever uma carta à minha filha Antonica, por isso não façam muito barulho. Deixem-me em paz no meu canto.
— Sim, vovó, mas a senhora tem de espiar um pedacinho da festa — um pedacinho só, sim? Pelo buraco da fechadura. Isso quando ouvir uma grande salva de palmas e um hino de índios.
A pobre velha fez uma cara de quem não estava entendendo muito bem tamanha trapalhada. Narizinho teve de explicar tudo. As palmas e o hino dos índios guerreiros, escrito especialmente pela Emília, eram para saudar a chegada de Peter Pan, famoso menino que não quis crescer e pela primeira vez os vinha visitar no sítio. Dona Benta prometeu que espiaria. Voltando à sala da festa, Narizinho gritou para o Visconde:
— É hora! Pode começar.
O pobre sábio, que estava cochilando em cima do binóculo, acordou, espiou a estrada e disse:
— Estou vendo uma poeirinha lá longe!...
— Poerinha pequenininha ou grandinha? — perguntou Emília.
— Se é grandinha, aposto que é Pé-de-Vento que vem vindo.
Narizinho franziu a testa.
— Não convidei Pé-de-Vento nenhum, Emília, nem conheço tal personagem.
— Pois eu conheço — retorquiu a boneca. — Estou escrevendo uma historinha onde há o grande príncipe Pé-de-Vento, que é o maior levantador de poeira que existe. Uma vez, quando ele tinha justamente três anos, três meses, três dias e três horas de idade...
— Feche a torneira, Emília! História, só de noite. Não vê que o primeiro convidado já vem vindo?
––––––––
Continua... Cara de Coruja– I – Cinderela
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
— Narizinho está chamando! — respondeu Emília, tão baixinho que dona Benta nada percebeu.
— Para quê? — indagou o menino ainda na língua do “pisco”.
— Para ajudá-la a arrumar a sala e salvar o Visconde.
Desta vez dona Benta pilhou a palavra “arrumar” e, erguendo os óculos para testa, perguntou:
— Que arrumação é essa, Pedrinho?
— Não é nada, vovó. Uma simples festinha que vamos dar aos nossos amigos do País das Maravilhas.
— Quer dizer que vamos ter novamente aqui o príncipe e aqueles bichinhos todos do mar?...
Pedrinho riu-se.
— A senhora não entende disto... Eu disse — amigos do País das Maravilhas, e não do Reino das Águas Claras. Há muita diferença.
— Pois vá receber seus amigos — disse dona Benta depois que acabou de lhe aparar as unhas — mas primeiro lave essa cara. Você comeu manga e está com dois bigodes amarelos.
— Foi de propósito, vovó — inventou o menino. — Quero que eles pensem que sou o conde dos Bigodes de Manga!...
Narizinho estava muito atrapalhada para salvar o Visconde que havia uma semana caíra atrás da estante. Logo que Pedrinho apareceu, gritou-lhe:
— Venha acudir o Visconde. Estou vendo um pedaço dele lá no fundo; com certeza o resto foi devorado pelas aranhas de pernas compridas. Temos que salvá-lo depressa — e vesti-lo, porque os convidados não tardam.
— Mandou os convites?
— Pois de certo. Mandei-os por um beija-flor que todos os dias vem beijar as rosas do pé de rosa da Emília. Cheguei-me a ele e disse: “Sabe ler?”
— “Sei, sim!” — respondeu a galanteza. — “Então pegue estas cartinhas no bico e vá entregá-las aos donos.” E ele pegou as cartinhas e partiu!... lá se foi...
— Para quem mandou convites?
— Para todos — para Cinderela, para Branca de Neve, para o Pequeno Polegar, Capinha Vermelha, Ali Babá, Gato de Botas — todos!
— Não esqueceu Peter Pan?
— Está claro que não. Nem Aladim, nem o Gato Félix verdadeiro. Até ao Barba Azul convidei. Pedrinho não gostou da idéia.
— Acho que não devíamos convidar esse monstro. Vovó vai morrer de medo.
— Não faz mal — conciliou a menina. — Mandei-lhe um convite bem seco, mas se mesmo assim ele vier nós fecharemos a porta bem no nariz dele — há!... Convidei-o de tanta vontade que tenho de ver se a tal barba é mesmo azul como dizem. Mas tratemos de salvar o Visconde.
