Foi há muito tempo. Naquele dia...
Último encontro de dois seres que se amavam, mas como eram muito teimosos e muito orgulhosos, nunca conseguiram encontrar a fórmula que harmonizasse as suas naturais divergências.
Tal teimosia deu origem a um afastamento que tudo indicava ser definitivo.
Ela - "...tu não me apareças mais à minha frente, nem procures veres-me mais, porque eu para ti morri - entendeste? Morri!... Se por acaso, alguma vez, me encontrares na rua, por favor, muda logo de passeio e nem de soslaio olhes para mim! Nunca te esqueças, disto que te digo!"
Ele - "O que disseste também se aplica a ti, e mais, nem pensamentos em mim te autorizo a teres, porque eu não preciso, nem precisarei de ti para nada. Nada - entendeste?!... Nada! Agora, desaparece da minha vista para sempre - mulher malvada! Para sempre!
Passados alguns meses ambos casaram com namoros que entretanto tinham arranjado.
Foram viver para terras diferentes e nunca mais se encontraram.
O ódio que votaram um ao outro, tinha surgido efeito. Mas... Há sempre um mas...
Estávamos na véspera do Natal.
À porta de um supermercado, Ele, hesitou mas por fim resolveu entrar para fazer as compras que ainda lhe faltavam. Já estava quase aviado, quando ao passar por um corredor, avistou uma prateleira com bolos de rei. Ergueu o braço para ir buscar um, ao mesmo tempo que uma senhora teve a mesma ideia e fez o mesmo gesto. Resultado: o mesmo bolo que ambos agarraram caiu-lhes a seus pés, e ambos, ao tentar apanhá-lo, com a precipitação, chocaram com as cabeças um do outro...
Ainda massageando as cabeças, ambos olharam um para o outro.
Ela - Olha!... Que fazes tu aqui? - perguntou-lhe muito admirada.
Ele – Faço o mesmo que tu. Mas noto que continuas a teres a cabeça muito rija!
Ela – Oh menino, isso pode eu dizer de ti; olha o "galo" que me fizeste na cabeça... – Disse-lhe Ela enquanto afastava o cabelo para lhe mostrar um inchaço que já começava a notar-se - e continuou:
Ela - Com tantos estabelecimentos que para aí existem, tinhas que vir hoje e à mesma hora que eu também vinha, a este... É preciso ter azar!
Engrossando um pouco a voz, respondeu-lhe:
Ele: - Se eu soubesse que estavas aqui, nem nesta rua teria passado. Nem nesta terra! Que pouca sorte a minha! Bem, em que ficamos: levas o bolo ou levo eu?
Olhando-o de soslaio, disse-lhe:
- Sim, eu vou tirar o meu bolo. Quero lá saber se tu também tiras ou não o teu! E para já, a conversa acabou. Feliz Natal, passa muito bem, que não foi prazer nenhum ter-te encontrado!
Ele sorriu. Apesar dos anos, Ela, continuava "espevitada" como era dantes. E também continuava muito bonita... Por casualidade, tinha sabido há pouco tempo que ela também tinha enviuvado. Marotamente procurou a "chateá-la” um pouco mais:
- Como esse carrito das tuas compras, está muito pesado e a rolar mal, eu tenho muito prazer de o te levar até lá fora...
Ela mostrou logo o seu desacordo com tal oferta. Mas o carrito estava de facto muito pesado e rolava muito mal. Fingindo-se mais zangada do que de facto estava, lá acedeu:
- Olha que é só até à porta, pois o meu carro está ali perto.
Tentando ser mais "gozador", do que de fato era, Ele lá lhe foi dizendo:
- Não te preocupes. Eu só faço esta "gentileza" para te ver o mais longe possível; imagina, o mais rapidamente possível, de mim!"
Depois de passarem pela "caixa", Ele levou-lhe o carro cheio de compras e a rolar mal, até junto do automóvel dela, como era o seu desejo. Ela quase que lhe agradeceu:
- E pronto, acaba aqui o nosso encontro - o nosso inesperado encontro. Confesso que não tive o menor prazer em tornar-te a ver!
Não querendo ficar por baixo das palavras dela, logo lhe respondeu:
- Olha que estou plenamente de acordo contigo! Mas que lá foi um enorme prazer ter-te ajudado, isso foi. Ah antes que me esqueça, quero pedir-te desculpa de te ter feito, involuntariamente, esse "galo” na tua cabeça. Assim, talvez logo à noite, penses em mim!
Ela ao ouvir isto, quase que o "fuzilou" com os olhos, e disparou-lhe em seguida:
- Não sejas convencido, porque eu sou (e sempre serei) incapaz de pensar em ti. Pronto, pronto, a conversa já vai longa! Muito obrigado pela tua (inesperada) "gentileza" e mais uma vez um Feliz Natal para ti. Oxalá que nunca mais nos encontraremos. Vá lá, agora, sai da minha frente.
