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Sobre o autor: http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/01/autran-dourado-1926.html
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Sendo essa uma narrativa composta de símbolos, não se pode ter idéia exata de como ela será interpretada, sentida. Pois esvaziada de sua carga significativa se transforma em signo. Assim sendo vejamos uma dentre muitas possibilidades de leituras que essa "ópera barroca" oferece.
1. O Sobrado
O habitar de Rosalina é feito em um jogo de contrários que compõe o sobrado. É a partir desse jogo que Rosalina é. O sobrado é uma coisa que faz com que a quadratura se manifeste em um jogo de movimento e repouso. Rosalina é a união permanente entre Lucas Procópio e João Capistrano porque só como só como essa unidade dual pode ser.
O sobrado é também símbolo da linguagem, pois ao se habitar o sobrado, constrói-se a linguagem, que é a casa do ser. Assim, a linguagem barroca não está em Ópera dos Mortos apenas com a função de descrever o sobrado. Não se trata de falar sobre a casa, mas de construí-la com a única linguagem possível. Em outros termos, só a linguagem plurissignificativa do barroco pode construir a história de uma personagem plural como Rosalina.
Em Ópera dos Mortos o sobrado é uma espécie de espaço cênico onde acontecem os grandes atos da ópera. É o local onde a narrativa começa e termina.
O narrador convida o leitor para que o veja com a memória e com o coração. Revela que o sobrado, além da sua beleza barroca, tem uma história e um significado profundo. Estique bem a vista, mire o casarão como num espelho, e procure ver do outro lado, no fundo do lago, mas além do além, no fim do tempo. O sobrado representa a Gente Honório Cota, os seus triunfos e derrotas, as noites de festas e as noites de solidão. Um verdadeiro referencial memorialístico dessa gente. Cada detalhe dele conta um pouco da história dos Honório Cota, relata os momentos ali vividos. O reboco caído em alguns trechos como grandes placas de ferida mostra a decadência dessa família com as suas feridas à mostra para toda a cidade.
O sobrado é o estigma Honório Cota fincado no centro da cidade como marco de orgulho e grandeza, sisudez e vulnerabilidade. Assim pode-se dizer que quando o espaço é dominante, a temporalidade é virtual, e que, quando o tempo é dominante, a espacialidade é virtual. Rosalina, assim como seu pai, Coronel João Honório Cota, também se sentia como o sobrado, o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos. Rosalina estava fincada ali, sem comunicação com nenhuma pessoa da cidade, exceto Quiquina, sua antiga ama, que era muda, e Emanuel, homem que cuidava dos seus negócios e filho do único amigo de seu pai, que a via apenas uma vez no ano para deixá-la informada de como andavam os seus bens. Ela preservava o orgulho da família não se mostrando a ninguém, permanecendo além das paredes do sobrado, conservando assim a grandeza da mágoa da sua gente.
Estava radicalmente fechada para o mundo desde a sua adolescência, quando seu pai morrera. Sofria a vulnerabilidade da sua dolorosa e imensa solidão. Fechou-se no sobrado assim como Des Esseintes, personagem do romance simbólico À Rebours de Huymans que fechou-se em seu quarto e tapou os ouvidos ao som do insistente exterior.
Rosalina, tal como o sobrado, era sólida, intransponível, mesmo em declínio. Enquanto o sobrado tinha uma arquitetura barroca, ela apresentava uma personalidade conflitante, fragmentada e contraditória. O narrador convida o leitor para que veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa…. É preciso que o leitor visualize a imagem do sobrado para melhor compreender a sua dimensão simbólica e a íntima ligação deste com os Honório Cota. E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para mais além da mais antiga memória.
Dessa forma, percebe-se que "o sobrado", construído em estilo barroco, valorizando os contrastes entre claros e escuros era a perfeita arquitetura para abrigar tantos conflitos entre o ser e o não ser, tantas antíteses sentimentais que habitavam aquele espaço imaculado e santo, sacro e profano, compostos de importantes detalhes e significantes arestas. João Capistrano fazia questão de que o sobrado fosse a união de dois tempos, duas gerações, duas histórias. Quando da sua construção, a casa era um só pavimento que retratava muito bem a alma do seu construtor, Lucas Procópio, homem da terra, inabalável, rústico e forte. No tempo de Lucas Procópio a casa era um só pavimento, ao jeito dele: pesada, amarrada ao chão, com as suas quatro janelas, no meio da porta grossa, rústica, alta..
Com a morte de Lucas Procópio, seu filho, João Honório Cota, mandou construir um outro pavimento que fosse a continuação do primeiro, não queria que se percebesse diferenças entre ambas, mas que apresentasse uma unidade de linhas, cores, que o sobrado tivesse uma só feição. Ele não queria a dissociação entre memória e imaginação. Não queria também descaracterizar a obra de seu pai, queria fazê-la crescer, ostentá-la e uni-la à sua. Não quero mudar tudo, disse. Não derrubo obra de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele. […] Eu quero uma casa só, inteira, eu e ele juntos pra sempre.. O sobrado era uma espécie de palco com uma permanente apresentação, um espetáculo que reverenciava o passado que é a memória, enquanto a mobília com seus significativos ornamentos compõe o cenário que mantém as personagens em atuação na Ópera dos Mortos. Assim, o sobrado era um espaço sagrado.
Longe de ser indiferente, o espaço num romance exprime-se, pois, em formas e reveste sentidos múltiplos até constituir por vezes a razão de ser da obra. Ele passa a ser não apenas o espaço físico onde habitam as personagens, mas apresenta-se como espaço de angústia quando Rosalina sente pesar a solidão, questiona o seu estado de abandono e convive com os conflitos; como espaço psicológico quando ele, através da sua imagem, e do seu significado, faz com que Rosalina recorde o seu passado. O espaço, quer seja "real" ou "imaginário", surge portanto associado, ou até integrado, às personagens, como o está à ação ou ao escoar do tempo. O narrador atento a essas possibilidades, mais uma vez, chama a atenção do leitor para sua metáfora maior, o sobrado. O espaço por ele criado meticulosamente para ser o símbolo principal da sua narrativa.
Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas sensação, imagina; veja a ilusão do barroco, mesmo em movimento é como um rio parado; veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo, veja: a casa ou a história.
2. A Escada
A escada, em Ópera dos Mortos, é uma ponte de ligação que une os dois pavimentos do sobrado, o térreo (a parte antiga) e o andar de cima (a parte nova) que representa a parte superior do sobrado e que dá a ele uma postura nobre e imponente. É dentro desse espaço que Rosalina se divide e faz da escada a ponte que a conduz para a travessia da sua existência. É por essa escada que ela, no ritual de descê-la ou subi-la, apresenta as mais importantes decisões da sua vida.
Para o povo da cidade o ato de descer as escadas está associado ao poder. Quem desce vem do andar superior, logo, reina. Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rainha…. Mantendo o mesmo mistério da descida ela sobe ritualisticamente deixando apenas um rastro de silêncio. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como desceu. Quando o seu pai morreu, o coronel João Capistrano Honório Cota, depois de muito tempo sem ter contato com o povo da cidade e sem receber esse povo no sobrado, Rosalina só apareceu uma vez no velório, foi ao descer a escada para colocar o relógio de ouro que o pai usava na parede ao lado do outro. Descia a escada, todo mundo de olho nela.
Depois, num outro momento significativo da sua vida, Rosalina usou a escada para fugir dos braços de Juca Passarinho quando já se entregava a ele. Quando ele procurou Rosalina, viu-a no meio da escada, correndo fugia. Temos aqui a escada como elemento de fuga, uma ponte de ligação também entre o corpo (térreo) e o espírito (o andar de cima). Rosalina se refugiava no andar de cima do mundo e de suas tentações. O andar de cima era para ela a redoma do seu espírito. Seu quarto, o seu mais íntimo recanto. Por meio dessa admirável divisa, a casa e o quarto são marcados por uma intimidade inolvidável. Com efeito, haverá imagem de intimidade mais condensada, mais segura de seu centro que o sonho do porvir de uma flor ainda encerrada e recolhida em sua semente?
Perturbada com o que sentia por Juca Passarinho e envergonhada de quase ter concretizado totalmente a sua paixão, chegou a pensar em nunca mais usar a escada para não fundir a Rosalina introspectiva à Rosalina expansiva que desabrochava. E se não descesse, se não descesse nunca mais?. A escada era o passaporte dos seus conflitos, só queria transpô-la quando se sentia forte, segura, senhora de si, sem os arroubos da paixão. Recomposta, ela desceu.. Essa mesma escada conduzia Rosalina embriagada pelo vinho e pela paixão ao andar de cima onde finalmente ela resolve abrir o seu quarto para viver intensamente a sua paixão nos braços de Juca. O vinho, a sensualidade e a paixão foram os ingredientes afrodisíacos que deram a Rosalina coragem para conduzir pela escada o seu amante e ter com ele uma noite dionisíaca. …toda noite, como num ritual, quando subiam a primeira coisa que ele fazia era soltar-lhe os cabelos.
No entanto, quando Rosalina depois de todas as transgressões que fizera, abrindo o seu quarto, o seu mundo, o seu corpo, perde o domínio sobre todas as Rosalinas, sobe pela última vez permanecendo no mundo da ilusão, no mundo lúdico dos loucos e desce quando tem que deixar o sobrado para ir para um sanatório, mas pensando que vai viver um sonho ou mais uma ilusão. Antes de terminar de percorrer ritualisticamente toda a escada, quando estava no último degrau ela parou, talvez estivesse se despedindo do sobrado e dos seus mortos, não se sabe, mas foi ainda na escada que ela proferiu sua última palavra no sobrado, encerrando ali o seu "solo" naquela ópera. Quando Rosalina chegou no último degrau da escada, parou, disse qualquer coisa baixinho… ninguém ouviu..
3. A Janela
Era da janela que Rosalina tinha uma comunicação passiva com a cidade. Uma comunicação pelo olhar. Da janela, por trás da cortina, ela observava a cidade e o povo que andava pelas ruas. Assim, através de uma camada protetora, Rosalina filtrava instantâneos da vida lá fora.
Rosalina conhecia o Largo do Carmo palmo a palmo, desde sempre olhando detrás das cortinas a igreja, as casas fronteiras, a Escola Normal, a estrada. Os olhos vazios e mornos miravam o silêncio coalhado da praça, a solidão do descampado às três horas da tarde, o céu de verão sem nuvens, o sol estorricando a terra, reverberando nas paredes brancas, os burricos peados junto ao cruzeiro, os jacás vazios esperando os donos - […] - alguém que entrava no Largo, […] e ela o seguia com a vista, a atenção neutra dos desocupados, até que dobrava a esquina ou se perdia de vista no fim da rua.
O povo via Rosalina somente quando ela aparecia na janela, mas era uma visão sombria, a cortina, feito uma tênue membrana, não, deixava que o povo a visse nitidamente e ainda a protegia contra os olhares curiosos. O próprio narrador direciona o olhar e a curiosidade do leitor em relação a Rosalina, adverte que é necessário antes ver o sobrado, o espaço existencial dela.
Se quiser, o senhor pode ver Rosalina, acompanhar os seus mínimos gestos, como ela acompanhava os passeantes, […] Mas veja antes a casa, deixa Rosalina pra depois, tem tempo.
Para Rosalina a janela era uma espécie de olho do sobrado, através dela gostava de olhar, porém quando via que estava sendo observada logo desviava o seu foco. A cidade vivia em constante expectativa, o povo estava sempre atento a uma aparição de Rosalina. E então, silêncio. Rosalina vai chegar na janela. Tal como se fosse uma celebridade que satisfaz a curiosidade do público com a sua rápida aparição. Rosalina se isolava por trás da cortina para além da janela. Aquele parecia ser o seu casulo intransponível, ela não gostava de ser vista, mas apreciava ver o povo da cidade, afinal essa era a imagem mais viva que a sua visão vislumbrava. Amanhã, da janela do seu quarto, escondida detrás da cortina, ia ver a procissão sair.
