— Papai Noel não existe — disse Ninico, baixinho, concentrado no fundo do copo de conhaque Napoleão.
Já eram onze horas da noite e os quatro, em volta da pequena mesa de tampo de mármore mal polido, terminavam a quinta rodada, um pouco sonolentos, meio nostálgicos pelo passamento da data, o bar vazio de fregueses, o Joaquim da Maria a cabecear cochilos sobre o alto banco de madeira, por trás do balcão.
— O quê que você disse? — assustou-se Feliciano, levantando a cabeça para olhar o amigo — Que Papai Noel não existe? O que você quer dizer com isso?
— Ele quer dizer que Papai Noel não existe — confirmou Mariano, tautológico, os olhos vidrados, mirando de esguelha a luz amarelada do poste, no outro lado da rua — Ora, você não sabe que o Ninico adora afirmações controvertidas? Ele sabe muito bem que não pode provar isso. E só provocação.
— Não... eu acho mesmo que não existe. Não é polêmica, não, só que ele não existe — confirmou Ninico mansamente, ainda olhando o fundo do copo.
— Deixa de bobagem, isso você sabe desde os cinco anos! Feliciano, terra a terra, evitando a armadilha da filosofia barata de Mariano.
— Tá bom, se vocês querem passar a noite de Natal dizendo coisas sem sentido, por que não? — Mariano, cansado. — Eu não tenho ninguém me esperando em casa; nem vocês. Só o João. Mas vocês têm que concordar comigo que não se pode provar isso: nem afirmar, nem negar. Não de forma consistente — concluiu exato, taxativo.
— Como você coloca, em termos puramente lógicos, é claro que não. Mas você também vai ter que concordar que, nesses termos, o que se pode discutir é muita pouca coisa. Afinal, se você descarta o que não é passível de prova, o que se pode discutir? O que está provado? Mas isso, por definição, não dá margem à opinião, portanto, à discussão — Feliciano, perdendo a paciência com Mariano. — De mais a mais, isso é uma conversa, só isso, uma discordância entre duas pessoas que têm diferentes opiniões.
Mariano ia responder à aporia absurda, mas emburrou, e caiu um silêncio incômodo sobre a mesa. Amigos antigos, aquilo não era anormal em sua convivência diária. Cada qual conhecia, demasiadamente bem, o pensamento do outro, havia mais de vinte anos, o que permitia um entendimento rápido entre eles. Os desacordos eram conhecidos, paredes intransponíveis de há muito reconhecidas, respeitadas, ou talvez, apenas toleradas, meras impossibilidades interpessoais: convicções vivenciais, definiria Feliciano.
E foi, com surpresa, que os três ouviram João Pedroso dizer:
— Não, Ninico, você está errado. Todos vocês estão errados. Não só ele existe como pode ser provado. Quero dizer, eu posso provar, e outros, talvez, também.
Ninico tirou os olhos do copo, lentamente, discordante, suspeitoso. Os dois outros olharam o amigo sorrindo, suspicazes. Não era discordância, mas incredulidade ou, talvez, a expectativa de uma brincadeira do João. Mas o rosto do amigo estava sério, vincado.
— Ah! Pára com isso, João! Você também? — exclamaram ambos, rindo, com pequenas variações de palavras, mas a mesma significação.
João Pedroso olhou cada um dos amigos com o rosto tenso, amargurado, e não se deu ao trabalho de responder a qualquer deles, o pensamento vagueando por um mundo antigo, perdido, passado.
— Eu nunca contei isso a vocês. Nunca falei disso a ninguém, aliás. Só de pensar, já me faz sentir mal, como uma nuvem escura de tempestade, um certo mal-estar, algo maligno.
O ambiente da mesa mudara. A descontração da conversa se fora, deixando uma tensão progressiva nos corpos, no ar. A própria iluminação no bar, na rua, mudara, como que enfraquecida por uma queda de voltagem tão comum naquela cidadezinha. Ninico contraiu os músculos dos ombros, os intercostais, sem se dar conta. Os demais, mexeram-se nas cadeiras, incomodados, sem saber com o quê.
