quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Cara De Coruja – IX – A partida

O relógio bateu seis horas.

— Como é tarde! — exclamou Branca de Neve. — Tenho de estar no castelo às sete para receber dois príncipes que vêm jantar conosco.

— E nós também — disseram Rosa Vermelha e Rosa Branca. — Temos à noite a visita do Pássaro Azul.

Cinderela também tinha de retirar-se, de modo que foi um rodopio de abraços e beijos e palavras de despedidas — tudo num grande atropelo.

— Adeus! adeus! — dizia Narizinho, passando dos braços de uma princesa para os de outra. — Voltem outra vez, agora que sabem o caminho...

Pedrinho, que havia cochichado muita coisa para Peter Pan, despediu-se dele dizendo:

— Quando voltar, veja se traz o crocodilo que comeu o capitão Gancho. Tenho muita vontade de ver um crocodilo dessa espécie.

A Aladim lembrou o desafio:

— Venha com a sua lâmpada. e areie bem ela, ouviu?

Emília andava de mãos em mãos. Nunca foi tão beijada e mimada. Quando chegou o momento de despedir-se do Pequeno Polegar, cochichou-lhe ao ouvido uma porção de coisas sobre dona Carocha e aconselhou-o a fugir novamente e vir morar com eles ali no sítio.

Depois que todos partiram, a casa ficou mais vazia do que nunca. Na sala, só os dois meninos e a boneca. No terreiro, só a mocha mascando as suas palhas e Rabicó acabando de comer a sua raiz de mandioca.

Os dois meninos trocavam impressões.

— De quem mais gostei foi de Branca de Neve – disse Narizinho. — Como é boa e linda! Contei-lhe que estive com a aranha que lhe fez o vestido de casamento Branca ficou muito admirada. Pensou que dona Aranha tivesse morrido daquele desastre na perna. Como Branca é branca! Nunca imaginei que pudesse haver uma criatura alva assim. Parece feita de coco ralado...

— E eu gostei muito do Gato de Botas — disse Pedrinho. – Já Aladim me pareceu um tanto prosa. Pensa que aquela lâmpada é a maior coisa do mundo.

Nisto Emília, que havia rolado para debaixo da mesa deu um grito de espanto.

— Olhem o que está aqui! A lâmpada de Aladim! Com a pressa, ele esqueceu-se de levá-la.. .

— É verdade! — exclamou Pedrinho no auge da alegria.

— Esqueceu-se e agora a lâmpada é minha!...

— E está aqui também a varinha de condão de Cinderela! — berrou de novo Emília mostrando o precioso talismã. Com a pressa, ela esqueceu-se da vara e a vara é minha. Vou brincar de virar o dia inteiro.

— E olhem o que está aqui atrás do armário! — gritou por sua vez Narizinho. — As botas de sete léguas do Gato de Botas. São minhas — e quero ver quem me pega!...

Ficaram todos três no maior contentamento, a mirar e remirar aquelas maravilhas e a fazer projetos de aventuras ainda mais extraordinárias que as que os livros contam. No melhor do enlevo, porém, ouviram uma batidinha trêmula na porta, tuc, tuc, tuc...

Emília foi abrir. Era uma baratinha de mantilha — a célebre dona Carocha...

— Que é que a senhora deseja? — indagou Emília.

— Boa tarde! — disse a velha, fingindo não reconhecer a boneca e sentando-se para descansar. — Sou dona Carocha, a que toma conta de todos esses personagens do mundo maravilhoso.

— Já sei — observou a menina, de mãos na cintura e prevendo complicações. — Mas que é que a senhora quer?

— Vim buscar a lâmpada de Aladim, a vara de condão de Cinderela e as botas do Gato de Botas. Esses maluquinhos, com a pressa de voltar, esqueceram-se desses objetos.

Foi um desapontamento geral. Emília quis mentir, dizendo que não havia ali nem bota, nem vara, nem lâmpada nenhuma. Narizinho teve ímpetos de morder a velha. Pedrinho chegou a olhar para o bodoque. Mas dona Benta estava na salinha próxima; e dona Benta fazia muita questão de que seus netos respeitassem os mais velhos.Por isso resignaram-se a entregar aquelas preciosidades.

— Pois leve — disse Narizinho, contendo-se a custo. — Mas fique sabendo que o que lhe vale é vovó estar ali na salinha. Ah, se não fosse isso...

Dona Carochinha nada disse. Foi tratando de pegar a vara, a lâmpada, as botas e até o espelho mágico que Branca de Neve dera à boneca. Em seguida raspou-se, ressabiadamente.

Mas antes que ela chegasse à porteira Emília explodiu:

— Cara de coruja seca! Cara de jacarepaguá cozinhada com morcego e misturada com farinha de bicho cabeludo, ahn!... e botou lhe uma língua tão comprida que dona Carochinha foi arregaçando a saia e apressando o passo...
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Continua... I – O Irmão de Pinóquio

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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