4. Flor de Seda
Fazer flores era a única ocupação de Rosalina desde que se fechara dentro do sobrado. As flores tão bonitas que ela fazia. Pra divertimento, era rica, não carecia. Tinha, no seu silêncio permanente, como única forma de expressão, fazer flores de papel crepom e seda. Eram essas flores a única coisa sua que o povo da cidade podia ver, pegar e lembrar dela, isso devido a Quiquina, sua empregada antiga que as vendia na cidade. Quiquina cuidava da venda das flores. Quem contratava, marcava os preços.
Essas flores, símbolo das virtudes, sobretudo de Rosalina, eram para a cidade, também, símbolo de comunicação, pois era através delas, das suas cores e formas, que eles imaginavam Rosalina que há mais ou menos quatorze anos não viam. Rosalina era, para o povo, a flor do sobrado, uma rara flor, vista poucas vezes. Era através das flores que fazia que ela indiretamente participava dos eventos sociais da cidade. As suas flores, todos os anos, ornamentavam o andor de Nossa Senhora do Carmo, o que dava a ela um certo orgulho. …o andor de Nossa Senhora do Carmo especialmente preparado […] Queria ver as flores de papel e de pano, aquelas flores que só ela sabia fazer tão bem. Assim, ela fabricava flores para festas de cidade grande, as flores de laranjeira quando tinha casamento (as que ela menos gostava de fazer), os lírios de primeira comunhão etc. O ofício de fazer flores era também para Rosalina uma forma de atenuar a pesada carga que carregava ao longo dos anos.
O fato de se tornar a guardiã da memória dos seus ancestrais e enclausurar-se em casa tal como os mortos no túmulo aumentava o peso da vida (que) está em toda forma de opressão; acaba por aprisionar cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas. Por isso o ato de fabricar flores, atividade tão delicada, representa a saída que Rosalina encontrou para suavizar o enorme peso que era a sua vida. Ela, apesar de toda uma existência conflituosa, movida pela vivacidade e inteligência, sabia que para contrapor tamanho peso era necessária a leveza, uma leveza consciente. Confirma-se assim em Rosalina a busca da leveza como reação ao peso do viver.
5. Rosalina
Rosalina, como personificação do sobrado (e da linguagem que ele simboliza) é também metáfora ou imagem da memória dos mortos que compõem o sobrado. Rosalina é quem mantém Lucas Procópio e João Capistrano presentes para a cidade que deseja esquecê-los, mas não pode. A cena do enterro de João Capistrano mostra que Rosalina, contrariando o desejo da cidade, não enterrou seus mortos:
Foi assim que Rosalina fez, todos os gestos medidos: viu o pai no caixão, o corpo coberto de flores, cruzou os dedos como quem ia rezar mas não rezou. Súbito se voltou para onde tinha vindo. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como desceu.
Rosalina não enterrou o pai, não cumpriu o ritual esperado pela cidade. Essa foi uma das formas de mantê-los presentes, pois o sobrado é Lucas Procópio e João Capistrano, mas Rosalina é a memória dos dois. Entende-se assim porque Autran Dourado compara, na sua Poética de Romance: matéria de carpintaria, os mortos de Rosalina aos mortos de Antígona. A lei de Rosalina é a lei dos deuses ("Não esqueço, ninguém deve esquecer") que se opõe à lei da pólis. Enterrar João Capistrano significaria enterrar sua briga com a cidade, mas para Rosalina isso significaria tirar a dignidade do pai, assim como não enterrar Polínices significaria, para Antígona, tirar a dignidade do irmão.
A questão da memória está visceralmente ligada à do tempo. São símbolos do tempo em Ópera dos Mortos os relógios e as voçorocas, como já citado.
6. Relógios
Os relógios, embora parados referem-se à dinâmica do tempo. Para Autran Dourado, o tempo não é concebido como mera sucessão de passado, presente e futuro, mas uma ciranda, uma roda.
O primeiro relógio que pára em Ópera dos Mortos é o comemorativo da independência que João Capistrano pendura na parede da sala do sobrado no início de sua briga política, depois o relógio armário, quando da morte de sua esposa, Dona Genu e, por fim, o relógio de ouro, parado por Rosalina no dia da morte de João Capistrano. Os relógios parados permanecem presentes para marcar o tempo contínuo dos mortos. Mesmo mortos, continuam a operar, marcam tanto a vida do sobrado e de Rosalina como a da cidade. Mesmo em todo seu isolamento Rosalina e o sobrado participam da vida da cidade. Isso pode ser observado em várias passagens pela fala do narrador, como no segundo bloco, quando conta ao observador sobre a chegada do relógio armário ao sobrado:
E vinha gente de longe regalar a vista (...) deliciar os ouvidos com a música prateada das pancadas finas, aquela música que mais tarde, quando o relógio parado, ia marcar as horas do nosso remorso.
Observamos que, no momento da narração, o relógio já estava parado, mas sua música ainda se fazia ouvir.
Os relógios, mesmo parados, estão em movimento, mostrando que passado, presente e futuro não se sucedem, mas se imbricam:
Foi quando o coronel João Capistrano Honório Cota morreu. Tudo foi de novo, igualzinho relógio de repetição.
(...)
Tudo repetido, a gente assistia tudo de novo pra trás. De novo se voltava feito numa fita-em-série onde o herói ficou em perigo e a gente não sabia como é que ele vai sair para continuar suas cavaleiranças. A gente esperava que a cena se repetisse para ter uma outra solução mais conforme, não a que ficou parada, sugerida.
Entretanto, a cena não tem solução, pois isso significaria parar a roda do tempo.
A morte de D. Genu marca o início do silêncio entre o sobrado e a cidade, e a de João Capistrano o estabelecimento desse silêncio, mas o silêncio não cessa a comunicação, pois o sobrado determina, em certos aspectos a vida da cidade, como já observado.