— Eu devia ter uns sete anos, por aí, e o colégio já se tinha encarregado de tirar algumas ilusões que minha mãe alimentara por toda a meninice. Esta não foi, certamente — disse João Pedroso com o ar sonhador de quem relembra a primeira infância — a última delas.
Ele já não se lembrava mais das circunstâncias exatas, das causas ou do motivo que o levara a fazer o comentário com a mãe, mostrando a sabedoria que adquirira longe do ninho que, afinal, o enganara com aquela mentirinha.
— Eu estava me mostrando, para minha mãe, orgulhoso de como eu já estava crescido, virando homenzinho. Não era uma recriminação a meus pais, nem nada parecido, e fiquei muito assustado com sua reação violenta, seus gritos que só terminaram com minhas lágrimas, abraços, beijos e pedidos de desculpa.
João Pedroso virou o resto do conhaque e olhou os amigos buscando encorajamento.
— Em resumo, minha mãe disse que o Natal só existia para quem acreditava nele. Era pegar ou largar, simples assim. Quem era bom, obedecia aos mais velhos e acreditava no que o Natal significava era recompensado com os presentes, mimos e doces que eu sempre conhecera. Em caso contrário, nada feito: a escolha era de cada um. E esse era o motivo pelo qual muitos meninos não acreditavam em Papai Noel, ou o inverso, como queiram.
João Pedroso pediu mais uma rodada de bebida, nesta altura muito bem-vinda, e contou que relatara aos colegas de colégio o que ouvira da mãe.
— Vocês podem imaginar como fui alvo das mais cruéis caçoadas no grupo escolar. Foi uma experiência bastante dura, dada minha idade. Não só riam de mim, me apontavam, no pátio da escola, como aquele que acreditava em Papai Noel e isso resultou num forte isolamento dentro do grupo.
É claro que o menino havia procurado diminuir o atrito insuportável. Naquela altura, a apostasia de suas crenças era o que menos o preocupava, mesmo que ele desconhecesse a palavra. Além disso, sua confiança na mãe estava abalada.
— Vocês entendem? Não era apenas uma questão de coragem moral, o que já é bem difícil para adultos quanto mais para uma criança pequena. Mas uma ruptura entre meu mundo primeiro, materno, e minhas crenças grupais, etárias, se vocês quiserem, enfim, do meu mundo, ou do mundo que se armava, não só à minha volta mas com minha participação, já que eu era parte integrante, ativa, dele.
A divisão era profunda, não pela questão em si, apenas, mas por tudo que significava. Afinal, aos sete anos não se tem senso crítico, e a cisão se tornou funda, sem termo médio que a diminuísse.
— De mais a mais — continuou João Pedroso — a forma como minha mãe colocara a questão, ou seja, em termos de crença, tornou impossível uma decisão. Claro, hoje eu posso ver isto com algum distanciamento. Mas naquela idade, eram pontos irreconciliáveis, um abismo de incerteza e indecisão que não podia ser aproximado. Enfim, uma polaridade insuportável que se estendia a toda matéria ética, estética, religiosa, abrangendo, mais tarde, todas minhas convicções sociais, políticas, econômicas. Em resumo, o mundo das idéias e das ações, como vocês mesmos colocavam o assunto, ainda há pouco.
— E então — perguntou Ninico, com seu jeito manso — como você saiu dessa?
— Não saí. Não havia como sair, e do meu ponto de vista infantil não só a questão não era nítida como seria a causa do mais completo desastre, dada a importância que o Natal tinha para mim, naquela época. Acho que minha aversão à data vem daí. Reparem nas implicações: ou me tornava um pária social, isto é, dentro da minha sociedade, a escola, meus amigos, ou minha mãe saberia de minha descrença, já que o Natal nada me reservaria, se ela tivesse razão. Mas o pior ainda não estava aí: não importava o que eu declarasse a uns e outros, a divisão permaneceria, interna, dentro de mim, mesmo que eu “quisesse” aceitar uma ou outra opinião, uma ou outra crença, já que era disto que se tratava. E então, a angústia foi excessiva e adoeci.
