Uma carruagem parou no terreiro. O marquês de Rabicó adiantou-se para perguntar de quem era. Em seguida abriu a porta e anunciou:
— Senhorita Cinderela, a princesa das botinas de vidro!
— Como é estúpido! — exclamou Narizinho. — Cinderela é casada e não usa “botinas de vidro”. Uma boa botina de vidro de garrafa precisa você no focinho...
Depois foi receber a famosa princesa, à qual fez uma grande mesura, dizendo: “Assalam alêikan!” Cinderela admirou aquele modo oriental de saudação, que Narizinho tinha aprendido num volume das Mil e Uma Noites, e como também entendesse muito de coisas orientais, porque ia a muitas festas do príncipe Codadad e outros, respondeu na mesma língua: “Alêikan assalam!”
— Faça o favor de sentar-se, princesa! — disse a menina indicando uma cadeira de espaldar marcado com as iniciais G. B. (Gata Borralheira) em grandes letras de ouro — letras recortadas em casca de laranja por Pedrinho. Depois fez as apresentações:
— Permita-me, senhora princesa, que apresente meu primo Pedrinho, o conde dos Bigodes de Manga, e a minha amiga Emília, marquesa de Rabicó.
Pedrinho saudou Cinderela com uma curvatura de cabeça. Já Emília esqueceu todas as recomendações e enfiou-se debaixo da cadeira de Cinderela para ver bem de perto os seus famosos pés calçados no menor sapatinho do mundo. A menina horrorizou-se com aquela inconveniência; Cinderela, porém, achou muita graça. Pôs Emília no colo, dizendo:
— Já a conheço de fama!
A boneca tomou conta dela imediatamente.
— Também eu conheço toda a sua história. Mas há um ponto que não entendo bem. É a respeito dos tais sapatinhos. Um livro diz que eram de cristal; outro diz que eram de cetim. Afinal de contas estou vendo você com sapatinhos de couro...
Cinderela riu-se muito da questão e respondeu que na verdade fora com sapatinhos de cristal ao famoso baile onde se encontrou com o príncipe pela a primeira vez. Mas que esses sapatinhos não eram nada cômodos, faziam calos; por isso só usava sapatinhos de camurça.
— E de que número?
— Trinta.
— Trinta? — exclamou a boneca admirada. — Então meu pé é muito menor, porque o meu número é 3 — e no entanto nunca me apareceu nenhum príncipe encantado!...
— Sim — disse a princesa — mas ainda pode aparecer. Não perca a esperança, Emília!...
— Há outro ponto que me causa dúvidas — continuou a boneca. — Que é que aconteceu para sua madrasta e suas irmãs, afinal de contas? Um livro diz que foram condenadas à morte pelo príncipe; outro diz que um pombinho furou os olhos das duas...
— Nada disso aconteceu — disse Cinderela. — Perdoei-lhes o mal que me fizeram — e hoje já estão curadas da maldade e vivem contentes numa casinha que lhes dei, bem atrás do meu castelo.
— Como a senhora é boa! Se fosse comigo, eu não perdoava! Sou mázinha. Tia Nastácia se esqueceu de me botar coração, quando me fez...
Narizinho achou que a prosa de Emília estava se prolongando muito.
— Basta, Emília — advertiu. — Conversar demais com uma princesa é contra as regras da etiqueta.
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Continua... Cara de Coruja– III – Branca de Neve
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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