Os relógios também se imbricam na personalidade de Rosalina, o que não é nada mais nada menos que o imbricamento das questões do tempo, da linguagem e da memória:
Mas ela não podia mexer nos relógios, não devia nunca mexer naqueles relógios. Os relógios eram um quebranto, parados eles batiam como de noite aquele coração penado no meio da casa (...).
O tempo aqui é como um rio: mesmo parado continua em movimento. Rosalina não pode mexer nos relógios porque não pode mexer no tempo, mas como memória pode fazer com que aquilo que já não é retorne a ser, pode tornar o tempo uma ciranda que gira permanentemente e que se transforma também no tempo da cidade. O sobrado, símbolo da linguagem, é o que guarda esse tempo-ciranda e, em seu silêncio, fala à cidade.
7. Voçorocas
O trabalho do tempo, que transforma as coisas em ruínas é simbolizado pelas voçorocas. Elas provocam estranhamento em que as vê porque traz à tona aquilo que é a única certeza do homem, mas que lhe é absolutamente desconhecido: a morte. A dificuldade de encarar as goelas de gengivas vermelhas das voçorocas é a dificuldade de encarar a finitude humana, o limite. Por isso elas assustam tanto Juca Passarinho, sempre alegre e falante: elas o colocam de frente para o nada e provocam a experiência do silêncio:
Já vi aluvião, erosão virar voçoroca, disse José Feliciano, mas deste tamanhão, nunca na minha vida!
Desta vez não mentia, não exagerava no elogio. Tinha até medo de olhar aquelas goelas de gengivas vermelhas e escuras (...). Que coisa mais medonha, seu Silvino. Parece que não acaba mais essa começão de terra. Coisa do diabo, mais parece esta fome toda de terra.
As voçorocas remetem, assim como os relógios, remetem à dinâmica do tempo: são a própria presença do passado, do que já não é naquilo que é (presente), mas não indicam futuro a não ser a morte, a destruição. Não há futuro para a cidade, assim como não há futuro para Rosalina. Trata-se de uma cidade marcada pelo trabalho (ópera) dos mortos, que Rosalina / memória cuidou de manter presentes tanto para si como para a cidade. Tudo é determinado pelo sobrado e seus mortos. Mesmo em ruínas, é o sobrado que se mostra ao narrador e a partir dele desenrola-se a narrativa. As voçorocas estão para a cidade assim como os relógios estão para o sobrado: "O sobrado era o túmulo, as voçorocas, as veredas sombrias".
Observações gerais
O narrador de Ópera dos Mortos também contribui para a concepção de tempo como ciranda, continuidade e contigüidade. A obra é narrada sob vários focos narrativos, o que implica dizer que não há um, mas vários narradores. Por ser segundo o autor, uma obra mais trágica do que romanesca, destacamos aqui o narrador coral, que interpreta os eventos à moda do drama ático. Já no primeiro bloco, observa-se a presença do coro, como nos parênteses do fragmento abaixo:
Um recuo no tempo pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa (não, oh tempo, pare as suas engrenagens e areias, deixe a casa como é, foi ou era, só pra gente ver, a gente carece de ver; impossível com a sua mediação destruidora, que cimenta, castradora); esqueça por um momento os sinais, os avisos surdos das ruínas, dos desastres, do destino.
Principalmente a partir do capítulo “A Semente no Corpo, na Terra” (Rosalina grávida), quando, ainda segundo Autran Dourado, Rosalina fala, mas sem discurso, só presença, tem-se o discurso do coro. É ele que interpreta as muitas Rosalinas, que Juca Passarinho não consegue entender:
Mas o corpo era o mesmo, com dificuldade ele via o mesmo corpo onde as duas se alternavam. O corpo sem a noite continuava a existir? Era possível só a luz, a escuridão total?
Ele [Juca Passarinho] se perdia em pensamentos absurdos, não esses, outros – feitos de imagens concretas (...) mas que desses pensamentos se aproximava na sua luta incessante de querer entendê-la para repousar em duas Rosalinas(...) que tinham de comum entre si o traço de união, o corpo...
(...)
E de repente descobriu com espanto: ela era três e não duas. A dona Rosalina que existia entes de sua chegada ao sobrado e continuou a existir até aquela noite (...), a Rosalina das noites em fogo e sangue, em fúria consumida, e a dona Rosalina diurna de agora, perto de quem humildemente ele ficava (...) Essas distinções eram demais para ele, homem simples.
E assim o agregado desiste de entendê-la e passa a aceitá-la, mas é o coro quem interpreta, porque um narrador onisciente seria contraditório com a concepção de linguagem dessa obra que barroca que dialoga com a tragédia. Se a tensão harmônica dos contrários é a base da narrativa, não pode haver certezas absolutas exclusivas de um narrador.
Ópera dos Mortos interpreta as questões linguagem, memória, ser e tempo em uma perspectiva deliberadamente ambígua. A obra recusa os conceitos maniqueístas e concebe a unidade na dualidade. A linguagem barroca e trágica revela a imanência recíproca das questões abordadas em sua originalidade. Nesse sentido é um “acontecer poético” e cria mundo, mas não um mundo paralelo ao chamado “real”. O mundo magistralmente criado em Ópera dos Mortos é real naquilo que tem de inaugural: a paródia de elementos barrocos e trágicos interpretando originalmente as questões que inquietam a humanidade desde seus primórdios.
Fontes:
Denilson Albano Portácio - Universidade Federal do Ceará
Laura Goulart Fonseca - doutoranda em Ciência da Literatura, Teoria Literária, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Marilúze Ferreira de Andrade e Silva - Departamento das Filosofias e Métodos - FUNREI
Carla Aparecida Alves Bento, Mestranda em Literatura Brasileira - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/opera_dos_mortos
Sobre o autor: http://singrandohorizontes.blogspot.com/2010/01/autran-dourado-1926.html
–––––––––––––––––––––
Sendo essa uma narrativa composta de símbolos, não se pode ter idéia exata de como ela será interpretada, sentida. Pois esvaziada de sua carga significativa se transforma em signo. Assim sendo vejamos uma dentre muitas possibilidades de leituras que essa "ópera barroca" oferece.