— Meu Deus, João, por que você não falou com sua mãe?
Obviamente não tinha sido esta a intenção dela — apartou Feliciano. — Ou mesmo seu pai, um tio, avô.
— A criança tem sua lógica própria. A reação dos dois lados, minha mãe e os amigos, foi tão oposta que o assunto se tornou, tabu, proibido, para mim. João Pedroso contou, então, como sua doença veio diminuir o conflito. Chegavam os primeiros dias de novembro e o médico o proibira de qualquer esforço, o que incluía sua ida à escola. Em casa, filho único, acamado nos primeiros dias pela febre nervosa, João Pedroso teve que enfrentar muitas horas de solidão e decorrente ensimesmamento. Filho obediente, ele queria muito acreditar no que a mãe lhe dissera, o que foi facilitado pela ausência dos colegas e amigos. Outra vez no ninho materno, a adequação ao movimento da casa, seus tempos, suas práticas, permitiram finalmente ao menino o retorno à cultura materna, matriarcal? E a doença se evaporou, como se jamais se houvesse instalado. A seqüência das férias consolidou seu melhor estado de saúde, e mesmo a aproximação do Natal não lhe trouxe maiores sobressaltos, uma vez que sua divisão interior quase desaparecera.
***
Cerca de meio século depois, João Pedroso saiu para o alpendre elevado, aonde raramente ia, tanto pelo vento cortante dos dias frios, como pela inclemência da luz, que galgava os céus, fronteira à fachada do sobrado nos dias de verão, e dirigiu-se à terceira coluna de tijolos ingleses envernizados. Contou sete blocos, de baixo para cima e, lentamente, sacou o pequeno tijolo, no silêncio da casa ainda adormecida. Apanhou algo que meteu no bolso da calça e voltou a encaixar o bloco em seu lugar, bem justo, sem deixar qualquer irregularidade que o diferenciasse dos demais.
A construção esquinada cavalgava um outeiro que lhe permitia sobrever, da rua em cotovelo que subia à esquerda, as casas menores, pouco acima do peitoril de suas janelas, enquanto à direita, telhados e beirais acompanhavam a íngreme descida. A quem passava, na rua, pouco mais lhe era permitido notar que a alta estante de livros, quase a atingir o teto de um dos cômodos, quando as pesadas cortinas não estavam corridas.
João Pedroso herdara do pai, na década de sessenta, o que a cidadezinha preguiçosa gostava de considerar sua mais bela construção, produto da corretora de café, então localizada no rés-do-chão do prédio, amanhada com proficiência e algum descortino comercial, desde os anos trinta.
Diferentemente do pai, João Pedroso nunca tivera a mesma capacidade, ou sua habilidade no jogo do comércio atacadista. Compras infelizes e vendas precipitadas tinham dilapidado o capital diligentemente acumulado, e a década de setenta viu a ruína do rendoso negócio paterno. Não que João Pedroso trabalhasse pouco ou mal. Ao contrário, a época adulta fora um nunca findar de trabalhos, esforços e preocupações cujos resultados, sempre negativos, haviam aportado no naufrágio mais completo.
“Quase como uma maldição”, repetia ao correr da vida, como um refrão ominoso, um dobre de finados. E então seu pensamento voltava ao pequeno pedaço de papel, cuidadosamente dobrado, metido sob o tijolo da sétima fileira da terceira coluna do alpendre.
Foi quando João Pedroso começou a jogar, na esperança de equilibrar o orçamento da casa, já que ao da firma não restava qualquer esperança. Da loteria estadual ao bingo, e deste ao bookmaker da cidade mais próxima, foi uma evolução tão rápida quanto danosa, desastrosa. A tentativa de sonegação fiscal da corretora de café, por um desses acasos improváveis, redundou numa multa que montava a quase dez vezes o valor do imposto, como uma pá de cal sobre a firma paterna.
