Em seguida veio o alfaiate que matava sete de um golpe. Veio também o soldadinho de chumbo que depois de derretido ao fogo se transformou em coração.
— E como virou soldadinho outra vez ?— quis saber Emília.
— Uma fada, que leu minha história — chorou uma lagrimazinha tão sentida que virei soldado outra vez.
— E a dançarina de saiote cor-de-rosa? Morreu no fogo também?
— Essa morreu para sempre — respondeu o soldadinho, fingindo que se assoava, mas de fato enxugando os olhos. O burrinho supunha que como era soldado não podia demonstrar fraqueza, chorando.
Depois veio um Patinho Feio, filho daquele outro que virara cisne. Assim que entrou, Emília, que já tinha visto tia Nastácia matar um pato, foi depressa cochichar-lhe ao ouvido:
— Não saia daqui, não vá à cozinha, ouviu? Lá mora uma fada preta que não tem piedade nem de frangos nem de patinhos. Pega os coitados e vai logo lhes torcendo o pescoço. Sabe para quê? Para assá-los no forno, imagine!...
Tamanho susto levou o patinho, que teve de encostar-se à parede, mais pálido que uma vela de cera — das que não são cor-de-rosa. Hansel e Gretel vieram em seguida, sendo muito festejados.
Emília quis saber notícias daquele ossinho que mostravam à feiticeira cada vez que ela dizia: “Hansel, mostre o dedinho, para eu ver se está engordando.” Emília achava que como tinham sido salvos por aquele ossinho, era injustiça não terem feito dele um colar para ser trazido ao pescoço. Depois chegou a Xerazade, acompanhada de todos os heróis das Mil e Uma Noites. Como não pudessem entrar na sala, muito pequena para contê-los todos, tiveram de ficar de fora.
Narizinho, Emília e as princesas correram à janela, donde puderam regalar-se de ver o Pescador e o Gênio, o Cavalo Encantado, os príncipes Codadad e Ahmed, Sindbad o Marujo, Morgiana e mais uma multidão de sultões, sultanas, califas e escravos núbios, pretos e lustrosos como jabuticabas.
— Por que não trouxe também o pássaro Roca? – perguntou Emília à Xerazade.
— Que idéia! — respondeu a princesa sorrindo. — Para que esse bruto derrubasse uma pedra em cima do sítio de dona Benta e nos esmagasse a todos, como fez com o navio de Sindbad?
Depois vieram os heróis gregos, o valente Perseu que matou a Górgona, o heróico Teseu que matou o Minotauro e até a cabeça da Medusa, espetada na ponta de um pau, com aquela porção de cobras se mexendo em lugar de cabelos. Tantos personagens maravilhosos vieram, que o terreiro de dona Benta ficou de não caber um alfinete.
Narizinho olhava, olhava, no maior êxtase de sua vida. Só reis e príncipes e fadas e anões e madrastas boas e más, e bruxas e mágicos de chapéus em forma de cartucho, e ursos que viram príncipes, e lobos de dentuça arreganhada... Mas Peter Pan não aparecia — o que muito decepcionava Pedrinho. Seu grande desejo era justamente conhecer Peter Pan. Estavam todos à janela, regalando os olhos naquele espetáculo nunca visto no mundo, quando Emília se pôs a filosofar.
— Estou pensando na vaca mocha — disse ela. — A coitada costuma deitar-se aí no terreiro todas as tardes. Imaginem a surpresa dela agora! Olha dum lado, vê um rei. Vira-se de outro, dá com um anão. Sacode a cauda e bate numa princesa. A coitada deve de estar que nem mover-se pode. Se não morrer de medo, é capaz de secar o leite — e amanhã dona Benta vai ficar danada!...
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Continua... Cara de Coruja– VII – A Coroinha
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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