1. O Sobrado
O habitar de Rosalina é feito em um jogo de contrários que compõe o sobrado. É a partir desse jogo que Rosalina é. O sobrado é uma coisa que faz com que a quadratura se manifeste em um jogo de movimento e repouso. Rosalina é a união permanente entre Lucas Procópio e João Capistrano porque só como só como essa unidade dual pode ser.
O sobrado é também símbolo da linguagem, pois ao se habitar o sobrado, constrói-se a linguagem, que é a casa do ser. Assim, a linguagem barroca não está em Ópera dos Mortos apenas com a função de descrever o sobrado. Não se trata de falar sobre a casa, mas de construí-la com a única linguagem possível. Em outros termos, só a linguagem plurissignificativa do barroco pode construir a história de uma personagem plural como Rosalina.
Em Ópera dos Mortos o sobrado é uma espécie de espaço cênico onde acontecem os grandes atos da ópera. É o local onde a narrativa começa e termina.
O narrador convida o leitor para que o veja com a memória e com o coração. Revela que o sobrado, além da sua beleza barroca, tem uma história e um significado profundo. Estique bem a vista, mire o casarão como num espelho, e procure ver do outro lado, no fundo do lago, mas além do além, no fim do tempo. O sobrado representa a Gente Honório Cota, os seus triunfos e derrotas, as noites de festas e as noites de solidão. Um verdadeiro referencial memorialístico dessa gente. Cada detalhe dele conta um pouco da história dos Honório Cota, relata os momentos ali vividos. O reboco caído em alguns trechos como grandes placas de ferida mostra a decadência dessa família com as suas feridas à mostra para toda a cidade.
O sobrado é o estigma Honório Cota fincado no centro da cidade como marco de orgulho e grandeza, sisudez e vulnerabilidade. Assim pode-se dizer que quando o espaço é dominante, a temporalidade é virtual, e que, quando o tempo é dominante, a espacialidade é virtual. Rosalina, assim como seu pai, Coronel João Honório Cota, também se sentia como o sobrado, o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos. Rosalina estava fincada ali, sem comunicação com nenhuma pessoa da cidade, exceto Quiquina, sua antiga ama, que era muda, e Emanuel, homem que cuidava dos seus negócios e filho do único amigo de seu pai, que a via apenas uma vez no ano para deixá-la informada de como andavam os seus bens. Ela preservava o orgulho da família não se mostrando a ninguém, permanecendo além das paredes do sobrado, conservando assim a grandeza da mágoa da sua gente.
Estava radicalmente fechada para o mundo desde a sua adolescência, quando seu pai morrera. Sofria a vulnerabilidade da sua dolorosa e imensa solidão. Fechou-se no sobrado assim como Des Esseintes, personagem do romance simbólico À Rebours de Huymans que fechou-se em seu quarto e tapou os ouvidos ao som do insistente exterior.
Rosalina, tal como o sobrado, era sólida, intransponível, mesmo em declínio. Enquanto o sobrado tinha uma arquitetura barroca, ela apresentava uma personalidade conflitante, fragmentada e contraditória. O narrador convida o leitor para que veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa…. É preciso que o leitor visualize a imagem do sobrado para melhor compreender a sua dimensão simbólica e a íntima ligação deste com os Honório Cota. E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para mais além da mais antiga memória.
Dessa forma, percebe-se que "o sobrado", construído em estilo barroco, valorizando os contrastes entre claros e escuros era a perfeita arquitetura para abrigar tantos conflitos entre o ser e o não ser, tantas antíteses sentimentais que habitavam aquele espaço imaculado e santo, sacro e profano, compostos de importantes detalhes e significantes arestas. João Capistrano fazia questão de que o sobrado fosse a união de dois tempos, duas gerações, duas histórias. Quando da sua construção, a casa era um só pavimento que retratava muito bem a alma do seu construtor, Lucas Procópio, homem da terra, inabalável, rústico e forte. No tempo de Lucas Procópio a casa era um só pavimento, ao jeito dele: pesada, amarrada ao chão, com as suas quatro janelas, no meio da porta grossa, rústica, alta..
Com a morte de Lucas Procópio, seu filho, João Honório Cota, mandou construir um outro pavimento que fosse a continuação do primeiro, não queria que se percebesse diferenças entre ambas, mas que apresentasse uma unidade de linhas, cores, que o sobrado tivesse uma só feição. Ele não queria a dissociação entre memória e imaginação. Não queria também descaracterizar a obra de seu pai, queria fazê-la crescer, ostentá-la e uni-la à sua. Não quero mudar tudo, disse. Não derrubo obra de meu pai. Eu sou ele agora, no sangue, por dentro. A casa tem de ser assim, eu quero. Eu mais ele. […] Eu quero uma casa só, inteira, eu e ele juntos pra sempre.. O sobrado era uma espécie de palco com uma permanente apresentação, um espetáculo que reverenciava o passado que é a memória, enquanto a mobília com seus significativos ornamentos compõe o cenário que mantém as personagens em atuação na Ópera dos Mortos. Assim, o sobrado era um espaço sagrado.
Longe de ser indiferente, o espaço num romance exprime-se, pois, em formas e reveste sentidos múltiplos até constituir por vezes a razão de ser da obra. Ele passa a ser não apenas o espaço físico onde habitam as personagens, mas apresenta-se como espaço de angústia quando Rosalina sente pesar a solidão, questiona o seu estado de abandono e convive com os conflitos; como espaço psicológico quando ele, através da sua imagem, e do seu significado, faz com que Rosalina recorde o seu passado. O espaço, quer seja "real" ou "imaginário", surge portanto associado, ou até integrado, às personagens, como o está à ação ou ao escoar do tempo. O narrador atento a essas possibilidades, mais uma vez, chama a atenção do leitor para sua metáfora maior, o sobrado. O espaço por ele criado meticulosamente para ser o símbolo principal da sua narrativa.