A venda da parte inferior do prédio e suas instalações evitou mal maior, permitindo a João Pedroso manter a moradia no sobrado, embora o passadio fosse escasso e fortemente controlado. Móveis, roupas, enfim, qualquer despesa era eternamente, ou quase, protelada, ao custo de muito cuidado no uso de cada objeto, sentindo-se mesmo, na casa, a falta de qualquer comodidade que não viesse dos bons tempos. Ternos, gravatas, camisas sociais de colarinho engomado, o vinco das calças de tropical, os sapatos engraxados, tudo era alvo do trabalho cotidiano da mulher e duas pretas, retaguarda doméstica raramente entrevista entre o corredor e as áreas de serviço, partes da casa sem forro, construídas em telha-vã. O João Pedroso dos amigos era, por assim dizer uma ponta de iceberg, mostruário, vitrina da vida do sobrado e, por ele, a cidadezinha jamais saberia do real estado das finanças familiares. E assim ele arrastara os últimos anos, vivendo de pequenos expedientes, de despesas inexistentes.
Mas naquela manhã da véspera de Natal João Pedroso não estava preocupado com isto. Não dormira bem, rolando na vasta cama de casal que fora dos pais, ora puxando as cobertas até o pescoço, com arrepios de frio, ora empurrando-as para longe do corpo, em calores inusitados. E tão logo a luz cinzenta da manhã se filtrou pelas venezianas de madeira azul-claras, saltou do leito e, de camisolão e chinelas, dirigiu-se ao alpendre em silentes passos de gato. De posse do objeto demandado e, talvez porque o não tivesse tocado por mais de cinqüenta anos, meteu-o no vasto bolso sem lançar-lhe uma única mirada, dirigindo-se ao banheiro, para as abluções matinais.
Durante o café, enquanto passava uma vista ao jornal, João Pedroso sentia o pequeno papel — um bilhete? — como um objeto morno, no bolso do paletó, a pesar-lhe incomodamente o peito, e perguntou-se por que o pegara, após tantos anos, e com que finalidade.
***
— Bem, foi então que Alberto chegou — disse João Pedroso, baixinho, dando uma bicada no conhaque, sem mesmo se aperceber.
— Que Alberto, o Gaguinho da Maria Preta? — interrompeu Feliciano, mal contendo a curiosidade.
— Não, não é do tempo de vocês. O Alberto Monteiro era meu primo, por parte de pai. Moleque traquinas e malcriado, o Alberto era o terror de minha mãe e das criadas. Um ano mais velho que eu, era sempre quem inventava os malfeitos, as travessuras, quem começava as brigas e brincadeiras brutas, maldosas. Vocês sabem, cuspir, do sobrado, na cabeça dos passantes, prender barata viva entre a xícara e o pires da mamãe ou amarrar os cadarços dos sapatos da negrinha, por baixo da mesa. Toda a casa ficava em polvorosa, entre os malfeitos e as zangas e castigos. E, como não podia deixar de ser, em muitos eu embarcava, mesmo a contragosto.
Enfim, mesmo assustado com sua ousadia, eu admirava o Alberto e me divertia, como qualquer criança, com as traquinadas que ele inventava. Quando a Maria Preta correu como alma penada pelo meio da casa, embrulhada no lençol, por causa do calango que o Alberto colocara debaixo de seu travesseiro, a mamãe perdeu a paciência e nos decretou três dias de castigo, presos no quarto grande, sem revistas ou brinquedos. Saíamos só para as refeições, na sala de jantar, com papai e mamãe de cara feia e voltávamos para o “retiro espiritual”, como ela dizia, a fim de que “puséssemos a mão na consciência”, como “meninos de família” e não “bugres do mato”.