Pedrinho ajudou-a a desencostar a estante de modo que pudessem pescar o pedaço do Visconde com o cabo da vassoura. Não era pedaço, não; estava inteirinho; apenas mais embolorado do que nunca – todo sujo de poeira e teias de aranha...
— Agora é que vai ficar um sábio completo! Tia Nastácia não acredita em sábio que toma banho, faz a barba e perfuma-se. Diz que sábio de verdade é assim — bem sujinho.
Depois de limpo mal e mal, o Visconde recebeu ordem de pendurar-se no alto da janela com o binóculo de dona Benta a fim de espiar a estrada.
— Assim que aparecer uma poeirinha lá longe, avise. Agora vou buscar Rabicó.
Rabicó veio de má vontade como sempre, porque fora obrigado a interromper uma comilança de mandioca. Pedrinho amarrou-lhe na cauda a célebre fitinha vermelha e pendurou-lhe nas orelhas dois brincos de amendoim.
— Você vai ficar na porta para ir recebendo os convidados.
Assim que chegar um e bater, abra, pergunte quem é e anuncie: “O senhor ou senhora Fulano de Tal!” Mas comporte-se e não vá comer os brincos como da outra vez.
A boneca estava num grande assanhamento a varrer, com o pincel de goma-arábica que lhe servia de vassoura, um lugar do chão que o Visconde sujara de verde com o seu bolor. Narizinho implicou-se.
— Chega, Emília! Assim você fura o assoalho de vovó. Antes vá tomar banho e vestir aquele vestido cor do pomar com todas as suas laranjas. Ponha ruge, não esqueça. Está um tanto pálida hoje.
A boneca, tec, tec, tec, muito esticadinha para trás, foi vestir-se.
Assim que ela saiu, o Visconde, já no alto da janela, de binóculo apontado, anunciou, numa voz rouca de sábio embolorado:
— Estou vendo uma poeirinha lá longe!
— Ainda não, Visconde! É muito cedo. Temos de ir tomar café primeiro. Só na volta é que o senhor começa a ver poeirinhas.
O café, que já estava na mesa, foi tomado a galope. Vendo aquela pressa, dona Benta perguntou:
— Que reinação vamos ter hoje, Narizinho?
— Nem é bom falar, vovó! Vai ser uma festa linda até não poder mais. Só reis e príncipes e princesas e fadas...
— Muito bem — disse dona Benta — mas tenho que escrever uma carta à minha filha Antonica, por isso não façam muito barulho. Deixem-me em paz no meu canto.
— Sim, vovó, mas a senhora tem de espiar um pedacinho da festa — um pedacinho só, sim? Pelo buraco da fechadura. Isso quando ouvir uma grande salva de palmas e um hino de índios.
A pobre velha fez uma cara de quem não estava entendendo muito bem tamanha trapalhada. Narizinho teve de explicar tudo. As palmas e o hino dos índios guerreiros, escrito especialmente pela Emília, eram para saudar a chegada de Peter Pan, famoso menino que não quis crescer e pela primeira vez os vinha visitar no sítio. Dona Benta prometeu que espiaria. Voltando à sala da festa, Narizinho gritou para o Visconde:
— É hora! Pode começar.
O pobre sábio, que estava cochilando em cima do binóculo, acordou, espiou a estrada e disse:
— Estou vendo uma poeirinha lá longe!...
— Poerinha pequenininha ou grandinha? — perguntou Emília.
— Se é grandinha, aposto que é Pé-de-Vento que vem vindo.
Narizinho franziu a testa.
— Não convidei Pé-de-Vento nenhum, Emília, nem conheço tal personagem.
— Pois eu conheço — retorquiu a boneca. — Estou escrevendo uma historinha onde há o grande príncipe Pé-de-Vento, que é o maior levantador de poeira que existe. Uma vez, quando ele tinha justamente três anos, três meses, três dias e três horas de idade...
— Feche a torneira, Emília! História, só de noite. Não vê que o primeiro convidado já vem vindo?
––––––––
Continua... Cara de Coruja– I – Cinderela
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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