Veja tudo, de vários ângulos e sinta, não sossegue nunca o olho, siga o exemplo do rio que está sempre indo, mesmo parado vai mudando. O senhor veja o efeito, apenas sensação, imagina; veja a ilusão do barroco, mesmo em movimento é como um rio parado; veja o jogo de luz e sombra, de cheios e vazios, de retas e curvas, de retas que se partem para continuar mais adiante, de giros e volutas, o senhor vai achando sempre uma novidade. Cada vez que vê, de cada lado, cada hora que vê, é uma figuração, uma vista diferente. O senhor querendo, veja: a casa ou a história.
2. A Escada
A escada, em Ópera dos Mortos, é uma ponte de ligação que une os dois pavimentos do sobrado, o térreo (a parte antiga) e o andar de cima (a parte nova) que representa a parte superior do sobrado e que dá a ele uma postura nobre e imponente. É dentro desse espaço que Rosalina se divide e faz da escada a ponte que a conduz para a travessia da sua existência. É por essa escada que ela, no ritual de descê-la ou subi-la, apresenta as mais importantes decisões da sua vida.
Para o povo da cidade o ato de descer as escadas está associado ao poder. Quem desce vem do andar superior, logo, reina. Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeça erguida, digna, soberba, que nem uma rainha…. Mantendo o mesmo mistério da descida ela sobe ritualisticamente deixando apenas um rastro de silêncio. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como desceu. Quando o seu pai morreu, o coronel João Capistrano Honório Cota, depois de muito tempo sem ter contato com o povo da cidade e sem receber esse povo no sobrado, Rosalina só apareceu uma vez no velório, foi ao descer a escada para colocar o relógio de ouro que o pai usava na parede ao lado do outro. Descia a escada, todo mundo de olho nela.
Depois, num outro momento significativo da sua vida, Rosalina usou a escada para fugir dos braços de Juca Passarinho quando já se entregava a ele. Quando ele procurou Rosalina, viu-a no meio da escada, correndo fugia. Temos aqui a escada como elemento de fuga, uma ponte de ligação também entre o corpo (térreo) e o espírito (o andar de cima). Rosalina se refugiava no andar de cima do mundo e de suas tentações. O andar de cima era para ela a redoma do seu espírito. Seu quarto, o seu mais íntimo recanto. Por meio dessa admirável divisa, a casa e o quarto são marcados por uma intimidade inolvidável. Com efeito, haverá imagem de intimidade mais condensada, mais segura de seu centro que o sonho do porvir de uma flor ainda encerrada e recolhida em sua semente?
Perturbada com o que sentia por Juca Passarinho e envergonhada de quase ter concretizado totalmente a sua paixão, chegou a pensar em nunca mais usar a escada para não fundir a Rosalina introspectiva à Rosalina expansiva que desabrochava. E se não descesse, se não descesse nunca mais?. A escada era o passaporte dos seus conflitos, só queria transpô-la quando se sentia forte, segura, senhora de si, sem os arroubos da paixão. Recomposta, ela desceu.. Essa mesma escada conduzia Rosalina embriagada pelo vinho e pela paixão ao andar de cima onde finalmente ela resolve abrir o seu quarto para viver intensamente a sua paixão nos braços de Juca. O vinho, a sensualidade e a paixão foram os ingredientes afrodisíacos que deram a Rosalina coragem para conduzir pela escada o seu amante e ter com ele uma noite dionisíaca. …toda noite, como num ritual, quando subiam a primeira coisa que ele fazia era soltar-lhe os cabelos.
No entanto, quando Rosalina depois de todas as transgressões que fizera, abrindo o seu quarto, o seu mundo, o seu corpo, perde o domínio sobre todas as Rosalinas, sobe pela última vez permanecendo no mundo da ilusão, no mundo lúdico dos loucos e desce quando tem que deixar o sobrado para ir para um sanatório, mas pensando que vai viver um sonho ou mais uma ilusão. Antes de terminar de percorrer ritualisticamente toda a escada, quando estava no último degrau ela parou, talvez estivesse se despedindo do sobrado e dos seus mortos, não se sabe, mas foi ainda na escada que ela proferiu sua última palavra no sobrado, encerrando ali o seu "solo" naquela ópera. Quando Rosalina chegou no último degrau da escada, parou, disse qualquer coisa baixinho… ninguém ouviu..
3. A Janela
Era da janela que Rosalina tinha uma comunicação passiva com a cidade. Uma comunicação pelo olhar. Da janela, por trás da cortina, ela observava a cidade e o povo que andava pelas ruas. Assim, através de uma camada protetora, Rosalina filtrava instantâneos da vida lá fora.
Rosalina conhecia o Largo do Carmo palmo a palmo, desde sempre olhando detrás das cortinas a igreja, as casas fronteiras, a Escola Normal, a estrada. Os olhos vazios e mornos miravam o silêncio coalhado da praça, a solidão do descampado às três horas da tarde, o céu de verão sem nuvens, o sol estorricando a terra, reverberando nas paredes brancas, os burricos peados junto ao cruzeiro, os jacás vazios esperando os donos - […] - alguém que entrava no Largo, […] e ela o seguia com a vista, a atenção neutra dos desocupados, até que dobrava a esquina ou se perdia de vista no fim da rua.
O povo via Rosalina somente quando ela aparecia na janela, mas era uma visão sombria, a cortina, feito uma tênue membrana, não, deixava que o povo a visse nitidamente e ainda a protegia contra os olhares curiosos. O próprio narrador direciona o olhar e a curiosidade do leitor em relação a Rosalina, adverte que é necessário antes ver o sobrado, o espaço existencial dela.
Se quiser, o senhor pode ver Rosalina, acompanhar os seus mínimos gestos, como ela acompanhava os passeantes, […] Mas veja antes a casa, deixa Rosalina pra depois, tem tempo.
Para Rosalina a janela era uma espécie de olho do sobrado, através dela gostava de olhar, porém quando via que estava sendo observada logo desviava o seu foco. A cidade vivia em constante expectativa, o povo estava sempre atento a uma aparição de Rosalina. E então, silêncio. Rosalina vai chegar na janela. Tal como se fosse uma celebridade que satisfaz a curiosidade do público com a sua rápida aparição. Rosalina se isolava por trás da cortina para além da janela. Aquele parecia ser o seu casulo intransponível, ela não gostava de ser vista, mas apreciava ver o povo da cidade, afinal essa era a imagem mais viva que a sua visão vislumbrava. Amanhã, da janela do seu quarto, escondida detrás da cortina, ia ver a procissão sair.