Faltavam poucos dias para o Natal, mas não foram dias muito amargos, mesmo com a liberdade perdida, já que Alberto não sossegava, nem mesmo preso num quarto. Arremedava a mamãe, imitava a Maria Preta, tecia planos mirabolantes para quando saíssemos da “prisão”, jurava vingança contra a negrinha que, segundo ele, fora a delatora, no episódio do lagarto.
— Enfim, apartou Mariano — uma criança normal.
— É claro, normal — sorriu João Pedroso pela primeira vez, desanuviado pela lembrança do primo — mas duvido que você ainda o classificasse dessa forma, caso ele passasse um dia em sua casa. Enfim, contei isso para vocês terem idéia de como era o Alberto, naquela época. E assim, ao final do segundo dia de castigo e como minha mãe mencionasse manhosamente o Natal a meu pai durante a refeição, quando voltamos ao nosso castigo contei ao Alberto o que ela me dissera sobre assunto tão palpitante. Alberto quase engasgou de tanto rir, de minha credulidade.
— Ô, João, Papai Noel são nossos pais! Ela te contou essa história pra você ser um bom menino, ficar quietinho e não encher a paciência dela. Ela me acha um bom menino? Eu acredito em Papai Noel? Então como você explica que eu ganhe presentes de Natal todo ano? A bola de futebol, a bicicleta, como você explica isso?
— Bem, é inútil dizer o quanto essa terceira guinada nas minhas crenças, em tão curto período de tempo, mexeu com a minha cabeça. Então ela tinha mesmo me enganado Pensei na vergonha que eu passara na escola, nas caçoadas, nos meus esforços para acreditar nela, nas minhas boas intenções e prometi, a mim mesmo, nunca mais ser tão crédulo, nem mesmo com meus pais. Prometi, também de mim para mim, sem nada dizer ao Alberto que, quando saíssemos do maldito quarto, ele não seria o único a inventar maldades. Só que eu teria mais cuidado, muito mais cuidado do que ele. Além de fazer as travessuras, eu cuidaria para não ser implicado nelas. E então meu prazer seria duplo, já que o castigo cairia sempre sobre outra pessoa. E por que não a negrinha que me fizera ficar trancado por três dias?
Assim, o último dia de castigo foi o mais prazeroso deles. Alberto, cansado de não fazer nada, se calara, emburrado, num canto, enquanto eu aproveitava para imaginar um monte de pequenas maldades com todos da casa mas, principalmente, como evitar que se pudesse saber a autoria do malfeito.
Aquela semana de Natal foi muito atribulada, lá em casa, para eles e para nós, e mamãe acabou telefonando ao tio para que fosse buscar o Alberto, pois que, com dois, ela já não estava agüentando. O primo se foi e, livre dele, eu pude armar meus álibis com mais facilidade. Ninguém entendeu como tanta coisa saía errado sem causa aparente. E foi um Natal realmente atabalhoado.
— E nunca te pegaram? — perguntou mansamente Ninico.
— Você quer dizer alguém lá de casa? Mamãe, papai, as empregadas? Não. Segundo eu pensava, eu já tinha sido apanhado, não é mesmo? E só podia me vingar não pagando pelo malfeito que viesse a cometer; esse era meu primeiro e último cuidado, ou não haveria vingança. Alguém mais, qualquer um, devia pagar o preço, desde que não fosse eu, ou as contas não seriam acertadas. Lembrem-se, eu me sentia credor de um mau pagador. O equilíbrio só viria no caso de, tendo sido mau, eu receber meu presente de Natal, como Alberto dissera que receberia.
— Em resumo, através de ações, não de palavras, você discutia ética com sua mãe — definiu Mariano.
— Não creio que tenha sido apenas isso — retrucou Feliciano. — Já não se tratava apenas de “provar” a existência ou não de Papai Noel, ou do espírito de Natal, como querem alguns, mas o valor prático do comportamento ético como fonte de justiça. A vingança, que equilibraria a balança, nos força a entrar no terreno da justiça, como compensação ao bem e ao mal, se entendi bem a sua reação infantil. E agora já não mais estamos no terreno da filosofia, mas da religião ou, como você disse no início da história, da crença.