Dizendo-lhe isto, Ela entrou para dentro do carro, pô-lo a trabalhar, e, quando estava quase a arrancar, debruçou-se para o seu lado direito, e abrindo o vidro, perguntou-lhe:
- Olha lá, "menino", com quem vais tu passar a noite da Consoada? E logo rematou: Não é que me interesse, melhor, não tenho o mínimo interesse em ti nem da tua vida.
Ele parou, olhou-a nos olhos e, com um sorriso algo triste, respondeu-lhe:
- Como é já habitual há alguns anos, vou passar esta noite sozinho.
Ao sentir a tristeza dele, Ela, quebrou um pouco o seu ar que pretendia ser altivo. Mas "reguila" como era, não se conteve e disse-lhe em tom de despedida: - Isso acontece muitas vezes às pessoas más, de feitio irascível.
E lá seguiram o seu caminho, cada um para seu lado...
Ele voltou a entrar novamente no estabelecimento. Abeirou-se do carrito que lá deixara com as suas compras. Pensava nela:
- Porque a tinha encontrado? Porque lhe tinha falado?
Agora seria pior, pois não parava de pensar nela. A sua cabeça estava feita num verdadeiro caos. Sentiu-se revoltado. Já não lhe apetecia comprar mais nada. Não queria estar mais naquele ambiente do supermercado. Deu meia-volta ao carrito para se vir embora. Espanto seu, Ela estava novamente na sua frente. Mal pode balbuciar:
- Tu, novamente aqui...?!
Calmamente, Ela, altivamente, respondeu-lhe:
- Não penses que voltei por tua causa! Voltei, sim, porque esqueci-me de comprar umas coisas, nada mais... Ou já pensavas que?...
Ao encará-lo novamente, notou que Ele tinha os olhos de quem queria chorar. E até a sua voz era mais suave. Sentiu um grande arrepio. Nesse momento, por qualquer motivo ou avaria, as luzes do estabelecimento apagaram-se. Ela sobressaltou-se e nervosa como estava, quase lhe suplicou:
- Com esta escuridão, é melhor irmos embora.
Ele logo concordou:
- Talvez pela primeira vez na vida, estou plenamente de acordo contigo.
Dirigiram-se então para a saída. E, Ela estava ali a seu lado. Tinha a sensação de ouvir a sua respiração e sentia o calor da sua mão, que estava junto da sua. Parecia sonhar um sonho lindo, e a meia voz, balbuciou: -
- Já vejo a luz da rua. Não será bem uma luzinha "ao fundo de um túnel", mas quase...
Admirada (ou talvez não) Ela logo retorquiu-lhe:
- O que é que estás para aí a dizer?
Embora hesitante, Ele respondeu-lhe timidamente:
- Bem, é que... é que... como hei-de dizer… É que gostava imenso de cear contigo esta noite...
Ela fingiu-se muito admirada com o que ouvira momentos antes, passando a mão pelos ainda belos cabelos, embora já algo grisalhos, disse-lhe:
- Ho "menino", controla-te...pois deves de estar a delirar! Que surpresas guardou-me o destino para hoje! Olha cá para mim...não, não, não ... Repara, eu já tenho o meu programa para esta noite: o meu filho vai a minha casa com a mulher e o meu netinho; talvez também uns primos, além de umas vizinhas...
Ele interrompeu-a ao retorquir-lhe tristemente:
- Só eu é que não posso ir, não é assim?
Ela encarou-o novamente. Sorriu (talvez com malícia) mas notava-se algum nervosismo:
- Ai, tu só me trazes problemas. Como é que eu posso agora anular os convites, não me dizes? Mas porque é que eu te tinha que te encontrar novamente, e logo neste dia? Tu, como sempre, só me trazes trabalhos e problemas.
Ele até parecia que estava no meio de um sonho. Um sonho lindo. Não, não queria acordar. Mas desta vez, Ela, estava ali a seu lado, compreensiva e com uma certa doçura no olhar e na voz, que nunca tinha imaginado que Ela seria capaz...Ainda que timidamente, atreveu-se a balbuciar: - Então, "menina...Às oito horas, está bem?...
Ela ainda hesitou. Escondeu a cara entre as suas mãos. Depois fez-lhe uma festinha no rosto dele, dizendo por fim:
- Mas olha que eu não vou a tua casa!
Visivelmente satisfeito, e porque não dize-lo, muito admirado com Ela, também aprovou.
- Linda, não tem importância nenhuma, posso eu ir a tua casa!
Ela, começou logo a fazer contas à vida:
- Oito horas?... Olha menino, vai um pouco mais cedo, pois o programa da Televisão começa às sete, e assim poderíamos o ver desde o princípio...
Ele, sorriu e pensou:
- Ou muito me engano, ou nunca mais passarei outro Natal sozinho!"
Fonte:
Carlos Leite Ribeiro – Marinha Grande – Portugal
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