4. Flor de Seda
Fazer flores era a única ocupação de Rosalina desde que se fechara dentro do sobrado. As flores tão bonitas que ela fazia. Pra divertimento, era rica, não carecia. Tinha, no seu silêncio permanente, como única forma de expressão, fazer flores de papel crepom e seda. Eram essas flores a única coisa sua que o povo da cidade podia ver, pegar e lembrar dela, isso devido a Quiquina, sua empregada antiga que as vendia na cidade. Quiquina cuidava da venda das flores. Quem contratava, marcava os preços.
Essas flores, símbolo das virtudes, sobretudo de Rosalina, eram para a cidade, também, símbolo de comunicação, pois era através delas, das suas cores e formas, que eles imaginavam Rosalina que há mais ou menos quatorze anos não viam. Rosalina era, para o povo, a flor do sobrado, uma rara flor, vista poucas vezes. Era através das flores que fazia que ela indiretamente participava dos eventos sociais da cidade. As suas flores, todos os anos, ornamentavam o andor de Nossa Senhora do Carmo, o que dava a ela um certo orgulho. …o andor de Nossa Senhora do Carmo especialmente preparado […] Queria ver as flores de papel e de pano, aquelas flores que só ela sabia fazer tão bem. Assim, ela fabricava flores para festas de cidade grande, as flores de laranjeira quando tinha casamento (as que ela menos gostava de fazer), os lírios de primeira comunhão etc. O ofício de fazer flores era também para Rosalina uma forma de atenuar a pesada carga que carregava ao longo dos anos.
O fato de se tornar a guardiã da memória dos seus ancestrais e enclausurar-se em casa tal como os mortos no túmulo aumentava o peso da vida (que) está em toda forma de opressão; acaba por aprisionar cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas. Por isso o ato de fabricar flores, atividade tão delicada, representa a saída que Rosalina encontrou para suavizar o enorme peso que era a sua vida. Ela, apesar de toda uma existência conflituosa, movida pela vivacidade e inteligência, sabia que para contrapor tamanho peso era necessária a leveza, uma leveza consciente. Confirma-se assim em Rosalina a busca da leveza como reação ao peso do viver.
5. Rosalina
Rosalina, como personificação do sobrado (e da linguagem que ele simboliza) é também metáfora ou imagem da memória dos mortos que compõem o sobrado. Rosalina é quem mantém Lucas Procópio e João Capistrano presentes para a cidade que deseja esquecê-los, mas não pode. A cena do enterro de João Capistrano mostra que Rosalina, contrariando o desejo da cidade, não enterrou seus mortos:
Foi assim que Rosalina fez, todos os gestos medidos: viu o pai no caixão, o corpo coberto de flores, cruzou os dedos como quem ia rezar mas não rezou. Súbito se voltou para onde tinha vindo. A gente viu tudo em silêncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho como desceu.
Rosalina não enterrou o pai, não cumpriu o ritual esperado pela cidade. Essa foi uma das formas de mantê-los presentes, pois o sobrado é Lucas Procópio e João Capistrano, mas Rosalina é a memória dos dois. Entende-se assim porque Autran Dourado compara, na sua Poética de Romance: matéria de carpintaria, os mortos de Rosalina aos mortos de Antígona. A lei de Rosalina é a lei dos deuses ("Não esqueço, ninguém deve esquecer") que se opõe à lei da pólis. Enterrar João Capistrano significaria enterrar sua briga com a cidade, mas para Rosalina isso significaria tirar a dignidade do pai, assim como não enterrar Polínices significaria, para Antígona, tirar a dignidade do irmão.
A questão da memória está visceralmente ligada à do tempo. São símbolos do tempo em Ópera dos Mortos os relógios e as voçorocas, como já citado.
6. Relógios
Os relógios, embora parados referem-se à dinâmica do tempo. Para Autran Dourado, o tempo não é concebido como mera sucessão de passado, presente e futuro, mas uma ciranda, uma roda.
O primeiro relógio que pára em Ópera dos Mortos é o comemorativo da independência que João Capistrano pendura na parede da sala do sobrado no início de sua briga política, depois o relógio armário, quando da morte de sua esposa, Dona Genu e, por fim, o relógio de ouro, parado por Rosalina no dia da morte de João Capistrano. Os relógios parados permanecem presentes para marcar o tempo contínuo dos mortos. Mesmo mortos, continuam a operar, marcam tanto a vida do sobrado e de Rosalina como a da cidade. Mesmo em todo seu isolamento Rosalina e o sobrado participam da vida da cidade. Isso pode ser observado em várias passagens pela fala do narrador, como no segundo bloco, quando conta ao observador sobre a chegada do relógio armário ao sobrado:
E vinha gente de longe regalar a vista (...) deliciar os ouvidos com a música prateada das pancadas finas, aquela música que mais tarde, quando o relógio parado, ia marcar as horas do nosso remorso.
Observamos que, no momento da narração, o relógio já estava parado, mas sua música ainda se fazia ouvir.
Os relógios, mesmo parados, estão em movimento, mostrando que passado, presente e futuro não se sucedem, mas se imbricam:
Foi quando o coronel João Capistrano Honório Cota morreu. Tudo foi de novo, igualzinho relógio de repetição.
(...)
Tudo repetido, a gente assistia tudo de novo pra trás. De novo se voltava feito numa fita-em-série onde o herói ficou em perigo e a gente não sabia como é que ele vai sair para continuar suas cavaleiranças. A gente esperava que a cena se repetisse para ter uma outra solução mais conforme, não a que ficou parada, sugerida.
Entretanto, a cena não tem solução, pois isso significaria parar a roda do tempo.
A morte de D. Genu marca o início do silêncio entre o sobrado e a cidade, e a de João Capistrano o estabelecimento desse silêncio, mas o silêncio não cessa a comunicação, pois o sobrado determina, em certos aspectos a vida da cidade, como já observado.