— Mas eu creio que se tratou sempre disto, não? Quero dizer, a história de João. A discussão ética foi sempre uma ferramenta, não um fim em si mesmo — raciocinou Ninico em sua voz mansa — desde que eu disse que Papai Noel não existia. Só não entendo como você pretende provar aexistência dele.
— Bem, me deixem terminar a história e vocês vão entender — retrucou João Pedroso, com rosto amargurado.
As lembranças infantis das traquinadas já estavam longe, como ficou claro para todos, e o ambiente tenso voltou a tomar conta dos amigos, do bar, da noite.
— A noite de Natal chegou e eu fui me deitar cedo, cheio de expectativa, como vocês podem imaginar. Não sem antes, no entanto, realizar todos os ritos anuais ensinados por minha mãe. E deles fazia parte uma grande meia pendurada, símbolo da gratidão, a mão aberta à oferenda. Escolhi a maior de todas, a meia de futebol de que eu tanto gostava e prendi-a em um prego na parede da sala. Custei muito a pegar no sono em meio a tanta excitação. Afinal, tratava-se mais do que de um simples Natal.
Por trás daquilo, houvera muito sofrimento. Aos sete anos, porém, não há insônia que dure mais de cinco minutos, e eu dormi como um anjo até manhã alta, o sol entrando pelas venezianas, zangado por ter que se espremer tanto, como minha mãe dizia, me chamando de preguiçoso. Já acordei pulando da cama, desinsofrido, e corri descalço, de pijama, à sala, onde ficava a árvore de Natal. Não havia nada para mim sob a árvore enfeitada. Eu não pude acreditar e olhei, então, para onde deixara a minha meia de futebol. Mas tampouco ela estava lá. Ficou apenas um pedaço de papel, espetado no prego da parede, com um poema cujo texto é o seguinte:
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que, só para mim
Anda o mundo concertado.
— O Desconcerto do Mundo — gritou Ninico — a mensagem de Camões é clara: não há justiça no mundo, exceto para ele. Como vocês vêem, eu estava certo. Papai Noel não existe — gargalhou triunfante.
— Neste caso — gritou Feliciano, acima da risada de Ninico — quem espetou o bilhete no prego e levou a meia? Você se ateve ao significado do bilhete, não à sua existência! Sua análise foi parcial, então Papai Noel existe! — concluiu vitorioso.
— Pronto, voltamos à discussão maluca! — Mariano, cada vez mais cético. — Que importa quem colocou o bilhete no prego? E se foi a mãe ou o pai de João, como castigo por seus atos? Ou seja quem for? Como deduzir daí a existência de Papai Noel?
— Pelo próprio bilhete, meu amigo. Ele está escrito num dialeto esquimó oriental que, segundo o lingüista da universidade, só é falado em determinada região do Pólo Norte — disse João Pedroso cansado, o rosto tenso, colocando o papel amarelado pelo tempo sobre o mal polido mármore do tampo da mesa do café.
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Carlos Nascimento Silva, 64 anos, nasceu em Varginha — MG, e foi criado no Rio de Janeiro. É mestre em Literatura Brasileira e professor universitário aposentado. Começou a escrever — poemas, pequenos contos, crônicas — aos 14 anos. Admirador de Leon Tolstoi, Thomas Mann, Guimarães Rosa e Machado de Assis, chegou a perder um ano escolar porque, em vez de ir para o colégio, devorava livros, escondido, na biblioteca de sua avó.
A Casa da Palma (Relume Dumará, 1995), seu primeiro romance publicado, foi premiado pela União Brasileira de Escritores e pela Associação Paulista de Críticos de Arte. Publicado na Alemanha (Das Palmenhaus, Europaverlag, 1998), obteve grande sucesso de crítica e de público. Em 2006, o escritor lançou novo romance, “Desengano”, pela Editora Agir.
Fonte:
Contos para um Natal brasileiro. RJ:Relume Dumará / Ibase, 1996.
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