Os relógios também se imbricam na personalidade de Rosalina, o que não é nada mais nada menos que o imbricamento das questões do tempo, da linguagem e da memória:
Mas ela não podia mexer nos relógios, não devia nunca mexer naqueles relógios. Os relógios eram um quebranto, parados eles batiam como de noite aquele coração penado no meio da casa (...).
O tempo aqui é como um rio: mesmo parado continua em movimento. Rosalina não pode mexer nos relógios porque não pode mexer no tempo, mas como memória pode fazer com que aquilo que já não é retorne a ser, pode tornar o tempo uma ciranda que gira permanentemente e que se transforma também no tempo da cidade. O sobrado, símbolo da linguagem, é o que guarda esse tempo-ciranda e, em seu silêncio, fala à cidade.
7. Voçorocas
O trabalho do tempo, que transforma as coisas em ruínas é simbolizado pelas voçorocas. Elas provocam estranhamento em que as vê porque traz à tona aquilo que é a única certeza do homem, mas que lhe é absolutamente desconhecido: a morte. A dificuldade de encarar as goelas de gengivas vermelhas das voçorocas é a dificuldade de encarar a finitude humana, o limite. Por isso elas assustam tanto Juca Passarinho, sempre alegre e falante: elas o colocam de frente para o nada e provocam a experiência do silêncio:
Já vi aluvião, erosão virar voçoroca, disse José Feliciano, mas deste tamanhão, nunca na minha vida!
Desta vez não mentia, não exagerava no elogio. Tinha até medo de olhar aquelas goelas de gengivas vermelhas e escuras (...). Que coisa mais medonha, seu Silvino. Parece que não acaba mais essa começão de terra. Coisa do diabo, mais parece esta fome toda de terra.
As voçorocas remetem, assim como os relógios, remetem à dinâmica do tempo: são a própria presença do passado, do que já não é naquilo que é (presente), mas não indicam futuro a não ser a morte, a destruição. Não há futuro para a cidade, assim como não há futuro para Rosalina. Trata-se de uma cidade marcada pelo trabalho (ópera) dos mortos, que Rosalina / memória cuidou de manter presentes tanto para si como para a cidade. Tudo é determinado pelo sobrado e seus mortos. Mesmo em ruínas, é o sobrado que se mostra ao narrador e a partir dele desenrola-se a narrativa. As voçorocas estão para a cidade assim como os relógios estão para o sobrado: "O sobrado era o túmulo, as voçorocas, as veredas sombrias".
Observações gerais
O narrador de Ópera dos Mortos também contribui para a concepção de tempo como ciranda, continuidade e contigüidade. A obra é narrada sob vários focos narrativos, o que implica dizer que não há um, mas vários narradores. Por ser segundo o autor, uma obra mais trágica do que romanesca, destacamos aqui o narrador coral, que interpreta os eventos à moda do drama ático. Já no primeiro bloco, observa-se a presença do coro, como nos parênteses do fragmento abaixo:
Um recuo no tempo pode se tentar. Veja a casa como era e não como é ou foi agora. Ponha tento na construção, pense no barroco e nas suas mudanças, na feição do sobrado, na sua aparência inteira, apartada, suspensa (não, oh tempo, pare as suas engrenagens e areias, deixe a casa como é, foi ou era, só pra gente ver, a gente carece de ver; impossível com a sua mediação destruidora, que cimenta, castradora); esqueça por um momento os sinais, os avisos surdos das ruínas, dos desastres, do destino.
Principalmente a partir do capítulo “A Semente no Corpo, na Terra” (Rosalina grávida), quando, ainda segundo Autran Dourado, Rosalina fala, mas sem discurso, só presença, tem-se o discurso do coro. É ele que interpreta as muitas Rosalinas, que Juca Passarinho não consegue entender:
Mas o corpo era o mesmo, com dificuldade ele via o mesmo corpo onde as duas se alternavam. O corpo sem a noite continuava a existir? Era possível só a luz, a escuridão total?
Ele [Juca Passarinho] se perdia em pensamentos absurdos, não esses, outros – feitos de imagens concretas (...) mas que desses pensamentos se aproximava na sua luta incessante de querer entendê-la para repousar em duas Rosalinas(...) que tinham de comum entre si o traço de união, o corpo...
(...)
E de repente descobriu com espanto: ela era três e não duas. A dona Rosalina que existia entes de sua chegada ao sobrado e continuou a existir até aquela noite (...), a Rosalina das noites em fogo e sangue, em fúria consumida, e a dona Rosalina diurna de agora, perto de quem humildemente ele ficava (...) Essas distinções eram demais para ele, homem simples.
E assim o agregado desiste de entendê-la e passa a aceitá-la, mas é o coro quem interpreta, porque um narrador onisciente seria contraditório com a concepção de linguagem dessa obra que barroca que dialoga com a tragédia. Se a tensão harmônica dos contrários é a base da narrativa, não pode haver certezas absolutas exclusivas de um narrador.
Ópera dos Mortos interpreta as questões linguagem, memória, ser e tempo em uma perspectiva deliberadamente ambígua. A obra recusa os conceitos maniqueístas e concebe a unidade na dualidade. A linguagem barroca e trágica revela a imanência recíproca das questões abordadas em sua originalidade. Nesse sentido é um “acontecer poético” e cria mundo, mas não um mundo paralelo ao chamado “real”. O mundo magistralmente criado em Ópera dos Mortos é real naquilo que tem de inaugural: a paródia de elementos barrocos e trágicos interpretando originalmente as questões que inquietam a humanidade desde seus primórdios.
Fontes:
Denilson Albano Portácio - Universidade Federal do Ceará
Laura Goulart Fonseca - doutoranda em Ciência da Literatura, Teoria Literária, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Marilúze Ferreira de Andrade e Silva - Departamento das Filosofias e Métodos - FUNREI
Carla Aparecida Alves Bento, Mestranda em Literatura Brasileira - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Disponível em http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/o/opera_dos_mortos
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